domingo, 9 de julho de 2023

A arte de ser transparente FSP

Em junho de 2020, manifestantes do Black Lives Matter derrubaram a estátua de Edward Colston, um traficante de escravizados do século 17, e a jogaram nas águas do porto de Bristol. As imagens do episódio correram o mundo. Um mês antes, George Floyd fora assassinado por um policial branco em Minneapolis, detonando uma onda mundial de protestos contra o racismo e a violência de agentes da lei.

O evento em Bristol ensejou muitas discussões sobre revisionismo histórico. Colston traficou mais de 100 mil africanos para Caribe e Américas. Era um filantropo que despejava muito dinheiro em sua cidade, daí a estátua, mas que marcava o peito de mulheres e crianças com as iniciais de sua empresa, daí a indignação. O cancelamento explícito fez também muitas organizações se voltarem para os próprios arquivos, preocupadas com passados incômodos.

Uma dessas empresas foi o jornal inglês The Guardian. Seu fundador, John Edward Taylor, era um comerciante de algodão em Manchester que, com o suporte de colegas empresários, criou, em 1821, The Manchester Guardian. O fundo que hoje administra o diário, um dos mais importantes do planeta, comissionou pesquisadores e historiadores para investigar os recursos dos investidores. Os primeiros resultados foram conhecidos em março passado: Taylor e pelo menos 9 de seus 11 sócios tinham conexões com a escravidão.

O grupo proprietário do jornal emitiu um pedido de desculpas e anunciou um programa de justiça restaurativa de uma década focado nas comunidades descendentes dos afetados, no Caribe e nos EUA, investimento em pesquisa acadêmica sobre a escravidão transatlântica e diversas ações editoriais. É possível acompanhar o projeto no site do Guardian, que publica uma série sobre o assunto, "Cotton Capital".

Avaliar o mérito da iniciativa é tarefa complexa, que não cabe neste espaço. Em termos estritamente jornalísticos, no entanto, é uma demonstração espetacular de transparência e, obviamente, saúde financeira. Poucos veículos de imprensa repercutiram o projeto.

Um band-aid tenta fechar uma ferida aberta onde se lê a palavra "ditadura"
Carvall

Não é fácil remexer aspectos do passado, ainda mais quando ele é recente e ainda se trabalha com memórias, não apenas com livros de história.

Folha fez sua investida na semana passada. Em uma publicação de duas páginas na Ilustríssima, sem chamada na Primeira ou visibilidade na Home, revelou relatório interno produzido em 2005: "Documento aborda trajetória do Grupo Folha no período da ditadura militar". Ao lado de Fiat, Petrobras, Itaipu e outras, o jornal é o único veículo de imprensa do país escrutinado por uma pesquisa da Unifesp sobre o envolvimento de empresas com a repressão. O projeto é tocado com parte da indenização paga pela Volkswagen do Brasil depois de acordos com o Ministério Público em 2020.

A Volkswagen AG, acossada por uma série de reportagens na Alemanha, contratou um historiador para vasculhar as próprias gavetas. A conta chegou mais tarde à filial brasileira. A história foi lembrada na última semana na interminável discussão sobre o anúncio da montadora que reuniu Maria Rita e a mãe Elis Regina, ressuscitada com inteligência artificial. Para os detratores do comercial, Elis e Belchior não podem vender quem se vendeu à ditadura.

Não parece ser só coincidência o tema estar em voga. Dois dias depois da publicação da Folha, a Agência Pública pôs no ar longa reportagem sobre o assunto: "Documentos indicam que aliança da Folha com a ditadura foi mais forte do que jornal admite". O paralelismo provocativo entre os títulos se repete de certa forma nos textos. Personagens, fatos e depoimentos são em grande medida os mesmos. O que muda, e bastante, é a interpretação.

A Agência Pública expõe a Folha ao relatar que demorou uma semana para receber um outro lado solicitado. Conclui ainda que o jornal, ao publicar o relatório interno no último domingo (2), antecipou sua posição em resposta a uma reportagem que ainda não havia sido publicada.

O relatório é de 2005. Seu autor, Oscar Pilagallo, em 2011, publicou "História da Imprensa Paulista", onde boa parte da pesquisa inicial está reproduzida. Conteúdo equivalente foi a público em 2012, com o lançamento de "Folha Explica Folha", de Ana Estela de Sousa Pinto. Em 2014, em editorial, a Folha reconheceu ter errado ao apoiar a ditadura na primeira metade de seu regime. Em 2020, durante a campanha de valorização da democracia, ameaçada então pelo bolsonarismo, reiterou a autocrítica. Não faltaram oportunidades antes do último domingo para que o jornal fizesse uma reflexão tempestiva e aprofundada sobre seu papel durante a ditadura. Talvez até em debate aberto com a sociedade, instituto tão caro ao jornal.

Transparência tem que ser iniciativa, não uma consequência do tempo, invariavelmente implacável. 

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