Em junho de 2020, manifestantes do Black Lives Matter derrubaram a estátua de Edward Colston, um traficante de escravizados do século 17, e a jogaram nas águas do porto de Bristol. As imagens do episódio correram o mundo. Um mês antes, George Floyd fora assassinado por um policial branco em Minneapolis, detonando uma onda mundial de protestos contra o racismo e a violência de agentes da lei.
O evento em Bristol ensejou muitas discussões sobre revisionismo histórico. Colston traficou mais de 100 mil africanos para Caribe e Américas. Era um filantropo que despejava muito dinheiro em sua cidade, daí a estátua, mas que marcava o peito de mulheres e crianças com as iniciais de sua empresa, daí a indignação. O cancelamento explícito fez também muitas organizações se voltarem para os próprios arquivos, preocupadas com passados incômodos.
Uma dessas empresas foi o jornal inglês The Guardian. Seu fundador, John Edward Taylor, era um comerciante de algodão em Manchester que, com o suporte de colegas empresários, criou, em 1821, The Manchester Guardian. O fundo que hoje administra o diário, um dos mais importantes do planeta, comissionou pesquisadores e historiadores para investigar os recursos dos investidores. Os primeiros resultados foram conhecidos em março passado: Taylor e pelo menos 9 de seus 11 sócios tinham conexões com a escravidão.
O grupo proprietário do jornal emitiu um pedido de desculpas e anunciou um programa de justiça restaurativa de uma década focado nas comunidades descendentes dos afetados, no Caribe e nos EUA, investimento em pesquisa acadêmica sobre a escravidão transatlântica e diversas ações editoriais. É possível acompanhar o projeto no site do Guardian, que publica uma série sobre o assunto, "Cotton Capital".
Avaliar o mérito da iniciativa é tarefa complexa, que não cabe neste espaço. Em termos estritamente jornalísticos, no entanto, é uma demonstração espetacular de transparência e, obviamente, saúde financeira. Poucos veículos de imprensa repercutiram o projeto.
Não é fácil remexer aspectos do passado, ainda mais quando ele é recente e ainda se trabalha com memórias, não apenas com livros de história.
A Folha fez sua investida na semana passada. Em uma publicação de duas páginas na Ilustríssima, sem chamada na Primeira ou visibilidade na Home, revelou relatório interno produzido em 2005: "Documento aborda trajetória do Grupo Folha no período da ditadura militar". Ao lado de Fiat, Petrobras, Itaipu e outras, o jornal é o único veículo de imprensa do país escrutinado por uma pesquisa da Unifesp sobre o envolvimento de empresas com a repressão. O projeto é tocado com parte da indenização paga pela Volkswagen do Brasil depois de acordos com o Ministério Público em 2020.
A Volkswagen AG, acossada por uma série de reportagens na Alemanha, contratou um historiador para vasculhar as próprias gavetas. A conta chegou mais tarde à filial brasileira. A história foi lembrada na última semana na interminável discussão sobre o anúncio da montadora que reuniu Maria Rita e a mãe Elis Regina, ressuscitada com inteligência artificial. Para os detratores do comercial, Elis e Belchior não podem vender quem se vendeu à ditadura.
Não parece ser só coincidência o tema estar em voga. Dois dias depois da publicação da Folha, a Agência Pública pôs no ar longa reportagem sobre o assunto: "Documentos indicam que aliança da Folha com a ditadura foi mais forte do que jornal admite". O paralelismo provocativo entre os títulos se repete de certa forma nos textos. Personagens, fatos e depoimentos são em grande medida os mesmos. O que muda, e bastante, é a interpretação.
A Agência Pública expõe a Folha ao relatar que demorou uma semana para receber um outro lado solicitado. Conclui ainda que o jornal, ao publicar o relatório interno no último domingo (2), antecipou sua posição em resposta a uma reportagem que ainda não havia sido publicada.
O relatório é de 2005. Seu autor, Oscar Pilagallo, em 2011, publicou "História da Imprensa Paulista", onde boa parte da pesquisa inicial está reproduzida. Conteúdo equivalente foi a público em 2012, com o lançamento de "Folha Explica Folha", de Ana Estela de Sousa Pinto. Em 2014, em editorial, a Folha reconheceu ter errado ao apoiar a ditadura na primeira metade de seu regime. Em 2020, durante a campanha de valorização da democracia, ameaçada então pelo bolsonarismo, reiterou a autocrítica. Não faltaram oportunidades antes do último domingo para que o jornal fizesse uma reflexão tempestiva e aprofundada sobre seu papel durante a ditadura. Talvez até em debate aberto com a sociedade, instituto tão caro ao jornal.
Transparência tem que ser iniciativa, não uma consequência do tempo, invariavelmente implacável.
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