Vive-se a virtualidade do real. Estamos submersos no mundo da informação imediata, alvejados continuamente pela notícia em rede comunicacional, criando dependência psíquica que leva à persistente consulta ao celular. A reflexão e a solidão cederam passo à passiva e permanente recepção de comunicações, fragmentariamente enviadas.
Com a rede, a existência se desenrola na mídia e pela mídia, como dissera Manuel Castells (A sociedade em rede, p. 361). Esse fenômeno tem impacto imenso em nosso cotidiano e em todas as vertentes da vida, apresentando aspectos altamente positivos e negativos. A rede tem sido instrumento de difusão de discursos de ódio, de conteúdo discriminatório ou belicoso, alimentando afrontas à democracia, facilitando a pornografia infantil, a ação de organizações criminosas, bem como o comércio ilegal e a difusão de fake news nocivas à saúde pública, à dignidade e à privacidade das pessoas.
Contra esta utilização gravemente prejudicial, que antes toca à emoção que à inteligência, requer-se a criação de mecanismos de moderação de conteúdos. Estes devem, sem ofensa aos limites do direito de liberdade de expressão, assegurar a exclusão urgente de manifestações ilegais, para proteção dos usuários e da sociedade.
Hoje está em debate o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que estabelece unicamente a responsabilidade civil das plataformas com relação a conteúdos de terceiros, na hipótese de descumprimento de ordem judicial de remoção. No artigo 21, responsabiliza-se, subsidiariamente, a violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de atos sexuais de caráter privado.
Aprovou o Senado o Projeto de Lei (PL) n.º 2.630/20, denominado projeto de combate às fake news, ora na Câmara dos Deputados, recebendo substitutivo do relator deputado Orlando Silva. Este projeto apenas determina, no seu artigo 7.º, deverem os provedores elaborar seus termos e políticas de uso, sem especificar, todavia, qual seja o conteúdo tido por ilegal. As plataformas, segundo o artigo 35, “podem” criar órgão de autorregulação visando à transparência e à responsabilidade na internet.
Essas regras são insuficientes. Bom exemplo vem de fora, do Parlamento Europeu, ao aprovar o Regulamento 2022/2065, o Digital Services Act (DSA), estatuindo serem conteúdo ilegal as informações em desconformidade com o direito da União ou de seus Estados-membros: o proibido fora da internet deve nela ser também vedado. Impõe, ademais, deveres de cuidado às grandes plataformas.
As plataformas devem ter Código de Conduta e oferecer meios para reclamações pelos usuários, a serem publicizados, com o objetivo de responder aos diferentes tipos de conteúdos ilegais por via da moderação de conteúdos.
A “moderação de conteúdos” consiste em detectar e combater conteúdos ilegais ou informações incompatíveis com os termos e condições estatuídos pelas plataformas. Compreende, ainda, a tomada de medidas que limitem, de forma urgente, a disponibilidade e acessibilidade desses conteúdos ilegais.
Assim, a conta pode ser suspensa por período razoável se, com frequência, fornecer conteúdos ilegais. Além do mais, determina o Regulamento que, ao verificar a ocorrência de delito ou a possibilidade de tal suceder, cumpre à plataforma informar imediatamente a suspeita às autoridades policiais ou judiciárias.
Segundo o Regulamento, embora as plataformas não tenham obrigação geral de vigilância, podem ser responsabilizadas quando não atuarem, na moderação de conteúdo, de forma diligente ao tomar conhecimento da existência de conteúdo abusivo. Aos Estados-membros cabe nomear um coordenador dos serviços digitais, responsável por todas as matérias relativas à execução do regulamento pelo Estado-membro que o designou. É, também, criado grupo consultivo independente de coordenadores dos serviços digitais para a supervisão dos prestadores de serviços intermediários, denominado Comitê Europeu dos Serviços Digitais.
O Regulamento europeu deve servir de guia na formulação final do PL 2.630/20 do Senado, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, matéria urgente, mas a ser bem meditada. As plataformas, sem dúvida, devem ser civilmente responsabilizadas se descumprirem o dever de cuidado.
Em 8 de janeiro deste ano, as plataformas reproduziram incitamentos à ocupação de prédios dos Três Poderes. O melhor seria haver tipo penal específico de divulgação em massa que comprometa o Estado de Direito ou a saúde pública, tornando obrigatório às plataformas comunicar tal ocorrência às autoridades.
A redação do tipo penal seria: “Art (...) Promover ou financiar a divulgação massiva de informação inverídica capaz de:
I – Comprometer a higidez do processo eleitoral;
II – Restringir ou impedir o exercício de algum dos poderes constitucionais;
III – Comprometer política pública destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa.
Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco anos).”
*
ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
Nenhum comentário:
Postar um comentário