terça-feira, 4 de abril de 2023

Lula fará melhor se ignorar lista tríplice na indicação do novo procurador-geral, FSP

 Rogério Arantes

Professor de ciência política da USP e autor, entre outros livros, de “Ministério Público e Política no Brasil”

Fábio Kerche

Professor de ciência política da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e autor, entre outros livros, de "Virtude e Limites: Autonomia e Atribuições do Ministério Público no Brasil"

[RESUMO] escolha do procurador-geral da República por meio de lista tríplice, procedimento não previsto na Constituição, carrega vícios como a primazia de diretores da Associação Nacional dos Procuradores Federais, entidade corporativa que organiza a votação, e a exclusão de membros de outros ramos do Ministério Público da União. Lula precisa indicar, para suceder Augusto Aras, um procurador-geral comprometido com a democracia e os direitos humanos, o que não significa seguir a tradição e transferir a responsabilidade para os membros de carreira da instituição.

A polêmica da lista tríplice para escolha do procurador-geral da República opõe aqueles que consideram que a indicação pela classe dos procuradores é condição necessária para a independência do Ministério Público e aqueles que consideram que a lista tende a produzir escolhas corporativistas e insulamento excessivo da instituição.

Se defender a Constituição é uma das missões do Ministério Público, verificar o que ela diz a respeito é o primeiro passo para o exame da controvérsia. A regra constitucional não fala em lista tríplice: o procurador-geral deve ser nomeado pelo presidente entre os integrantes da carreira após aprovação do Senado para um mandato de dois anos, permitida a recondução.

O presidente Lula (esq.) conversa com Augusto Aras, procurador-geral da República, durante cerimônia de sua posse no Congresso - Mauro Pimentel - 1º.jan.23/AFP

Essa regra foi estabelecida pela Constituinte de 1987-88, que examinou diversas versões. A Confederação Nacional do Ministério Público apresentou uma proposta em que o procurador-geral, escolhido pelo presidente e pelo Senado, nem sequer precisaria ser membro de carreira do Ministério Público. A ideia da lista tríplice, adotada para os procuradores-gerais de Justiça dos estados, chegou a ser cogitada também para o procurador-geral, mas foi abandonada ao final dos trabalhos constituintes.

A complicada equação da escolha do chefe do Ministério Público reside na dificuldade de combinar autonomia, legitimidade e responsabilização. Fosse o Ministério Público um órgão de funções jurídicas reduzidas, com pouca discricionariedade e sem maiores consequências para a sociedade, não haveria problema em entregar a escolha da chefia aos membros da instituição.

O Ministério Público, entretanto, se agigantou como órgão de atuação em diversas áreas, conquistou autonomia funcional e administrativa e seus integrantes dispõem das mesmas garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de salários da magistratura, com a diferença de não serem "inertes" como os juízes, mas voltados à ação.

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Além disso, por não ter uma estrutura hierárquica típica das burocracias, os procuradores de primeiro grau têm independência funcional e não estão sujeitos às ordens de Brasília. Eles podem desencadear operações capazes de afetar um país inteiro, em uma espécie de exército sem comando.

Dado que a Constituição de 1988 não incorporou a lista tríplice, o MPF (Ministério Público Federal) não poderia organizar um processo eleitoral oficial. A tarefa foi assumida pela ANPR (Associação Nacional dos Procuradores Federais), uma sociedade civil sem fins lucrativos que tem por finalidade defender os interesses de seus associados.

Considerando as 11 vezes em que a lista tríplice foi produzida pela ANPR (de 2001 a 2021), foram feitas 33 indicações. Entre elas, apenas quatro envolveram procuradores que não haviam sido diretores da associação. Ou seja, participar e se tornar liderança da política corporativa é precondição para figurar na lista que será levada ao presidente.

O fato de a ANPR funcionar como um filtro poderoso de seleção do perfil de procurador-geral pode ser ilustrado por seus efeitos sobre a questão de gênero. Considerando as 25 diretorias da história da associação, apenas 21,7%, de um total de 253 cargos, foram preenchidos por mulheres. A participação feminina somente aumentou quando o número de cargos de diretoria se expandiu, mas nunca houve um caso de gestão paritária e, mesmo nos últimos anos, a proporção de mulheres não passou de um terço.

Com meio século de existência, a associação teve 24 presidentes homens e apenas uma mulher. Há mais de duas décadas, uma mulher não preside a associação, o que é grave em si, mas fica ainda mais dramático quando consideramos que elas são 40% das promotoras e procuradoras do Brasil e o quanto já avançamos na compreensão da importância de mulheres ocuparem cargos de chefia, mesmo nas organizações em que são minoritárias.

A primeira vez que uma mulher ex-diretora da ANPR alcançou a primeira colocação na lista tríplice foi há pouco tempo, em 2021: Luiza Frischeisen no contexto da recondução de Augusto Aras, quando a lista já não era mais considerada pelo presidente. O fato é que, ao longo da República, houve 43 procuradores-gerais, sendo 42 homens e uma mulher (Raquel Dodge, no tardio 2017).

A produção da lista tríplice apresenta outro vício de origem. Embora a figura do procurador-geral seja associada ao ramo do MPF, o fato é que ele chefia o Ministério Público da União como um todo: além do MPF, o Ministério Público do Trabalho, o Militar e o do Distrito Federal. Há anos, as associações dos membros dessas carreiras reivindicam participação efetiva na elaboração da lista tríplice, mas a ANPR ignora olimpicamente a inclusão dos irmãos.

Em 2007, as demais associações desafiaram o monopólio da ANPR e realizaram votações. Na soma dos votos, Ela Wiecko teria encabeçado a lista tríplice, com Antonio Fernando em segundo. A ANPR, entretanto, recusou o procedimento e encaminhou sua lista exclusiva, na qual Fernando aparecia em primeiro e Wiecko nem era mencionada. A situação voltou a se repetir em 2013, e, mais uma vez, uma procuradora —Deborah Duprat, a mais votada na soma das quatro associações— foi preterida pela ANPR, que indicou Rodrigo Janot em primeiro lugar.

Se a elaboração da lista apresenta esses problemas, a Constituição prevê outro ator-chave, além do presidente: o Senado. Cabe também a essa Casa Legislativa o discernimento do que está em jogo, podendo fazer melhor que simplesmente aceitar a indicação do primeiro colocado da lista ou do presidente. Tome-se o exemplo da ocasião em que a lista tríplice foi ignorada, em 2019.

O então presidente, Jair Bolsonaro, indicou que queria um procurador-geral alinhado com os valores do novo governo, como se o cargo fosse de confiança. Augusto Aras captou a mensagem e tratou de falar o que o presidente queria ouvir: prometeu que os projetos de infraestrutura não seriam obstruídos por "xiitas ambientalistas", condenou os métodos da Operação Lava Jato, afirmou ter "repúdio natural" às uniões homoafetivas e disse que, no caso de mortes de invasores de propriedades, os autores estariam protegidos pelo princípio da legítima defesa e pelo excludente de ilicitude.

Como todo político eleito, Aras não logrou cumprir todas as promessas, mas é fato que a chefia do Ministério Público se deslocou para a órbita de influência do bolsonarismo e tratou de buscar sua reeleição. O Senado deu apoiou maciço à escolha de Aras.

Transferir para pouco mais de mil procuradores federais a responsabilidade da escolha de um cargo da importância do procurador-geral não é mais democrático nem garantia de qualidade.

Lula pode escolher um procurador ou uma procuradora que se comprometa com a defesa da democracia, em um contexto de ameaças por forças autoritárias, e com os direitos humanos e os interesses difusos e coletivos, que resgate o Ministério Público voltado à cidadania, que atue no combate à corrupção sem jogar a criança do Estado de Direito com a água do banho, que se empenhe no avanço de pautas progressistas, entre outros temas urgentes que cederam lugar a uma obsessão colocada no centro de um Power Point.

Que as associações mandem suas listas, que outras entidades levantem possibilidades, que a sociedade possa ser informada sobre as pessoas candidatas e que o debate público e a sabatina no Senado se façam da forma mais ampla e transparente —e que o presidente sinalize nitidamente as qualidades e os compromissos esperados.

Lula não precisa seguir a "tradição". Ele pode fazer melhor. Nos termos da Constituição, a responsabilidade é, sobretudo, dele.

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