Conforme nos aproximamos do primeiro aniversário da invasão russa em escala total à Ucrânia — e da feroz resposta ucraniana apoiada pela coalizão ocidental liderada pelos Estados Unidos — a seguinte pergunta precisa ser respondida com urgência: Como foi possível que, em 23 de fevereiro de 2022, virtualmente ninguém nos EUA argumentava que estava no centro do nosso interesse nacional entrar em uma guerra indireta com a Rússia para impedi-la de subjugar a Ucrânia, um país que a maioria dos americanos não conseguia encontrar no mapa em dez tentativas?
E ainda assim, agora, quase um ano depois, pesquisas mostram sólidas maiorias americanas (apesar de diminuindo levemente) a favor do apoio aos ucranianos com armas e ajudas, mesmo que isso arrisque um conflito direto com a Rússia de Vladimir Putin.
Tratou-se de uma mudança diametral na opinião pública americana. Certamente isso se explica em parte pelo fato de que nenhuma força de combate dos EUA está na Ucrânia, então a sensação é como se estivéssemos arriscando, por agora, armas e dinheiro — enquanto o impacto total da guerra é absorvido pelos ucranianos.
Mas há outra explicação, apesar de a maioria dos americanos provavelmente não ser capaz de articulá-la e muitos poderem concordar com ela apenas relutantemente.
Eles sabem em algum nível profundo que o mundo em que vivemos hoje é enviesado da maneira que é por causa do poder americano. Isso não significa que sempre os EUA usam seu poder sabiamente, nem que teriam alcançado sucesso sem aliados. Mas na medida que usa seu poder sabiamente e em concerto com aliados, o país constrói e protege uma ordem mundial liberal desde 1945, o que atendeu enormemente a seus interesses — economicamente e geopoliticamente.
Esta é uma ordem na qual grandes potência autocráticas, como a Alemanha nazista, o Império do Japão ou a Rússia moderna não são livres para simplesmente devorar seus vizinhos. E trata-se de uma ordem em que mais democracias do que nunca foram capazes de florescer — e na qual mercados livres e comércio aberto tiraram mais gente da pobreza do que em qualquer outro período na história da humanidade. Ela nem sempre é perfeita — mas em um mundo em que a perfeição jamais está no cardápio, esta ordem produziu quase 80 anos sem uma guerra entre Grande Potências, do tipo capaz de desestabilizar todo o planeta.
Defender esta ordem liberal é a lógica subjacente que fez os EUA e seus aliados na Otan ajudar Kiev a reverter a invasão “casa comigo ou te mato” de Putin à Ucrânia — a primeira investida de um país da Europa contra outra nação europeia desde o fim da 2.ª Guerra.
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Agora vem a má notícia: Durante o primeiro ano desta guerra, a coisa foi relativamente fácil para os EUA e seus aliados. Os americanos foram capazes de fornecer armas, ajudas e inteligência — assim como impor sanções sobre Moscou — e os ucranianos fizeram o resto, arruinando o Exército de Putin e empurrando suas forças de volta para o leste da Ucrânia. Não acho que o segundo ano será assim tão fácil.
Putin, está claro agora, decidiu dobrar a aposta, mobilizando nos meses recentes possivelmente até 500 mil novos soldados para um novo esforço no primeiro aniversário do conflito. Volume é importante na guerra — mesmo que essa massa contenha grandes números de mercenários, ex-presidiários condenados pela Justiça e conscritos sem treinamento.
Putin está basicamente dizendo o seguinte a Biden: Não posso me permitir perder esta guerra e pagarei qualquer preço e suportarei qualquer sacrifício para garantir que ficarei com um pedaço da Ucrânia que possa justificar minhas baixas. E você, Joe? E seus amigos europeus? Vocês estão dispostos a pagar qualquer preço e suportar qualquer sacrifício para manter a “ordem liberal”?
A coisa vai ficar assustadora. E porque ficamos quase uma geração sem uma guerra entre Grandes Potências, muita gente esqueceu o que tornou essa longa era de paz entre Grandes Potências possível.
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‘Punho invisível’
Ainda que eu tenha argumentado no meu livro de 1999, O Lexus e a oliveira, que a explosão massiva de comércio global, negócios e conectividade desempenhava um papel importantíssimo nesta era de paz incomum, eu também argumentei que “a mão invisível do mercado jamais funcionará sem um punho invisível — o McDonald’s não pode sobreviver sem McDonnell Douglas, a fabricante do F-15″. Alguém tem de manter a ordem e fazer valer as regras.
Esse alguém tem sido os Estados Unidos, e acredito que esse papel será testado mais agora do que em qualquer outro momento desde a Crise dos Mísseis em Cuba, de 1962. Os americanos ainda estão dispostos a isso?
Há um novo livro importante que coloca esse desafio em um contexto histórico maior. Em The Ghost at the Feast: America and the Collapse of World Order, 1900-1941 (O fantasma no banquete: Os EUA e o colapso da ordem mundial, 1900-1941), o historiador Robert Kagan, da Brookings Institution, argumenta que, por mais espasmos isolacionistas que os americanos possam ter, a verdade é que, pelo menos ao longo do século recente ou pouco mais, a maioria deles apoiou a aplicação do poder dos EUA para forjar uma ordem mundial liberal que mantinha o mundo inclinado para sistemas políticos e mercados abertos em cada vez mais lugares, de cada vez mais maneiras e cada vez mais frequentemente — o suficiente para impedir que o mundo se tornasse uma selva hobbesiana.
Eu liguei para Kagan e lhe perguntei por que ele percebe a guerra na Ucrânia não como algo em que tropeçamos, mas, em vez disso, como o desdobramento natural de um arco de um século de política externa americana sobre o qual ele está escrevendo. As respostas de Kagan confortarão alguns e inquietarão outros, mas essa discussão é necessária conforme entramos no segundo ano da guerra.
“No meu livro”, afirmou Kagan, “eu cito o discurso sobre o Estado da União de Franklin Roosevelt de 1939. Em um momento em que a segurança dos EUA não estava de nenhuma maneira ameaçada — Hitler ainda não tinha invadido a Polônia, e a queda da França era quase impossível de imaginar — Roosevelt insistiu que havia, contudo, momentos ‘nos assuntos dos homens em que eles devem se preparar para defender não apenas seus lares, mas os princípios de fé e humanidade sobre os quais são fundados suas igrejas, seus governos e sua civilização’. Em ambas as guerras mundiais, e ao longo de toda a Guerra Fria, os americanos agiram não em autodefesa imediata, mas para defender o mundo liberal contra desafios de governos militaristas e autoritários, assim como estão fazendo hoje na Ucrânia”.
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Mas por que apoiar a Ucrânia nesta guerra não atende apenas o interesse estratégico americano, mas também está em linha com os valores americanos?
“Os americanos têm dificuldades contínuas para conciliar interpretações contraditórias de seus interesses — um com foco em segurança dentro do país e outro com foco na defesa do mundo liberal para além das fronteiras americanas. O primeiro dialoga com a preferência dos americanos em ser deixados em paz e evitar os custos, responsabilidades e fardos morais de exercitar poder no exterior. O segundo reflete suas ansiedades enquanto um povo favorável à liberdade, sobre se tornar o que Franklin Delano Roosevelt qualificou como uma ‘ilha solitária’ em um mar de ditaduras militaristas. A oscilação entre essas duas perspectivas produziu tropeços recorrentes na política externa americana do século passado.”
Teóricos de relações internacionais, acrescentou Kagan, “nos ensinam a considerar ‘interesses’ e ‘valores’ como elementos distintos, com a ideia de que, para todos os países, os ‘interesses’ — preocupações materiais, como segurança e bem-estar econômico — necessariamente assumem primazia sobre os valores. Mas não é assim, na realidade, como as nações se comportam. A Rússia após a Guerra Fria desfrutou de mais segurança em sua fronteira ocidental do que em qualquer outro momento na história, mesmo com a expansão da Otan. Mas Putin tem se mostrado disposto a tornar a Rússia menos segura para cumprir as ambições tradicionais da grande potência russa, ambições que têm mais a ver com honra e identidade do que com segurança”. O mesmo parece verdadeiro para o presidente Xi Jinping em relação a recuperar Taiwan.
É interessante notar, porém, que um número crescente de republicanos, pelo menos na Câmara e na Fox News, não compra esse argumento, enquanto o presidente democrata e seu Senado o fazem. E no que dá?
“Debates de política externa americana nunca são apenas sobre política externa”, respondeu Kagan. “Os ‘isolacionistas’ nos anos 30 eram majoritariamente republicanos. Seu maior medo, conforme afirmavam, era que Franklin Delano Roosevelt estivesse liderando o país na direção do comunismo. Em assuntos internacionais, portanto, eles tendiam a ser mais simpáticos com potências fascistas do que os democratas progressistas. Eles gostavam de Mussolini, se opunham à ajuda aos republicanos espanhóis contra o fascista Franco, que era apoiado pelos nazistas, e consideravam Hitler uma fortaleza útil contra a União Soviética.
‘Cruzada global antiliberal’
“Então não surpreende hoje que tantos republicanos conservadores tenham uma queda por Putin, que eles consideram um líder da cruzada global antiliberal. Talvez valha a pena recordar Kevin McCarthy de que os republicanos foram destruídos politicamente por sua oposição à intervenção americana na 2.ª Guerra e só conseguiram ressurgir elegendo um internacionalista, Dwight Eisenhower, em 1952.”
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Mas também há muitas vozes da esquerda perguntando legitimamente: Vale mesmo a pena arriscar a 3.ª Guerra Mundial para retirar a Rússia completamente do leste da Ucrânia? Nós já não machucamos Putin tanto, ao ponto dele não tentar mais nada na Ucrânia novamente no futuro próximo? Chegou a hora de um acordo sujo?
Já que, suspeito, essa questão estará no centro do nosso debate de política externa em 2023, pedi que Kagan começasse a respondê-la. “Qualquer negociação que permita às forças russas permanecer em território ucraniano será somente uma trégua temporária antes da nova tentativa de Putin”, afirmou ele. “Putin está no processo de militarizar completamente a sociedade russa, muito parecido com o que Stálin fez durante a 2.ª Guerra. Ele joga a longo prazo e conta com que os EUA e o Ocidente fiquem cansados diante da perspectiva de um conflito prolongado — como isolacionistas tanto de esquerda quanto de direita do Instituto Quincy e no Congresso já indicaram estar.
“Não há dúvida de que os EUA são falíveis e certas vezes usam seu poder de maneira insensata. Mas se você não é capaz de encarar francamente a questão do que aconteceria no mundo se os EUA não agissem no exterior, você não está levando essas questões difíceis a sério.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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