A palavra "cercadinho" evoca tanto o chiqueiro dos quintais interioranos quanto o pequeno biombo que protege crianças enquanto as mães cumprem tarefas domésticas. Já o espaço onde o ex-presidente interagia com apoiadores popularizou-se como "cercadinho do Alvorada". Reedita-se agora em Orlando como show, estilo beija-mão populista, a preços vips e populares. Na estreia o ex-mandatário do "Brasil acima de tudo" causou: "Pela lei, sou italiano".
O beija-mão era uma tradição de reverência, transmitida da monarquia portuguesa à Corte Imperial brasileira. Membros da elite eram admitidos ao palácio para oscular a mão de Pedro 2º. No show, o ex-presidente enrola-se na bandeira sob um holofote, enquanto espectadores, aparentemente migrantes alheios à realidade brasileira, rezam e lhe oferecem cestas com pão e Nutella.
"Surreal", comentou a revista Time. Não há, claro, comparação plausível entre o rito imperial e a aglomeração do cercadinho, vendida como gabinete de curiosidades, do tipo "neofascista ao alcance de um selfie". O bozoshow é bizarro, logo, estimulado pela mídia. Mas seria esnobismo desconsiderá-lo: é pertinente à compaixão reflexiva.
Sem articular o humano com o político, tende-se a generalizações. Para além da superfície factual, na interioridade mental dos segmentos sociais, faz-se cabível a hipótese dramática do desespero. Não algo como o dos yanomamis, marcados física e moralmente pela opressão sórdida, mas desespero como "a inconsciência dos homens de seu destino espiritual" (Soren Kierkegaard, "O Desespero Humano").
Até mesmo o indivíduo mais desprovido de sentimentos próprios pode ser habitado pela angústia desesperada de não portar um espírito. É um desespero comum à diversidade humana das classes sociais. Nesse estado emocional, o cidadão permite-se àquilo que Kierkegaard chamou de "direito de chicana da Verdade". Ou seja, direito de mentir. Não o perturba estar em erro, pois emoções têm mais força do que a verdade e o espírito. Inútil desmentir, apenas contrapor-se a fake news. A mentira é uma blindagem.
O cercadinho do Alvorada foi laboratório dessa autoimunidade ao verossímil, irradiadora da indistinção entre o rico, o pobre, o troglodita, o civilizado e o mané que votaram aos milhões no ícone do que de mais infame a nação já produziu sob a República. Não que a angústia possa estar ausente de quem optou pela saúde democrática: apenas foi canalizada por emoções lúcidas para uma aposta na vida.
Vale dizer: e quem assim o fez foi por desespero não tão exacerbado como o da figura cristã do diabo, filosoficamente o mais intenso de todos. Dele, autodenominado Legião, Cristo transferiu os maus espíritos aos porcos. É o risco teologal das varas, manadas e cercadinhos.
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