Hoje saiu na Folha uma coluna que poderia ter sido postada aqui, com o título "Saiba por que psicodélicos funcionam melhor contra depressão" e o subtítulo "Ayahuasca e cogumelos agem mais rápido que neurotransmissor por penetrar em neurônios". Como não deu para falar de tudo lá, aqui vai um complemento.
Para quem não viu nem leu: a coluna dá uma longa volta de contextualização para terminar falando do que mais interessa, a pesquisa de David Olson, da Universidade da Califórnia em Davis e da empresa Delix Therapeutics, mostrando com roedores que psicodélicos como a DMT conseguem ativar receptores 5HT2A de serotonina dentro de neurônios.
Ora, a própria serotonina não consegue fazer isso. Esse neurotransmissor, apelidado "hormônio da felicidade", ao contrário dos psicodélicos, não atravessa a membrana celular, indicou o estudo.
"Olson e seus colaboradores sugerem que as diferenças de efeito entre serotonina e diferentes psicodélicos sobre a neuroplasticidade seria dependente da capacidade distinta dessas substâncias em atravessar a membrana lipídica celular e alcançar receptores do tipo 2A localizados no interior dos neurônios", explica Stevens Rehen, neurocientista da UFRJ.
"No final das contas, mais importante do que ter a chave é saber como chegar até a fechadura", resume o brasileiro, que hoje trabalha na empresa Promega e no Instituto Usona em Wisconsin (EUA). Foi Rehen que me chamou a atenção para o trabalho de Olson.
A neuroplasticidade, ou formação de novas conexões cerebrais, parece ser decisiva para entender por que, embora atuando no mesmo receptor, a serotonina não produz efeito imediato nem desencadeia o efeito subjetivo das "viagens" psicodélicas. Nem mesmo quando sua concentração é aumentada nas sinapses pelos antidepressivos ISRS (inibidores seletivos de recaptação de serotonina), como a fluoxetina.
Está dito no meu texto que são preliminares e limitados, pelo baixo número de participantes, os experimentos que comprovam efeito antidepressivo rápido da DMT da ayahuasca e da psilocibina dos cogumelos mal denominados "mágicos". No caso da psilocibina, estudos cada vez maiores, um deles com 233 pacientes.
Alguns leitores entenderam que a coluna foi irresponsável ao supostamente recomendar psicodélicos, coisa que ela não fez. Os testes clínicos com eles são ainda experimentais, embora adiantados no caminho para aprovação nos EUA (como MDMA para transtorno de estresse pós-traumático). E essas substâncias permanecem proibidas, com algumas exceções que este blog tem noticiado.
Uma delas é o uso religioso da ayahuasca, permitido em países como Brasil e EUA, onde dezenas, talvez centenas de milhares de pessoas tomam o chá regularmente, em geral a cada quinzena, sem maiores problemas. Persiste o preconceito, entretanto, e houve quem afirmasse que ela causa esquizofrenia ou que desencadeia surtos psicóticos.
Não há notícia de que ayahuasca cause esquizofrenia. Ao contrário, há observações de que a saúde mental de frequentadores de religiões ayahuasqueiras seja igual ou mesmo ligeiramente melhor que na média da população.
Surtos, sim, podem ser deflagrados por psicodélicos. E é por isso que sacerdotes, xamãs e pesquisadores dessas substâncias entrevistam participantes antes de lhes dar a bebida, recusando-a quando a pessoa tem histórico pessoal ou familiar de psicose.
Nos estudos clínicos com psicodélicos, um histórico desses é critério de exclusão imediata do voluntário. O mesmo vale para problemas cardíacos e consumo não interrompido de outras drogas e alguns medicamentos.
Mas é claro que pessoas e instituições de mentalidade conservadora vão dar destaque aos raros casos de efeitos adversos graves, surtos e mortes para realimentar o preconceito social contra o chamado "flagelo das drogas". Por coerência, deveriam combater a legalidade de álcool e tabaco, que provocam malefícios individuais e sociais muito piores.
De toda maneira, mesmo que um dia venham a ser aprovados como remédios, psicodélicos não serão a panaceia que a fluoxetina e outros ISRSs prometiam ser nos anos 1980. Hoje se sabe que não funcionam para muita gente e podem ter efeitos adversos sérios.
Não existe remédio milagroso. Muito menos para os males da mente contemporânea, atormentada pelos tempos bicudos de pandemia, redes antissociais, mudança climática, fundamentalismo e riscos de guerra generalizada.
A futura terapia apoiada por psicodélicos (PAP) não será para qualquer um. Nem todo mundo estará disposto a enfrentar algumas horas de alterações intensas de consciência e percepção, que podem ser maravilhosas, mas também perturbadoras (só fala em "uso recreativo" quem nunca passou por uma delas).
Terá contraindicações, como as citadas acima. E não funcionará para muita gente, como acontece com um terço dos deprimidos tratados com ISRSs.
A pesquisa de David Olson busca desvendar mecanismos bioquímicos básicos de atuação de psicodélicos no sistema nervoso. O plano de sua empresa Delix é criar moléculas parecidas com eles que produzam a almejada neuroplasticidade sem deslanchar o efeito psicodélico subjetivo ("viagem"), substâncias que ele chama de "psicoplastógenos" e já foram apelidados aqui de "parapsicodélicos".
Muitos psiconautas acreditam que o benefício terapêutico não será o mesmo, ou não tão intenso, sem o profundo mergulho na própria psique propiciado pela ayahuasca e quejandos. Provavelmente estão certos. Mas mal não há em tentar desenvolver remédios que possam ajudar quem não tem como encarar os próprios psicodélicos, por qualquer razão.
Há que torcer pelo sucesso de Olson, ainda que mantendo espírito crítico diante de interesses e distorções empresariais. Há infelicidade demais no mundo para entrar nessa de sommelier de antidepressivos. Lítio, tricíclicos, ISRSs, psicodélicos, psicoplastógenos –quanto mais ferramentas nas mãos de sofredores e curadores, melhor.
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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.
Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".
Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.
Não deixe de ver também na Folha as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":
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