Era de se esperar que o jornalista e escritor Otto Lara Resende, adepto da prática de guardar e anotar papéis, fizesse diários. E ele os fez, em letra miúda, de maneira cuidadosa ou apressada, ao sabor das circunstâncias. Registrou muito de sua vivência em 25 cadernos, que hoje integram seu generoso arquivo no Instituto Moreira Salles.
Habituada a ver um viajante sorridente em meio a 2.186 fotos igualmente preservadas em seu arquivo, eu esperava encontrar, no caderno registrado sob o número 029899 01, anotações compatíveis com as reconhecidas expressões de alegria captadas por fotógrafos, amadores ou profissionais. Não é o que se lê nas cinquenta folhas manuscritas com notas de uma viagem que ele fez à Noruega, em 1967.
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Durante a leitura, pensei não estar encontrando ali o Otto alegre, animado, como se tornou conhecido. Ao final, no entanto, percebi que acabara de ter contato com o outro lado de sua personalidade. Lado, aliás, que ele nunca escondeu: “Sou um poço de contradições”, escreveu ele no perfil biográfico redigido a pedido de Paulo Mendes Campos e incluído em O príncipe e o sabiá, a que acrescentou: “Um falante que ama o silêncio. Um convivente fácil e um solitário”. Para quem conhece essa autoanálise, será possível entender a discrepância entre o jornalista presente a todas as convocações norueguesas e o homem amargurado que voltava ao quarto de hotel.
Otto embarcou no Rio de Janeiro como enviado do Jornal do Brasil, num avião da Scandinavian Airlines (SAS) em 20 de abril de 1967, com três colegas: Caio Pinheiro, de O Globo, Pedro Gomes, da revista Visão, e Ruy Mesquita, de O Estado de S. Paulo, com objetivo de conhecer indústrias norueguesas, o que implicava igualmente aproximar-se das representações diplomáticas de Brasil e Noruega. Embora no início pareça animado, seu entusiasmo mal atravessaria o Atlântico. “Se arrependimento matasse”, escrevia ele nos primeiros dias em solo norueguês, sofrendo de uma conjuntivite que julgava “no auge”, e de gastrite, além de temer um resfriado, que acabaria mesmo por se instalar. Anunciou mil vezes que estava se resfriando, na esperança de que lhe oferecessem um remedinho, mas diante da indiferença de seus novos contatos, resignou-se: “A orfandade aqui é uma instituição”. Lamentaria muito ter entrado naquela “ursada” – foi o que mandou dizer a Bernard Campos, do Jornal do Brasil.
O regime de visitas era intenso, o que o fazia sentir-se em colégio interno. Havia grande movimentação, mas, estranhamente, tudo lhe dava ideia de estagnação. Em Bergen, na costa sudoeste da Noruega, hospedou-se no Hotel Noreg, o mesmo em que ficara dois anos antes, quando visitou o país pela primeira vez. Conferiu as notas feitas em 1965 – e por aí se vê que não só levava um caderno novo como carregava os antigos – e constatou que o quarto agora era o mesmo 407 de antes. Dessa vez, nem se interessa mais pelos fiordes e pelas casinhas de madeira do antigo cais da terra de Grieg. Impõem-se as saudades de casa e o desejo de estar perto do filho André, o futuro economista André Lara Resende, que faz aniversário no dia 24 de abril. “Never more!”, registrava Otto, sombrio como o corvo de Allan Poe.
Entre as tristezas, as mazelas e até mesmo uma depressão leve – é ele quem reconhece –, reponta, no caderno, o humor de Otto Lara Resende. “Durmo depois de lavar a roupa (triste condição)”, anota depois de um jantar seguido de ida a um night club, onde ouvira Tico-tico no fubá e Aquarela do Brasil, tudo certamente preparado para os brasileiros, no irrepreensível estilo escandinavo.
Bacalhau, bacalhau, bacalhau. Não só na variedade de pratos que saboreava. O Gadus Morhua era o assunto dos encontros promovidos nas indústrias de produção do peixe a que Pedro Gomes, baiano de nascimento, insistia em se referir como o “cacau sueco”. De modo geral, a programação não interessava a Otto. Muitas visitas a navios, mais discursos e mais “cacau sueco”, o que o levava a ter “frouxos de riso”, expressão que ele usa com alguma frequência, em meio à falta de apetite para as visitas. Assuntos relacionados à economia não eram o seu forte, embora um determinado tema pudesse despertar-lhe a curiosidade a tal ponto de ser sondado para trabalhar com representações no Brasil. Só o diário pode denunciar o quanto ele sofria de volta à solidão do quarto do hotel.
A impressão de tempo parado o perseguia na capital norueguesa: em Oslo, onde achou “gente pesada e pouco graciosa”, ficou no mesmo apartamento 502 do Hotel Continental em que se hospedara em 1965. Dali saía para o rojão diário, que incluiu, certa vez, visita ao Centro de Desenho Industrial: “Eu com dor de barriga, que suplício”.
Tensão e tristeza devem ter contribuído para a frequência dos achaques. Cansaço. Domingo sem missa. Não bastassem a traqueíte e a bronquite, foi acometido de mais cólicas em Borregaard, durante visita à indústria na cidade de Sarpsborg. Além de tudo, roupas para lavar. Mesmo assim, aqui e ali ressurge o Otto que se conhece: ainda que deprimido, não deixou de dotar de graça algumas observações: “Estou com vontade de voltar porque... esqueci meu aparelho de barba”.
Só depois de dez dias conseguiu se encantar verdadeiramente com a Ranheim Papirfabrikk A S, na cidade de Trondheim, na época a maior fábrica de papel da Noruega, resultado do investimento de 50 milhões de dólares. Apesar de já vender papel para O Globo, a indústria caprichava na sedução aos enviados dos outros jornais. Para completar, até mesmo o presidente da Papirfabrikk era agradável, e os convidou para almoço em sua casa. O estranho foi que a mocinha de 16 anos que serviu a refeição, com a sobriedade de uma criada, só ao final seria apresentada como filha do anfitrião. Passado o espanto, ao refletir sobre a visita à fábrica e o almoço com o chefão, ficou claro para Otto que a igualdade num regime como o norueguês não elimina as distâncias entre o operário e o presidente da empresa. “Mas pode eliminar o privilégio no sentido de que as oportunidades estão abertas a todos. Afinal, sempre haverá homens ‘menos iguais’ que outros”, pensou, citando George Orwell. A competição entre os países da Escandinávia não lhe escapou. Achou que a Noruega, sendo menos importante do que a Suécia, por exemplo, tenta ser mais humana, mais cordial, mais acolhedora. “Onde não há cérebro eletrônico todos querem ter coração. É curioso”, arremata ele, tão sensível quanto atual. Ainda mais curioso, talvez, é que a frase, de 1967, ressoe com tanta força no mundo deste trágico primeiro semestre de 2020.
Foram dezesseis viagens de avião no país de 370.000 km2 espremidos em faixa de Norte a Sul. Restava ao viajante lavar roupa antes de embarcar para Paris, onde ficaria dez dias. A falta de notícias do Brasil o atormentava. “Estou vazio por dentro, nenhuma correspondência, me esqueceram de todo”, escrevia no caderninho no dia 30 de abril, véspera de seu aniversário. No primeiro de maio, seu dia, Oslo amanheceu embandeirada, e ele preferiu acreditar que o ar festivo da cidade era em sua homenagem. Estava fazendo 45 anos e desejou estar em Paris na data, mas a companhia aérea o traiu e a passagem só foi emitida para o dia 2.
“Paris não me anima como de outras vezes. Devia ter trazido Helena. Positivamente, fico órfão, e não sei me desembaraçar.” Dito e feito. Sem sua mulher, errou o endereço do hotel e, ao se instalar, percebeu que esquecera um par de sapatos em Oslo, logo aqueles tão bons, que lhe garantiam flanar em Paris à vontade, sem risco de machucar
os pés.
As saudades não davam trégua, o arrependimento de ter embarcado não cedia, mas o tom do diário certamente muda com a chegada à capital francesa. Encontrava amigos, sentia falta dos que já tinham partido: Schmidt, Paulo Bittencourt e San Thiago Dantas. “Os mortos não estão em Paris.” Hélas!
As anotações no caderno são trepidantes na capital francesa. Não queria deixar de comprar o perfume ou qualquer outro item encomendado por Helena ou pelos filhos, e o fato de não achar a calça de veludo grosso pedida pela filha Cristiana o deixava desolado. Afinal, no perfil autobiográfico declarara: “Como pai, me considero, modéstia à parte, uma mãe exemplar”.
Chega de viagem e de estar longe de Helena e dos três filhos (no ano seguinte nasceria Heleninha, a caçula). “Da próxima vez, pego mil dólares e vou passar uns dias em São João Del Rey”, brincou, excitado com a perspectiva da volta, enquanto, em emoção tão infantil quanto a dos filhos, repetia para si mesmo: “Os meninos certamente matarão aula para me esperar no aeroporto”. Foi pressuroso que deixou a Europa, com olhar compassivo para o seu país: “O Brasil é longe, coitado!”. A exclamação, transposta para 2020, é, mais do que nunca, pertinente.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
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