Kenneth Chang
Agitada e resfriada —mas não mexida—, a água congelada comum se transforma em algo diferente: uma forma recém-descoberta de gelo feita de uma mistura de moléculas com propriedades únicas.
"Isso é completamente inesperado e muito surpreendente", disse Christoph Salzmann, professor de química da University College London, no Reino Unido, e autor de um artigo publicado na semana passada na revista Science que descrevia o gelo.
A água é uma molécula simples que tem sido intensamente estudada por cientistas há séculos: dois átomos de hidrogênio projetando-se em um ângulo de 104,5 graus em forma de V de um átomo central de oxigênio.
A nova descoberta mostra, mais uma vez, que a água, molécula sem a qual se sabe que não existe vida, esconde surpresas científicas ainda não reveladas. Este experimento empregou equipamentos relativamente simples e baratos para revelar uma forma de gelo que poderia existir em outras partes do sistema solar e em todo o universo.
Na vida cotidiana, encontramos três formas de água: um gás em forma de vapor, água líquida corrente e gelo duro e escorregadio. O gelo de nossa vida cotidiana consiste em moléculas de água alinhadas em um padrão hexagonal, e essas treliças hexagonais se empilham ordenadamente umas sobre as outras. A estrutura hexagonal não é bem compactada, e por isso o gelo é menos denso que a água líquida e flutua.
Com permutações de temperatura e pressão fora do que geralmente ocorre na Terra, as moléculas de água podem ser forçadas a assumir outras estruturas cristalinas. Os cientistas conhecem hoje 20 formas cristalinas de água. A vigésima forma de gelo foi descoberta no ano passado.
Além disso, os pesquisadores também documentaram dois tipos de gelo com moléculas mistas, o que eles chamam de materiais amorfos. Como um dos gelos amorfos é mais denso que a água, ele é conhecido como gelo amorfo de alta densidade; o outro, com densidade menor que a da água, é gelo amorfo de baixa densidade. Gelos amorfos não são encontrados na Terra, mas podem ser predominantes no espaço sideral, em cometas, nuvens interestelares e mundos gelados como Europa, uma lua de Júpiter.
Existe até um tipo de água que é líquida e sólida. Em 2018, os cientistas anunciaram a criação da "água superiônica", que era simultaneamente sólida e líquida.
Salzmann e seus colegas não pretendiam aumentar o catálogo de gelos de água. Em vez disso, queriam estudar cristais de gelo muito pequenos, porque pedaços minúsculos de algo às vezes possuem propriedades muito diferentes de pedaços maiores do mesmo material.
Assim, Alexander Rosu-Finsen, um cientista de pós-doutorado no grupo de pesquisa de Salzmann e principal autor do artigo da Science, começou a esmigalhar gelo. O gelo de água foi primeiro resfriado em nitrogênio líquido a -320 graus Fahrenheit (-195,5°C) e depois colocado em um recipiente junto com bolas de aço. Uma máquina então sacudiu o gelo e as bolas de aço, ainda resfriadas em temperaturas ultrafrias, de um lado para outro 20 vezes por segundo, pulverizando o gelo em pedaços minúsculos, processo conhecido como moagem de bolas.
Pense nisso como uma coqueteleira de alta tecnologia.
Então Rosu-Finsen abriu o recipiente.
"Algo completamente inesperado aconteceu", disse Rosu-Finsen, que agora é editor associado da revista Nature Reviews Chemistry.
É muito legal. O que isso nos diz é que ainda há muitas coisas que não entendemos
O material branco dentro parecia o que se esperaria de gelo esmagado, mas havia sido transformado.
O material agora era mais denso e grande parte da estrutura cristalina tinha sido destruída, produzindo um material amorfo. A densidade, no entanto, não correspondia aos já conhecidos gelos amorfos de alta e baixa densidade. Curiosamente, ficou no meio; na verdade, era quase exatamente a mesma densidade da água líquida. Até agora, todas as formas sólidas de gelo, cristalinas ou amorfas, eram significativamente mais densas ou menos densas que a água líquida.
Os pesquisadores o chamaram de gelo amorfo de média densidade, ou MDA.
A batida das bolas de aço aplicou uma força de cisalhamento nos cristais de gelo, o suficiente para derrubar as moléculas de água de suas posições cristalinas, permitindo que fossem compactadas com mais firmeza.
"É muito legal", disse Marius Millot, físico do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, na Califórnia, que liderou o experimento que criou a água superiônica. "O que isso nos diz é que ainda há muitas coisas que não entendemos."
O fato de o gelo amorfo de densidade média ter quase a mesma densidade da água líquida levanta a possibilidade de que seja realmente um vidro, uma cacofonia líquida de moléculas fluindo até esfriar, desacelerar e congelar no tempo sem cristalizar, ainda desordenado.
"Essa é a pergunta chave", disse Salzmann. "O MDA é o copo de água líquida?"
Experimentos de acompanhamento podem adicionar impurezas ao gelo. "Fizemos os experimentos com gelo puro", disse Salzmann. "A próxima pergunta é: o que acontecerá se começarmos a misturar outras coisas?"
As descobertas podem ser úteis para os cientistas planetários. As temperaturas caem dentro do que é encontrado em Europa, e Júpiter exerce enormes forças de maré na lua oceânica gelada, que será visitada e estudada de perto pela Nasa e orbitadores europeus.
"Você obtém exatamente o mesmo tipo de movimento de cisalhamento", disse Salzmann. "A especulação agora é que poderia haver algum MDA no sistema solar externo."
Os pesquisadores também descobriram uma propriedade do MDA que é única entre os gelos de água. Para a maioria dos materiais, se você comprimi-lo e depois liberar a pressão, ele simplesmente volta a ser como era antes. Mas comprimir o MDA e depois liberar a pressão e aquecê-lo liberou uma grande explosão de energia.
Essa energia, liberada à medida que o gelo amorfo recristaliza, pode desencadear terremotos de gelo, por exemplo.
Isso significa que talvez a física do novo gelo possa desempenhar um papel na formação da crosta gelada de Europa e na dinâmica do gelo mais abaixo no oceano da Lua, com implicações para saber se as condições lá poderiam ser favoráveis à vida.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves
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