O esculacho é coisa nossa. Brasileirismo do início do século passado, tudo indica que aportou por aqui na bagagem dos imigrantes italianos. Mas aquele "sculacciare" ia se naturalizar com muita personalidade.
Havia inocência em seu berço: vindo do substantivo "culo", bunda, a princípio esculachar era aplicar palmadas em crianças. Hoje esse tipo de castigo físico é condenado por dez em dez educadores, mas na época era visto como virtuoso.
O próprio esculacho mudou muito desde então. Passou a nomear o ato de repreender alguém de modo rude ou aviltante. Na gíria de bandidos e policiais, virou sinônimo de cobrir de porrada. Tudo bem longe da creche.
Esculachado ganhou ainda, por extensão, a acepção de descomposto, esculhambado, feito com desleixo. Faz sentido. O esculacho não quer só castigar, mas desmoralizar também. Quebrar o espírito. Achincalhar até a última geração.
Quando os soldados do exército invasor estupram as mulheres do país invadido, isso é um crime de guerra —e um esculacho. Quando o presidente homenageia um coronel torturador que enfiava ratos vivos na vagina das prisioneiras, isso é uma imoralidade —e um tremendo esculacho.
O esculacho é uma marca do atual governo brasileiro. Os críticos costumam atribuir ao deboche bolsonarista função secundária, ainda que importante: gerar manchetes e bate-boca, provocando opositores e deliciando governistas.
O papel do esculacho seria o de erguer uma cortina de fumaça e distrair a população das ações que importam na economia, na política etc. Em parte é isso mesmo, mas o esculacho vai além do plano simbólico: mora no coração das realizações governamentais.
Se às vezes é cortina de fumaça, pode ser também a fumaça que denuncia o fogo. O orçamento secreto com que o governo comprou o apoio do centrão zomba do espírito republicano, mas o escárnio, nesse caso, é efeito colateral da corrupção.
O esculacho é político em sentido pleno. Será um deboche a nomeação, para cargos de comando em áreas caras ao pensamento progressista como cultura, meio ambiente e relações raciais, de dois tipos de gente —nulidades cômicas e operadores abertamente hostis às ideias defendidas ali?
Sem dúvida alguma. Mas a passagem de boiada que vem na cena seguinte faz —ou desfaz— políticas públicas de verdade, ultrapassando a simples zombaria.
O poder de corrosão institucional do esculacho fica evidente na campanha de mentiras e insinuações contra a Justiça Eleitoral e o sistema de votação do país. Todo mundo sabe que o objetivo é contratar, à moda de Trump, o caos social como seguro contra a derrota provável nas urnas.
Um caso especialmente ilustrativo de esculacho é a recente concessão da Medalha do Mérito Indigenista a Bolsonaro, um presidente que não apenas falhou em sua missão constitucional de defender os direitos dos povos originários. Fez muito mais, atacou-os sem trégua. Merece a medalha Borba Gato.
Eis uma obra-prima de esculacho: o receptor da medalha sabe que é indigno dela. Não a bota no peito para reivindicar, ainda que fraudulentamente, um naco da glória que ela deveria conferir. A ideia é rir dela, cuspir nela, destruí-la, desmoralizá-la —ou pelo menos tentar.
Cortina de fumaça? Antes fosse. Se o genocídio que vem em seguida fica mais naturalizado assim, isso só demonstra que o esculacho é uma metralhadora giratória capaz de alvejar ao mesmo tempo o passado, o presente e o futuro.
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