domingo, 6 de março de 2022

A batalha perdida?, OESP

 Mario Vargas Llosa*, O Estado de S.Paulo

06 de março de 2022 | 05h00

Ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, as coisas não estão saindo como se acreditava. De imediato, a invasão à Ucrânia provocou uma reação negativa em todo o mundo que excedeu grandemente o que o Kremlin esperava. Nem sequer a China, que a Rússia acreditava ter colocado ao seu lado, a apoiou abertamente: mantém uma atitude prudente, que, sem dúvida, tem a ver com as manifestações hostis que são ouvidas em todo o mundo civilizado. 

Por outro lado, os tanques russos ainda não conseguem controlar Kiev, onde um povo valente e unificado resiste à invasão, ainda que a superioridade militar russa cedo ou tarde conseguirá sem dúvida seu objetivo. 

Já começaram a bombardear bairros residenciais e estações de televisão, o que revela descontrole. Mas seria necessário um assassinato coletivo para controlar uma população indômita e hostil. É óbvio que no futuro imediato os soldados russos passarão tempos difíceis. Já vimos na TV alguns cadáveres de tripulantes de tanques russos aos pedaços, sem que ninguém os recolhesse. 

Mas as medidas de castigo econômico que o Ocidente impôs à Rússia surtiram efeito imediato e todos vimos grandíssimas filas (não fosse esse o caso, inúteis) que o povo russo formou, tratando de sacar seu dinheiro para fazer frente aos gastos correntes, em momentos em que o rublo, depois de ter seu valor de troca arrasado, desaparecia dos bancos. 

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Manifestantes seguram cartazes em uma manifestação contra a invasão militar russa na Ucrânia, pedindo ao presidente Vladimir Putin que pare a guerra, do lado de fora da Embaixada da Rússia em Tel Aviv, Israel Foto: Ammar Awad/REUTERS

Ao mesmo tempo, os bancos ocidentais castigaram apartando os bancos russos do sistema Swift, ou seja, da possibilidade de transacionar e efetuar pagamentos fora do sistema bancário russo. Isso criou uma situação difícil para a população russa, que enfrenta uma escassez corrente de itens de consumo e uma situação de carência em lojas e supermercados. 

De outra parte, a reação do povo russo à invasão não está sendo tão passiva e entusiasta como Putin esperava. Vimos nas principais cidades russas as fornidas manifestações contra a guerra que, até este momento, deixaram mais de seis mil detidos. Isso quer dizer que a abusiva invasão à Ucrânia, favorável à bastante diminuta minoria russa neste país que gostaria de se reintegrar à Rússia, como nos velhos tempos de Stalin, está longe de representar a unidade de uma população dividida e que, apesar das ameaças do poder, ainda se atreve a protestar contra a guerra. 

Ajuda militar

De outra parte, a quantidade de projéteis, balas e forças defensivas que o Ocidente, em geral, e a Europa, em particular, mandam à Ucrânia para apoiar sua defesa ultrapassa grandemente o esperado. Os países da Otan, que tinham garantido sua neutralidade neste caso, foram os primeiros, violando a própria neutralidade, a apoiar a Ucrânia abertamente.

E é natural que ocorra desta forma: o que acontece na Ucrânia faz os demais países europeus temerem que a invasão seja apenas o início de algo que parece muito claro, a obsessão de Putin por reconstruir o velho sistema soviético de países e cidades-satélite que assegurariam a proteção da Rússia de um suposto ataque ocidental. 

De modo que a invasão da Ucrânia tem todas as características de uma operação fracassada do governo russo, de que a Rússia sairá desprestigiada e, provavelmente, arrependida. Além disso, seus industriais e patronos de grandes empresas começam a deixar de ouvir sua voz. Isto é insólito, porque a maioria deles fez suas grandes fortunas graças à amizade de Putin. Por exemplo, Alexei Mordashov, considerado o homem mais rico da Rússia, acaba de se pronunciar de maneira crítica contra a invasão. 

Isto certamente não estava entre as expectativas do governo russo. Putin acreditava que a invasão à Ucrânia seria um passeio para suas tropas e as coisas não foram assim sob nenhum ponto de vista, apesar da linha de 60 quilômetros de tanques que invadiram o país. 

As autoridades ucranianas, de pronto, resistiram firmes de pé, e ainda que centenas de milhares de pessoas tenham fugido para países vizinhos, sobretudo para a Polônia, muitos ucranianos que viviam no exterior regressaram para integrar os grupos clandestinos que resistem ou se preparam para resistir. 

O presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, de sua parte, acaba de pedir, em termos dramáticos, que a União Europeia aceite seu país como membro pleno, para o que existe um ambiente muito positivo: os votos a favor no Parlamento Europeu foram 637, houve 13 contra e 36 abstenções; ainda que as dificuldades de aplicar essa opção de maneira imediata sejam muito grandes e, quiçá, insuperáveis. 

Erros

Mas é seguro que, cedo ou tarde, este será o destino da Ucrânia. De modo que os cálculos de Putin, de assegurar a lealdade da Ucrânia após a abusiva invasão, foram totalmente equivocados. Dela resultará, no médio ou longo prazos, uma incorporação da Ucrânia, sem lugar para dúvidas, à Europa Ocidental e, quiçá, para ser membro da Otan, ou seja, do sistema democrático de defesa do Ocidente com base na liberdade e nos direitos humanos. 

O que motivou o gigantesco equívoco de Putin e seus companheiros de governo a essa invasão abusiva, de inspiração imperialista, que coloca a Rússia em paridade de condições com a invasão de Hitler à Checoslováquia, sob o pretexto de “proteger a população russa” das humilhações que vinha sofrendo? 

A passividade do povo russo, seduzido pela presença à frente de seu governo de um líder relativamente jovem e audaz, que concentrava todos os poderes e pareceu pôr em ordem um país ameaçado pelo caos e pela desunião. Mas a ameaça de uma guerra, com a poeira atômica que cobre a Rússia, despertou o mundo inteiro, que se colocou em marcha para impedir a invasão abusiva e prepotente com que a Rússia, excedendo-se, pretendeu assolar um país pacífico, sobre o qual já exerceu sua prepotência, apoderando-se da Crimeia de uma maneira que o Ocidente não aceitou.

Ameaças

Este precedente, sem dúvida, motivou a mobilização do mundo inteiro a favor da Ucrânia, que surpreende os próprios governos e impulsionou alguns deles, como Suécia, por exemplo, a adotar iniciativas que rompem radicalmente com a independência com que o país atuou durante a 2.ª Guerra. 

A razão é muito simples: desta vez, a Suécia também se sente ameaçada por uma invasão russa que sabe Deus onde acabará. O mundo inteiro se apressou para impedir que, a estas alturas da história, o poderio e a prepotência de um país sejam justificativa suficiente para invadir outro e impor sua política.

É evidente, pelo ocorrido até agora, que Putin se equivocou e tramou uma invasão da Ucrânia que abriu os olhos do mundo inteiro para as intenções do líder russo. As coisas se complicam, desde já, sabendo que a Rússia é o país que tem o maior número de bombas atômicas, que, esperemos, nos cálculos do chefe do Kremlin, não lhe ocorra usar, pondo em perigo a paz do mundo. 

Era esse o perigo caso alguma das superpotências do nosso tempo iniciasse qualquer ação militar: que as ações pudessem chegar ao extremo de usar aqueles pozinhos capazes de acabar com toda a forma de vida civilizada nesta Terra. Tomara que o povo russo, finalmente mobilizado e a favor da paz, seja capaz de pôr fim a esta ameaça. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

*É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA.

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