Quem tem data comemorativa —dia do índio, da consciência negra, da pessoa com deficiência, da comunidade LGBTQ+, etc— é porque está lascado. Se direitos e oportunidades tivessem distribuição equânime, o tributo seria dispensável.
A deferência é simbólica e temporária. Corre uma conversa desnivelada, na qual cidadãos plenos falam a infracidadãos. Há os solidários, os paternalistas, e os homenageadores ocasionais, que derramam louvações, flores e galanteios. No dia seguinte, as rosas murcham, se esfumam as amabilidades e o reconhecimento vira preconceito.
Este 8 de março seguiu o roteiro: homens aplaudindo mulheres em todas as mídias. Mas simpatia não é ação e, no longo resto do ano, ninguém liga, além das interessadas. Políticas inclusivas para mulheres têm sido, quase sempre, produzidas por elas mesmas.
Existem mulheres e mulheres, claro. Uma parte saiu em protesto por menos confete e mais prerrogativa. Já o mundo das conservadoras segue o doméstico. A filha de Ives Gandra honra o pai, em campanha pela família tradicional. A primeira-dama se circunscreve à religião e à filantropia. São estas últimas senhoras, nas palavras do presidente, as "praticamente integradas à sociedade".
Palavra diz muito. Integrar é subsumir: "Nós as auxiliamos. Nós estamos sempre ao lado dela. Não podemos mais viver sem ela." Assim falou Bolsonaro no anúncio do que antes criticara como "Auxílio Modess", a disponibilização de absorventes para quem não os pode comprar. Cerimônia regada a risinhos, gravata rosa e cálculo, já que boa parte do eleitorado feminino lhe nega voto.
Bolsonaro não anda sozinho. A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos acha o governo "cor-de-rosa". Negligenciou o azulão ofuscante do "Ciclo Brasil de Ideias - Mulher", com o ministro da economia, dois candidatos ao governo paulista e os presidentes da Câmara e da República, que resumiu a Bíblia compartilhada: "Assim como a mulher foi feita do homem, assim também o homem nasce da mulher e tudo vem de Deus." O Criador, pelo jeito, mandou não convidar filhas de Eva.
O estilo extravasa a política. O procurador-geral da República deu contribuição. Reforçou a função feminina na família — https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/03/aras-e-criticado-apos-dizer-que-mulheres-tem-o-prazer-de-escolher-a-cor-das-unhas.shtml"mãe" e "filhas"— e de enfeite, destinada ao "prazer de escolher a cor da unha que vai pintar" e "o sapato que vai calçar."
Embora nem sempre se vocalize tão cristalina, a defesa da desigualdade de gênero permeia o cotidiano. Senhores comandam a maioria de governos, partidos, empresas, universidades. Auferem mais prestígio, na forma de prêmios, nomes de rua, estátuas e que tais. Na economia, não importa o ramo, ganham sistematicamente mais. Pesquisa da FGV desta semana estimou em quase 20% a diferença salarial em mesmas posições. São masculinos dois terços do topo da renda.
Por isso, o escândalo ucraniano do MBL —o filho da mamãe e Renan dos Santos, com seu "tour de blonde"— apenas causou porque vazou. O "menino" que trata mulher como objeto de compra, uso e abuso falou no grupo do futebol o que muito marmanjo, inclusive à esquerda, diz no escurinho do zap. A objetificação feminina à boca pequena é recorrente, só pasma se vem à tona.
É o grau de exposição, não o cerne do juízo, o que distingue os machões em cargo público do machistinha nosso de cada dia. Ambos solidários com presidente no grito a uma repórter: "Cala a boca!"
Há muita mulher submissa, mas é cada vez mais volumosa a turma das que, como se viu nesta semana, não se calam. Nem se calarão.
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