terça-feira, 22 de março de 2022

Freud e C.S. Lewis discutem e tiram Deus do absurdo debate entre crentes e ateus. João Pereira Coutinho, FSP

 

Peça em cartaz em São Paulo imagina encontro entre os dois intelectuais que divergem com inteligência e humanidade

  • SALVAR ARTIGOS

    Recurso exclusivo para assinantes

    ASSINE ou FAÇA LOGIN

  • 11

Porca miséria! Estarei em São Paulo na primeira semana de abril. Mas já não vou a tempo de assistir à peça "A Última Sessão de Freud", que deixa os palcos em 27 de março.

É pena. Conheço o texto, notável, de Mark St. Germain, bem como o livro, também notável, de Armand Nicholi, "The Question of God", que inspirou o dramaturgo.

Mas a peça propriamente dita sempre escapou à minha agenda: quando o pano sobe, eu chego sempre tarde demais. Não dá para esticar um pouco, gente?

Citação de um detalhe da pintura A criação de Adão de por volta de 1511, do artista renascentista Michelangelo, que se encontra no teto da Capela Sistina, no Vaticano. Na imagem, em nanquim preto, o dedo de Deus toca a mão estendida de Adão. Em vermelho, um rastro de pincel representa raios divinos, por todo o punho do Criador. Em torno da mão de Adão, desenhos geométricos fazem alusão à física mecânica, ou à toda ciência, de modo geral. Religião e Ciência se encontram
Ilustração publicada em 21 de março - Angelo Abu

É a história do encontro entre Sigmund Freud e C.S. Lewis que, provavelmente, nunca aconteceu. Digo provavelmente porque, segundo Armand Nicholi, Freud recebeu a visita de um "jovem professor de Oxford" em 1939. Teria sido C.S. Lewis?

Essa hipótese animou Mark St. Germain e é fácil perceber por que: se Freud era o supremo não crente, C.S. Lewis era o supremo crente, depois de ter passado a primeira metade da vida na mesma posição ateia de Freud.

É quase irresistível imaginar uma conversa entre os dois sobre o tema mais arcano de todos: Deus.

Para Freud, uma inexistência, claro. Que apenas expressava a nossa incapacidade de enfrentar a vida sem figuras paternas tomadas de empréstimo à infância, altura em que desenvolvemos com o nosso pai uma atitude de rivalidade e admiração.

Essa ambiguidade é transferida para Deus, esse ser imaginário que tememos e amamos em partes iguais, por imperiosa necessidade de proteção.

Para C.S. Lewis, o argumentário racional de Freud não escapa a uma análise igualmente racional. A nossa ambivalência em relação ao pai não deveria nos jogar imediatamente para os braços de Deus.

Poderia até nos afastar desse ser, sobretudo quando a parte dolorosa dessa relação ambígua é mais pronunciada. Quem deseja mimetizar uma infância infeliz?

Não sei o que responderia Freud à observação. Mas sei, como se lê na peça, que a inexistência de Deus não se limita às nossas necessidades psicológicas mais primevas. O clássico problema do mal não escapou a Freud: como justificar a existência de um Deus bom e onipotente quando o sofrimento que existe no mundo desautoriza tal fantasia?

C.S. Lewis oferece a resposta clássica também: são os homens, dotados de livre escolha, que trazem esse sofrimento.

Não somos máquinas programadas por um criador tirânico. Somos seres humanos capazes de decidir o caminho que tomamos. E, por vezes, esse caminho nos afasta do bem e da virtude.

E quando esse sofrimento não é causado pelos homens, mas pelos insondáveis mistérios da natureza? Terremotos, doenças, pestes. Onde está Deus perante esse desfile macabro? Que tem ele a dizer? Como afirmava Freud, se Deus existisse, seria ele a ter que se justificar perante os homens, e não ao contrário.

C.S. Lewis rebate: não podemos confundir o amor de Deus com noções vulgares de gentileza ou bondade. Talvez o amor de Deus inclua a inevitabilidade do sofrimento para que as suas criaturas se tornem melhores.

É uma hipótese intolerável para Freud, que sofria penosamente com um câncer na boca. Só por piada o sofrimento nos aproxima de Deus quando todo o nosso corpo, toda a nossa alma, conspira na dor para o repudiar.

Normalmente, discussões entre crentes e não crentes são a coisa mais absurda do mundo. É como escutar um cego a falar com um surdo. E o surdo a tentar lhe mostrar as cores de uma paleta.

O resultado desses encontros resvala quase sempre para a gritaria. O cego acusa o surdo de não escutar. O surdo acusa o cego de não enxergar.

Por outras palavras: em mentes vulgares, a fé e a ciência se convertem em puro proselitismo, a arma preferida dos fanáticos.

Que a fé e a ciência sejam duas formas de habitar o mundo, com linguagens e sensibilidades distintas, é algo que não passa pela cabeça dos zelotes.

Se Freud e C.S. Lewis alguma vez se encontraram, imagino a conversa como Mark St. Germain a imaginou na sua peça: um duelo irônico e erudito entre dois homens que, diferenças religiosas à parte, amavam a mesma obra (o "Paraíso Perdido" de John Milton); conheciam o sofrimento de perto (ambos eram sobreviventes de lutos dilacerantes); e que procuravam responder às mesmas perguntas —sobre Deus, a felicidade, o sentido da vida e a inescapável realidade da morte— com inteligência e humanidade.

Tão longe e, no entanto, tão perto.

Nenhum comentário: