domingo, 6 de março de 2022

Marcus André Melo - 'Essa Rússia Americana', FSP

 6.mar.2022 às 16h00

Gilberto Freyre enxergou traços da Rússia entre nós quando se referiu ao Brasil como "essa Rússia Americana", em "Casa Grande & Senzala" (1933), e mesmo antes. O foco de sua análise são as relações de sadismo e gosto pelo mando resultantes da escravidão e que perpassavam a vida brasileira, da esfera sexual à política, irradiando-se "no gosto de mando violento ou perverso que explodia no senhor de engenho ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública".

E acrescentava "gosto que se encontra abrutalhado em rude autoritarismo num Floriano Peixoto". E conclui que o mandonismo tem sempre encontrado vítimas em quem exercer-se com "requintes sádicos, deixando até nostalgias logo transformadas em cultos cívicos, como o do Marechal de Ferro".

Em relação à psicologia política argumentou que "o que o grosso do que se pode chamar ‘povo brasileiro’ ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático" (como não lembrar de Putin?). A análise aqui é descritiva, não normativa; Freyre vaticinou o homem forte que viria a inflamar a imaginação política no país sob a ditadura do Estado Novo e sob a democracia populista.

Na "Rússia americana", conclui "as expressões de mística revolucionária, de messianismo, de identificação do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício de vida ou de liberdade pessoal" se vê "menos a vontade de reformar ou corrigir vícios de organização política que o puro gosto de ser vítima ou sacrificar-se".

Populismo, messianismo, vitimismo. Sim não é à toa que a Rússia é o berço dos Narodniks (populistas), que inclusive deram origem à expressão populismo.

Rússia e Brasil eram monarquias com territórios continentais tendo em comum as chagas da escravidão e da servidão prolongadas. Mas o Brasil tinha liberdade de expressão e um monarca "orgulhoso de sua tolerância" em relação à oposição, como afirmou Joaquim Nabuco.

Os presidentes Jair Bolsonaro (Brasil) e Vladimir Putin (Rússia), durante encontro em 16 de fevereiro no Kremlin
Os presidentes Jair Bolsonaro (Brasil) e Vladimir Putin (Rússia), durante encontro em 16 de fevereiro no Kremlin - Mikhail Klimentyev/Sputnik/AFP

A divergência radical de trajetória acentuou-se com a Revolução de 1917, e o totalitarismo resultante. Enquanto isso, a República Velha foi um regime semicompetitivo. Tivemos as ditaduras de Vargas e a Militar; mas, na República de 46, um regime multipartidário competitivo surgiu e superou crises. Desde 1988, o regime assistiu a três alternâncias de poder; na Rússia, não houve uma sequer alternância pacífica e competitiva. .

Os traços essenciais do populismo nunca nos abandonaram: narrativas contrapondo elites corrompidas e povo virtuoso; e líder como expressão direta deste último, sem intermediários como partidos ou sem estar limitados por instituições de controle ou separação de poderes.

Sim, no momento, uma Rússia palpita entre nós.


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