domingo, 6 de março de 2022

Como Putin ainda pode desgraçar a Ucrânia e o resto do mundo, VTF, FSP

 

A gente lê e ouve dizer que os militares russos podem fazer com Kiev o que fizeram em Grozni, na Primeira Guerra da Tchetchênia (1994-96). Os russos quase cercaram e passaram a bombardear a capital da Ucrânia e outras cidades a fim de impor uma rendição.

Pode ser. Mas Grozni é outra história. Se Vladimir Putin fizer na Ucrânia o que Boris Ieltsin fez na Tchetchênia, terá perdido a guerra de vez.

Ainda assim, Kiev logo ficará sem combustível, talvez sem eletricidade, água, celular, internet e terá pouca comida, como ora a cidade portuária de Mariupol. O povo vai lutar nas ruas ou, no caso extremo e tchetcheno, entre escombros? A resposta importa além da preocupação humanitária ou da curiosidade mórbida.

De costas, vestida de calça azul escura e blusa azul clara, mulher observa homem que carrega uma bicicleta dentro de um prédio de tijolos com as paredes destruídas
Homem retira sua bicicleta de prédio residencial destruído por bombardeios russos em Irpin, nos arredores de Kiev - Serhii Nuzhnenko - 2.mar.2022/Reuters

Duração e tipo de conflito vão dizer algo sobre a crise econômica na Rússia e no resto do mundo. A situação é alarmante. Como se viu, a gente já discute se pode faltar fertilizante para as lavouras que sustentam o Brasil e também suas exportações. Já temos garantido um pouco mais de inflação de comida e combustíveis.

A invasão de Grozni levou uns quatro meses. Morreram cerca de 25 mil civis, cerca de 6% da população (mas mesmo as melhores contagens são disparatadas). A Rússia perdeu pelo menos 5.000 soldados.

A Tchetchênia não era a Ucrânia. Era e é uma república russa, ainda que sob porrete imperial, com uma população de "etnia" diferente e 95% muçulmana. O país era tão pobre, na média per capita, como então a Índia (um terço da renda per capita brasileira. Aliás, a Ucrânia é um pouco mais pobre do que o Brasil). Quase ninguém no "Ocidente" ligava para os tchetchenos, tratados como aqueles subdesenvolvidos esquisitos que sempre morrem muito, como muçulmanos em geral e sírios, iraquianos, afegãos, líbios, tutsis, sudaneses, etíopes etc.

Os ucranianos são católicos ortodoxos, "irmãos dos russos", na propaganda putinista, e "louros de olhos azuis", como se ouviu em tanto relato racista sobre esta guerra. Moram em uma espécie de estado tampão na porta da Europa central, quintal deste novo e admirável mundo velho da disputa de zonas de influência. A Rússia tem bala nuclear.

Os relatórios sobre o conflito na Tchetchênia contam de saques, estupros, tortura, execuções, o pacote habitual mesmo de guerras louras de olhos azuis recentes na Europa, como no desmantelamento da Iugoslávia, nos 1990. Os militares russos apanharam. Foram para a guerra com recrutas mal alimentados, abastecimento precário, equipamento caindo aos pedaços e generais cretinos no comando. A União Soviética tinha acabado de ir à breca, a Rússia empobrecera pavorosamente.

A Rússia tem artilharia e aviação para reduzir a Ucrânia a uma paisagem lunar com ruínas e cadáveres em dias. Apesar do morticínio já atroz, tem sido "comedida", como diz qualquer analista militar. Aparentemente, quer tomar Kiev e a segunda maior cidade, Kharkiv, daí riscar uma linha até o sul, perto da Crimeia, cortando o país pelo meio, tomando o leste, cercando e aniquilando o que sobra das melhores tropas ucranianas, além de ocupar o litoral inteiro, diria um resumo rápido de relatórios de centros de estudos militares e estratégicos.

Em ritmo comedido, isso deve levar semanas —dez dias já tumultuaram o comércio de petróleo, trigo e milho. Em menos de um mês, a população russa vai ver lojas vazias, verificar o quanto empobreceu e terá noção dos anos de dureza por vir. Mas pode ser um colapso não muito diferente do Brasil pós-2013. Difícil imaginar que isso possa abalar Putin. Há mais risco de a desgraça se arrastar do que uma reprise tchetchena: um Vietnã em cápsula, virado do avesso, com veneno de crise econômica.

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