Há cães mais capazes de sofrer com os outros que o velhote de Copacabana
Um conhecido adágio diz que a primeira vítima da guerra é a verdade. Como o país já se engalfinhava numa batalha de narrativas ao sobrevir a pandemia de Covid-19, a segunda a cair com os 8 milhões de doentes e 430 mil mortos no mundo, 43 mil deles no Brasil, foi a compaixão.
A imagem acabada do surto nacional de rudeza ofereceu um homem não identificado, na areia de Copacabana, ao derrubar cruzes que simbolizavam a mortandade do novo coronavírus. O taxista Márcio Antônio do Nascimento, pai de Hugo, 25, morto com a Covid-19, foi atrás e ergueu uma a uma, sendo por isso xingado de comunista.
Seria bom saber o nome do vândalo bolsonarista para estampá-lo aqui, mas no fundo pouco importa. Desse naipe há milhares, parece que um terço da população formado por incapazes de se abater com tantos óbitos e de se identificar com o sofrimento alheio. Incapazes de compaixão.
Não se usa muito essa palavra hoje em dia. Ficou mais comum falar em falta de empatia, como se o vocabulário da psicologia tivesse o dom de amenizar o que não passa de uma deformidade moral causada pelo fanatismo ideológico (outros dizem que ela já grassava e que a eleição de 2018 só eliminou o pudor de exibi-la).
O dicionário afirma que tal faculdade é exclusiva de seres humanos, mas já vi cachorros mais capazes de sofrer com os outros que o desnaturado de Copacabana. Não será surpresa se, vindo sua identidade à tona, revelar-se um militar aposentado.
“Fiquei muito triste com essas pessoas, porque estou vendo isso em amigos próximos”, disse o taxista a Chico Alves, do UOL. “Parece que perderam a razão, não dá nem para você conversar. Parece que não pensam mais. É puro ódio.”
Verdade e compaixão não são, contudo, as únicas vítimas da pandemia. Em sentido figurado, note bem, porque de cadáveres de carne e osso estamos fartos.
A longa relação de baixas prossegue com a ciência. Teve seu prestígio fulminado tanto pela equiparação com opiniões e convicções de ignorantes quanto pela leviandade com que é invocada por governadores fariseus, dispostos a relaxar ainda mais suas quarentenas meia-boca em meio à alta sustentada dos casos e mortes —começando pelos shoppings e não pelas escolas, como bem lembrou Demétrio Magnoli.
Com a Covid-19 perece também a reputação de instituições antes vistas como faróis da racionalidade, como os CDCs (centros de controle e prevenção de doenças dos EUA) e a OMS (Organização Mundial da Saúde). A primeira pisou na bola atrasando a homologação de testes no país mais rico do mundo, e a segunda, ao descartar no início da pandemia o uso generalizado de máscaras.
Ainda no campo da pesquisa científica, tomou um balaço a sacrossanta “peer review” (revisão por pares). O esquema de pareceres não remunerados por especialistas anônimos deveria, supostamente, filtrar estudos ruins e impedir sua entronização em periódicos de renome como The Lancet.
A revista britânica, entretanto, publicou artigo sobre Covid-19 e cloroquina baseado em dados de 96 mil pacientes que, tudo indica agora, não existem. Esse expediente artesanal de auditoria não funciona direito no modo de produção atual da ciência, com milhões de pesquisadores e dezenas de milhares de periódicos.
Por fim, no cemitério de compaixão que Jair Bolsonaro abriu no Planalto, está com o pé na cova o que restava de dignidade no Exército e, por contaminação, nas Forças Armadas. A corporação, que já teve um marechal Rondon, hoje se dedica a ocultar vítimas no Ministério da Saúde, onde deveria trabalhar para mantê-las vivas.
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