domingo, 4 de novembro de 2018

Moro no governo dos 'humanos direitos', Elio Gaspari, FSP

Ele conhecerá outro lado da corrupção nacional, aquele em que se desrespeitam as prerrogativas dos cidadãos

Sergio Moro lustrou a biografia de Jair Bolsonaro e de seu futuro governo ao aceitar o superministério da Justiça. Foi um tiro na mosca, pois seu trabalho à frente da Lava Jato tornou-se um marco na história da política nacional, faxinando a corrupção do andar de cima. 
Ao sentar na cadeira, será apresentado a outro tipo de corrupção sistêmica, aquela que ofende os direitos dos cidadãos. Ele entrará num governo em que o futuro ministro da Defesa, general da reserva Augusto Heleno, disse que “direitos humanos são basicamente para humanos direitos”.
Desfolhando as mazelas da criminalidade nacional, acrescentou: “É um absurdo tratar isso como uma situação normal. É situação de exceção que merece tratamento de exceção”. 
O futuro governador do Rio de Janeiro, oficial da reserva da Marinha, singra um discurso apocalíptico e anuncia que “não vai faltar lugar para colocar bandido, cova a gente cava e presídio, se precisar, a gente bota em navio em alto mar”.
Pura demagogia, e Witzel conhece a história dessas cadeias flutuantes. Elas se chamavam presigangas e eram usadas na Colônia e no Império. A última presiganga de que se tem notícia funcionou no navio Raul Soares, onde puseram presos políticos em 1964. 
Os discursos repressivos de hoje têm amplo apoio popular, o que os torna mais perigosos, pois quando ficar demonstrada a vacuidade do palavrório, os demagogos mudarão de assunto. 
Sergio Moro diz que a sua prioridade será o combate à corrupção e ao crime organizado. Por falta de experiência na área criminal do andar de baixo, descobrirá isso quando cair sobre sua mesa o caso de alguma roubalheira que usava um posto de gasolina da Baixada Fluminense para lavar dinheiro da corrupção e do tráfico.
Puxando os fios, como ele fez em Curitiba, será fácil descobrir poderes que se instalaram no século passado, sobreviveram à ditadura, aninhados nos desvãos dos DOI e ressurgiram com a redemocratização, sambando na avenida e negociando nos palácios. 
Hoje, como sempre, os ferrabrazes ganham desenvoltura quando sentem-se amparados pela opinião pública. Alguns ministros da Justiça, como Seabra Fagundes e Milton Campos, sentiram o cheiro de queimado e foram-se embora. Outros, como o professor Luís Antônio da Gama e Silva, redator do AI-5, inebriaram-se. Cada um escolhe seu caminho e Moro escolherá o seu. 
Pode-lhe ser útil a lembrança do que ocorreu com Carlos Medeiros Silva quando sentou naquela cadeira, em 1966. Um coronel que servia no gabinete apresentou-se: “Ministro, vim conhecê-lo. Sou o representante da linha dura aqui no ministério”.
Medeiros era um mineiro miúdo e discreto. Cioso da autoridade, sobretudo da sua, respondeu: “Coronel, agradeço muito seus relevantes serviços, mas o senhor está dispensado. Agora, o representante da linha dura aqui sou eu”.

O ‘POSTO IPIRANGA’ CONTATOU MORO

“Isso já faz tempo, durante a campanha foi feito um contato”, disse o general da reserva Hamilton Mourão na quarta-feira.
O vice-presidente eleito referia-se à primeira sondagem da equipe do candidato Jair Bolsonaro para atrair o juiz Sergio Moro. O intermediário, segundo o general, foi Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” do capitão.
Segundo Moro, “isso não tem uma semana”. Portanto, teria acontecido depois do dia 27 de outubro. Mourão falou em “semanas”. Quantas?
Moro e Guedes prestariam um grande serviço à moralidade pública se esclarecessem a data precisa desse contato, até porque o próprio presidente eleito mostrou-se confuso ao tratar do episódio.
O esclarecimento seria desnecessário para qualquer outra pessoa, mas Moro interferiu no processo eleitoral no dia 1º de outubro, quando liberou um trecho da colaboração do ex-ministro petista Antonio Palocci. Foram 11 páginas de parolagem que ganharam a previsível repercussão, pois faltavam seis dias para o primeiro turno.
O “contato” teria ocorrido “durante a campanha”, o que é esquisito, mas seria jogo limpo. Se ele aconteceu antes da liberação do depoimento de Palocci, teriam sujado o jogo e a conduta de Moro deveria ser analisada pelo Ministério Público e pelo Conselho Nacional de Justiça.
A ação do Judiciário está contaminada pela onipotência. Felizmente o Supremo Tribunal Federal derrubou todos os atos relacionados com o arrastão realizado em 17 universidades de nove estados nas últimas semanas. Todas as ações foram determinadas por juízes.
No início de outubro completou-se um ano do suicídio de Luiz Carlos Cancellier, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, mandado para a cadeia por uma magistrada e proibido de entrar na instituição.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota, pretendia votar em Bolsonaro, mas digitou 13. Resolveu fazer uma assinatura da Folha de S.Paulo para entender como o presidente eleito acabará com o jornal de Octavio Frias de Oliveira e de seus filhos. 
Lendo o que disseram Jair Bolsonaro e seus oráculos, o governo pretende cortar a publicidade oficial de jornais e emissoras que mentem. Por cretino, Eremildo teme que acabem aqueles que recebem publicidade oficial para mentir. 

MERCADO E 'MERCADO' 

Paul Volcker acaba de publicar nos Estados Unidos um livro de memórias. Nele conta a sua épica batalha para derrubar a inflação de dois dígitos no final do século passado. É uma ode ao serviço público, escrita por um funcionário que, aos 91 anos, ainda usa o roupão que comprou em 1953. 
Com 2,01 metros, Volcker foi para a direção do Fed em 1979. Ganhava US$ 110 mil anuais e mudou-se para Washington com US$ 57.500. Alugou uma quitinete de estudante e, uma vez por semana, levava para a casa da filha suas roupas sujas. A mulher do homem mais poderoso da finança mundial, diabética e sofrendo de artrite reumática, ficou em Nova York, teve que arrumar um emprego e alugou um dos quartos do apartamento do casal. 
Para a turma do papelório:
Volcker refere-se dezenas de vezes ao mercado. Num trecho, lidando com o que seria a credibilidade do presidente do Fed na praça, escreveu “mercado”, entre aspas. Quem vive no Brasil sabe como são diferentes o mercado e o “mercado”. 
Para quem está de olho em um cargo na ekipekonômica de Bolsonaro: 
Um dia Volcker foi chamado à Casa Branca e levado para a biblioteca (onde não haveria grampo, acredita). Lá, diante de um silencioso presidente Ronald Reagan, o chefe da Casa Civil, James Baker, disse-lhe: “O presidente ordena que você não suba os juros antes da eleição”.
Volcker conta: “O que fazer? O que dizer? Fui-me embora, sem abrir a boca”.
Reagan já morreu, mas o chefe da Casa Civil, Baker, que está vivo, contestou apenas o fraseado e a palavra “ordena”. De qualquer forma, os juros ficaram onde estavam.
Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

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