Na contramão da tendência mundial, país praticamente se desfez de sua malha ferroviária; para especialistas, quadro é reversível
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“Quem viajou de trem, jamais esquece. É como o primeiro amor”. É assim, saudosista, que Orlando Clemente, o Seu Orlando, relembra os tempos em que a ferrovia era parte intrínseca do seu cotidiano.
A conversa se dá em uma antiga estação de trem desativada na cidade de Valinhos, na região metropolitana de Campinas, e as lembranças fazem com que seus olhos ainda consigam ver a – outrora – intensa movimentação na plataforma, que agora serve de passagem para os trabalhadores de uma grande empresa de cartonagem que fica atrás da antiga estação – e de abrigo para algumas pessoas em situação de rua e seus cachorros, atentos à linha férrea quando alguma locomotiva se aproxima.
Orlando tem motivos de sobra para lamentar o tempo que ficou na memória. Foi maquinista, dedicando-se, orgulhosamente, a vida toda ao transporte ferroviário. “Quando passava por regiões com casas, as pessoas ficavam acenando. Eu retribuía com uma buzinada, o que deixava todo mundo mais feliz ainda. Eu ficava me sentindo todo cheio de alegria”, lembra Orlando.
A ferrovia no Brasil foi sucumbindo pouco a pouco ao longo do último século. Viveu seu apogeu expansionista até a década de 1920, porém a queda da Bolsa de Nova York, em 1929, trouxe consequências econômicas negativas para o negócio cafeeiro, principal engrenagem da malha ferroviária, responsável pelo escoamento do “ouro verde” brasileiro.
“A ferrovia no Estado de São Paulo está intimamente ligada à expansão da cultura cafeeira. Até o início do século XIX, o transporte do café para portos próximos das regiões produtoras era feito por tropas de mulas, os tropeiros. Com o aumento da produção, foi preciso pensar em uma forma de melhorar este transporte, que foi quando surgiu a primeira iniciativa da estrada de ferro que é a São Paulo Railway [cuja linha foi aberta em 1867]”, contextualiza o professor Carlos Alberto Bandeira Guimarães, do Departamento de Geotecnia e Transportes da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp. “Foi uma ferrovia tão lucrativa que, em 90 anos, nunca se preocuparam em expandi-la”, acrescenta, lembrando que expansões a partir dela foram sempre feitas com capital estrangeiro.
Desequilíbrios financeiros no início do século XX trouxeram problemas para a expansão e manutenção das ferrovias, dando início ao processo de estatização de empresas ferroviárias. “Até meados dos anos 1940, praticamente todas elas [companhias ferroviárias] já eram estatizadas, não só no Estado de São Paulo, mas em nível federal”, aponta Guimarães.
Para o transporte de passageiros, lembra o docente, também se priorizou o meio rodoviário, fomentando o uso de ônibus e carros. Essa opção, segundo Guimarães, tornou a logística brasileira deficitária e incompleta, com este vazio ferroviário, quando comparada com outros países de grande extensão territorial, como é o Brasil.
Mesmo privatizadas, muitas das tradicionais companhias ferroviárias ainda operaram até início da década de 1970, quando foram unificadas. Na linha do tempo abaixo, é possível ver quantos quilômetros algumas companhias famosas no Brasil cobriam no período pós II Guerra, quando o trilho ainda era o principal caminho a se seguir tanto em direção ao oceano quanto aos rincões do interior.
Guimarães é enfático quanto à principal causa do desmantelamento ferroviário. “É o desgoverno, mudança de governo abrupta. Um pensa de um jeito, sai e vem outro que pensa de outro e não está nem aí com o que foi feito antes. Se você olhar a história da ferrovia no Brasil, é isso, falta interesse, muda governo e aí muda a visão, não tem visão estratégica”.
“Temos um transporte ferroviário que transporta muita carga, mas é insignificante no transporte de passageiros porque foi quase totalmente privatizado e é altamente deficitário”, aponta Antonio Corrêa Campos, ex-economista da Fepasa (Ferrovia Paulista S.A).
Mesmo transportando um número ainda expressivo de carga, a malha ferroviária brasileira é muito menor quando comparada à de outros países com vasta extensão territorial.
Segundo dados da Association of American Railroads (AAR) e da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), os Estados Unidos têm, em seus 9,83 milhões de km² de extensão, uma malha ferroviária de 224,79 mil km. Já a China tem 191,27 mil km de malha ferroviária espalhada em uma extensão territorial de 9,60 milhões de km². Enquanto isso, o Brasil, com uma extensão de 8,52 milhões de km², dispõe de 28,54 mil km de malha ferroviária. Para mensurar a quilometragem ferroviária brasileira, a Argentina, com uma extensão territorial de 2,78 milhões de km², possui uma malha ferroviária de 36,92 mil km. São quase 10 mil km a mais em um país com quase um terço da extensão territorial do Brasil.
Correndo atrás do bonde
No início de setembro, o governador de São Paulo, Márcio França, anunciou um projeto de trem ligando a capital do Estado a Campinas, passando por Jundiaí. A expectativa é oferecer quatro viagens diárias transportando mil pessoas entre a Estação Cultura (Campinas) e Estação da Luz (na capital). O projeto se apresenta como uma boa alternativa ao transporte rodoviário, que a cada dia tem resultado em trânsito caótico tanto nos perímetros urbanos como em seus arredores. “Certamente, vamos tirar muitos veículos do caminho que entopem toda a cidade”, declarou o governador à época.
É uma tentativa de melhorar o tráfego de pessoas entre interior e capital do Estado, porém seria aplicável de forma efetiva em outros trechos? “É viável, é possível e necessário implantar, mas mediante projetos executivos muito bem feitos”, diz Corrêa Campos.
“Isso diminuiria muito o impacto ambiental, entre muitos outros benefícios. Em qualquer cidade no mundo desenvolvido, há subsídios para o transporte ferroviário”, completa Guimarães, que ressalta a importância da competitividade para o negócio. “Não conseguiria enxergar uma operação desta como algo para se ganhar dinheiro, por isso tem que ser barato e bom. Precisa ter densidade de viagem e um preço competitivo com os ônibus”.
Há futuro?
Segundo a ANTF, um vagão graneleiro é capaz de carregar a mesma quantidade de soja que 2,5 caminhões bitrens. Além disso, para transportar esta carga, consome 70% menos combustível do que seu equivalente rodoviário, contribuindo para um transporte 52% mais barato (R$ 89,18 x R$187,46 para granel sólido agrícola, por mil TKU) e 66% menos poluente.
A Associação tem uma agenda de propostas para o novo governo (2019-2022), na qual solicita prorrogação antecipada dos contratos de concessão, ora em curso, que se conclua até 2019 e que sejam priorizados os projetos ferroviários já em curso e os tecnicamente já qualificados para promover um aumento da malha ferroviária no País, com recursos públicos ou privados.
Hoje, no Brasil, segundo a ANTF, há seis grandes empresas que operam a maior parte da malha ferroviária ainda em uso. A maior parte, claro, para o transporte de cargas. Desconsiderando algumas iniciativas que utilizam trechos curtos para transportar passageiros explorando o turismo com o intuito de levantar recursos para manter associações como a ABPF – Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, a Vale opera duas linhas que transporta anualmente cerca de 1 milhão de passageiros por longos trechos: a linha Vitória-Minas e a linha Carajás.
Nas imagens abaixo vemos quantos quilômetros de malha cada uma dessas seis empresas opera, sua principal carga transportada e em quais regiões transitam.
“O ideal é que todos os modais sejam desenvolvidos, modernos e extremamente compatíveis. E, para isso, seria preciso ter malhas interligadas trabalhando em paralelo e harmoniosamente, o que não é o caso do Brasil”, pondera Corrêa Campos.
Um sistema de transportes deficiente pode facilmente comprometer o abastecimento de vários produtos indispensáveis, como ficou evidenciado na greve dos caminhoneiros de maio de 2018, quando o Brasil praticamente parou principalmente devido à falta de combustíveis nos postos de venda.
“Mas isso não é um risco só aqui”, ressalta Guimarães. “Quando teve a greve dos caminhoneiros na França contra a reforma da previdência, durou três dias e parou o país. Lá tem muito trem de passageiro, mas para carga também tem problema. Os caminhões tomaram o transporte de carga porque tem o fator de entregar de porta em porta”.
Mas, segundo o docente, ainda é possível reverter o quadro para que o futuro da logística no Brasil seja mais eficiente. “Um equilíbrio entre os modais seria o ponto-chave para uma política de transportes, unindo ferroviário, rodoviário e fluvial. Ter uma carga e transportá-la pelo modal mais adequado em um sistema de transporte todo integrado”, diz Guimarães.
Seu Orlando dá a solução de forma assertiva. “Antigamente, passava na TV um desenho chamado ‘Os Jetsons’. [A animação] Era futurista, já tinha transporte subterrâneo, terrestre, e aéreo, tudo funcionando bem. É o que devíamos ter”, arremata o ex-maquinista.
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