Machado de Assis foi pioneiro no estudo dos distúrbios mentais camuflados
Hipócrita leitor: não espere nada de mim. Sou bicho preconceituoso e intolerante, mesmo quando não quero. Sobretudo quando não quero.
Os meus preconceitos são vastos, como oceanos de maldade que tudo afogam em cinismo e irrisão. Culturas, povos, sexos, minorias —nada escapa. Antes de a razão calçar as botas, já os meus preconceitos deram a volta ao mundo (obrigado, Mark Twain).
Mas que dizer daqueles que não têm preconceitos e, pior, declaram ufanamente que vivem de cabeça limpa? Devemos invejar esses seres?
Um pouco de calma. É preciso ter em conta os “preconceitos inconscientes”. A ciência, sempre incansável, debruça-se sobre esse abismo. E garante que uma alma pura nunca é tão pura como pensa.
Que o diga a professora Dolly Chugh, psicóloga social, entrevistada pelo Wall Street Journal. Afirma a doutora que todos temos “preconceitos inconscientes”. Eles podem surgir quando vemos uma mulher aos comandos de um avião (e sentimos um arrepio de medo pela espinha abaixo). Ou quando um mendigo nos pede esmola (e escutamos um “vai trabalhar, vagabundo” ecoando na nossa alma).
Para a professora Chugh, esses preconceitos influenciam os nossos comportamentos e não contribuem para um mundo melhor.
É por isso que muitas empresas já obrigam os seus trabalhadores a frequentarem certos seminários. O objetivo é “revelar”, por uma espécie de “auto de fé” científico, os demônios que se escondem por trás da máscara gentil.
Um dos instrumentos para proceder ao exorcismo é o “implicit association test”, inventado em Harvard, corria 1998. Fato: os pais do teste sempre fizeram uma distinção entre ter certas crenças (negativas) sobre pessoas ou minorias e praticar certas ações (negativas também) contra elas. A primeira asserção não conduz à segunda.
Mas se é possível cortar o mal pela raiz, produzindo um ser humano perfeito e limpo até nos seus pensamentos, por que não tentar?
Quando lia sobre o tema, sorri. E então pensei que o Brasil foi pioneiro nessa área quando, em 1882, produziu um dos primeiros documentos sobre distúrbios mentais camuflados. O autor dava pelo nome de Joaquim Maria, embora seja mais conhecido por Machado de Assis. O título do estudo? “O Alienista”.
Para os infelizes que nunca leram Machado (eu disse “infelizes”? Olha aí o preconceito intelectual!), é a história de um homem, Simão Bacamarte, que abandona uma carreira internacional para se dedicar à sua terra.
A terra é Itaguaí e o dr. Bacamarte tem um sonho: curar a loucura. Como tolerar a imagem decadente de loucos vagueando pelas ruas, sem salvação ou consolo? Esses são os “mansos”, explica o narrador. Os “furiosos” são trancados em casa e ali apodrecem até ao último suspiro.
Inconformado, Simão Bacamarte monta o seu hospício —a Casa Verde— e começa a internar os patológicos. Mas se o espírito humano é uma “concha”, como ele afirma, é preciso ir sempre mais fundo na busca da “pérola”, ou seja, da razão.
Rapidamente, o dr. Bacamarte passa dos patológicos para os suspeitos; dos suspeitos para os ambíguos; e dos ambíguos para qualquer um que mostre a mais leve imperfeição aos seus olhos. Até a mulher, santa criatura, lá vai parar ao manicômio: as suas preocupações com vestidos e joias são a revelação fatal de um cabeça arruinada.
A Casa Verde enche-se. Quase toda a terra ali está porque “o equilíbrio perfeito de todas as faculdades” é artigo raro, raríssimo.
Pelo menos, até ao momento em que o dr. Bacamarte questiona a sua própria teoria: será que a razão é mesmo “o equilíbrio perfeito de todas as faculdades”? Ou esse equilíbrio é a verdadeira manifestação de loucura, o que implica libertar os primeiros loucos e internar a população sã que restou?
Lendo “O Alienista”, percebemos como o dr. Bacamarte é um antepassado dos psicólogos modernos que procuram curar o “preconceito inconsciente”. Todos agem por amor ao próximo. Todos desconfiam da constância aparente. E todos gostariam de internar a humanidade em mil Casas Verdes, procurando a “pérola” escondida na “concha” enferma.
Claro que, lendo ou relendo Machado, uma dúvida assalta o leitor —e, por fim, os habitantes da terra e até o médico: e se o verdadeiro alienado for o próprio alienista?
Ou, adaptando a pergunta para os nossos tempos, e se o verdadeiro preconceituoso for aquele que não tolera preconceitos? Terá ele a coerência do dr. Bacamarte para se encerrar na cela em busca de uma cura para si próprio?
Mistério. É nesses momentos que uma pessoa suspira de alívio por já não ter salvação.
João Pereira Coutinho
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