Esta caminha para ser uma das mais tranquilas transições de governo da história da República, a ponto de quase ser possível afirmar que o governo Jair Bolsonaro já começou e o de Michel Temer já acabou.
Anúncios oficiais, declarações ou mesmo opiniões do presidente eleito têm tido efeitos concretos na vida do Brasil e dos brasileiros. Exemplo mais recente foi a saída de Cuba do programa Mais Médicos, levando milhares de médicos a deixar postos de saúde espalhados por todo o país, resultado do questionamento feito por Bolsonaro sobre a qualificação de tais profissionais e sua intenção de exigir a revalidação dos diplomas no Brasil.
Anteriormente, sua intenção declarada de mudar a embaixada do Brasil em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém já havia causado o cancelamento de viagem oficial do atual chanceler brasileiro e de empresários ao Egito, além de causar preocupação entre exportadores brasileiros, que têm no mundo árabe um grande comprador.
Fora do revezamento do poder central dos últimos 30 anos, Bolsonaro e seu jovem partido estão transformando o estilo no planalto central, caracterizando-se por informalidade, quebra de protocolos e improvisos. Algo que se diz num dia pode não ter valor no dia seguinte. Quem reproduziu a primeira informação atabalhoadamente que se explique por conta própria —inclusive os jornais.
Outra característica dessa governança é a de delegar anúncios a intermediários, permitindo que cada um fale quando e como quiser —correndo o risco, como sói acontecer, de ser desautorizado, se algo não for bem recebido.
Do ponto de vista da comunicação, coerente com a estratégia da campanha eleitoral, a mensagem direta, via redes sociais, impera. Só na última semana, o presidente eleito anunciou, via Twitter, os futuros titulares da Advocacia-Geral da União, da Controladoria-Geral da União e dos ministérios da Saúde e da Educação. Neste último caso, idas e vindas demonstraram publicamente que a força da bancada evangélica teve poder de veto.
Em tuítes, Bolsonaro criticou o Mais Médicos, retuitou anúncios de seu ministro da Economia, notícias positivas sobre o país e publicações irônicas do filho Carlos, tido como mentor do pai nas redes sociais.
Em meio a essa quantidade imensa de informações e contrainformações produzidas diariamente, os jornais têm trabalho complexo, arriscado e desafiador. Se o presidente eleito já divulgou a notícia principal via internet para quem quisesse ver, ouvir e repassar, o que sobra para a imprensa? Certamente não pode se limitar a ser um reprodutor dessas mensagens presidenciais.
Esse novo estilo tanto de lidar com o poder como de se comunicar exige da imprensa uma nova forma de pensar a política e de produzir a informação. A imagem do fato como produto primário e da notícia —contextualizada e crítica— como produto processado com aquisição de valor agregado nunca foi tão precisa.
O investimento deve passar a ser em investigações dos currículos, nos desdobramentos e impactos da escolha, nas facetas obscuras das disputas de poder, com as consequências concretas na vida dos leitores.
A Folha tem tido êxito na investigação de futuros ministros —como no suposto caixa dois de Onyx Lorenzoni (Casa Civill) e no alívio de impostos dado para a JBS por Tereza Cristina (Agricultura) quando era secretária em Mato Grosso do Sul— e em casos como a descoberta das negociações sigilosas entre o governo Dilma Rousseff e o de Cuba para evitar resistências ao programa Mais Médicos.
Pesquisa com leitores da Folha revelou que 60% deles consideram que a cobertura do governo Bolsonaro é crítica “na medida certa” e 9% gostariam que o jornal fosse ainda mais crítico. Parcela significativa (29%) avalia a Folha mais crítica do que o necessário, índice bem superior ao detectado nos governos Temer (10% achavam o jornal duro demais com Temer) e Dilma (16%).
De todo modo, 51% acham que o jornal deve manter a cobertura como está, enquanto 24% gostariam de um noticiário menos crítico e 21% pedem abordagem mais crítica.
Essa postura crítica, por certo, incomoda e fecha portas de acesso ao poder. Num primeiro momento, pode parecer contraproducente para o jornal e seus jornalistas. A longo prazo, no entanto, é o que valoriza a cobertura e atesta a necessidade da imprensa, por sua independência e vigilância.
Descontentar o leitor, em certa medida, pode ser necessário, desde que no grande arco de cobertura o jornal mostre ter antecipado o cenário mais exato e discutido sem passionalidade (nem otimismo nem pessimismo) suas consequências.
A governança na era digital (e o estilo peculiar dos novos donos do poder) é mais uma faceta a obrigar que jornais e jornalistas estejam em modo permanente de renovação, inovação e reinvenção.
Paula Cesarino Costa
Jornalista, foi diretora da Sucursal do Rio. É ombudsman da Folha desde abril de 2016.
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