quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Credo democrático – HÉLIO SCHWARTSMAN


FOLHA DE SP – 24/07
“Democracy for Realists”, de Christopher Achen (Princeton) e Larry Bartels (Vanderbilt), é um livro importante. Os autores basicamente destroem nossas mais caras ideias sobre a democracia. E o fazem com a força de evidências.
O livro começa detonando o que os autores chamam de teoria popular da democracia. É a noção de que o indivíduo, na hora de votar, faz escolhas conscientes entre as várias propostas apresentadas pelos candidatos. Para Achen e Bartels, isso é muito mais religião do que ciência.
O que os dados relativos a séculos de eleições em vários países mostram é que o eleitor não tem estrutura cognitiva nem disposição para agir assim. Ele não estuda em detalhe cada ponto das propostas. Prefere dedicar-se a coisas como trabalho, família etc. e acaba escolhendo o candidato com base em emoções ditadas por lealdades sociais. Quando há a opção da democracia direta, frequentemente a maioria toma a decisão errada. Foi assim que várias comunidades dos EUA rejeitaram a fluoretação da água. Mais recentemente, os britânicos decidiram sair da UE, outro verdadeiro tiro no pé.Teorias mais acadêmicas de justificação da democracia, como a de que o sistema funciona porque o eleitor recompensa e pune dirigentes de acordo com seu desempenho, não se saem muito melhor. Não é que isso nunca ocorra. O problema é que há tanto ruído nesse processo que ele se parece mais com um sorteio do que com um método racional de decisão. Os autores mostram, por exemplo, como ataques de tubarões afetaram a reeleição do presidente Woodrow Wilson em 1916.
Achen e Bartels não são, porém, golpistas. Eles defendem a democracia, mas por razões que muitos considerariam laterais, como favorecer a liberdade de expressão, a segurança jurídica e, principalmente, a alternância do poder. Para eles, não devemos exigir da democracia mais do que ela é capaz de oferecer.

Uma receita para curar a embriaguez democrática

Christopher Achen e Larry Bartels veem na democracia qualidades como alternância de poder, liberdade de expressão, a existência de oposição organizada e a independência do Judiciário

HELIO GUROVITZ
17/07/2016 - 10h00 - Atualizado 26/10/2016 15h19
"Democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais, tentadas de tempos em tempos.” A frase de Winston Churchill costuma ser lembrada sempre que a democracia nos prega peças e tira da cartola coelhos como Dilma RousseffDonald Trumpou Brexit. Serve para anestesiar o cérebro como uma boa dose de conhaque – ou uísque, já que falamos de Churchill. É (damos um gole), é verdade que eleições às vezes produzem resultados estranhos, inconvenientes ou mesmo absurdos. Mas jamais errados (outro gole), afinal representam a vontade soberana do povo. E quem melhor que o próprio povo para dizer o que é melhor para si? E daí se o resultado das urnas pode ter resultados desastrosos? (Mais um gole.) Nos Estados Unidos, 60% das cidades que fizeram plebiscitos sobre o uso de flúor na água nos anos 1950 e 1960 rejeitaram a medida, essencial para a saúde dentária. Nos anos 1990, em Illinois e na Califórnia, a decisão de cortar impostos municipais prejudicou o combate a incêndios e custou vidas. A Alemanha viveu em 1933 a maior tragédia democrática da história humana, com a ascensão ao poder do Partido Nazista. Mas e daí? Ninguém disse que a democracia era perfeita mesmo. Basta tomar mais um gole de democracia e, como Churchill, esperar mais sabedoria na próxima eleição.
A embriaguez não pode obscurecer a primeira parte da frase de Churchill – “a pior forma de governo…”.  A imperfeição da democracia não se restringe a eventuais escolhas desastrosas, por mais que elas existam. Está na própria forma como o regime democrático funciona e na expectativa criada em torno dele. “O ideal da soberania popular desempenha o mesmo papel na ideologia democrática contemporânea que o direito divino dos reis desempenhava na era monárquica”, escrevem os cientistas políticos Christopher Achen e Larry Bartels no recém-lançado Democracy for realists: why elections do not produce responsive government (Democracia para realistas: por que eleições não produzem um governo com respostas). Ambos são uma ficção. Os autores fazem uma análise crítica de dezenas de estudos de ciência política, para chegar a uma conclusão pouco alentadora: “É um erro supor que as eleições resultam no controle popular das políticas públicas”. Candidatos não são eleitos por satisfazer a “vontade geral” do povo a respeito da melhor forma de conduzir os negócios do Estado – ideia chamada por eles de “teoria popular” da democracia. “As pessoas estão simplesmente ocupadas demais com as próprias vidas para fazer jus aos padrões que a teoria democrática convencional lhes confere”, dizem. Na essência, dizem, eleições correspondem a jogar uma moeda para cima.
LIVRO DA SEMANA - Democracy for realists - Christopher Achen e Larry Bartels (Foto: divulgação)
Achen e Bartels reuniram casos que desmentem até a noção de que o resultado eleitoral representa a aprovação do governo. Reconhecem a relevância da situação econômica, mas não necessariamente da gestão dos governantes. Fatores aleatórios têm interferência decisiva. Na eleição de 1916, afirmam, o presidente Woodrow Wilson perdeu mais de 10 pontos percentuais em algumas praias por causa de ataques de tubarões. Há uma associação consistente, ao longo de quase um século, entre fenômenos naturais como secas e enchentes e a votação menor, nos locais afetados, no partido no poder nos Estados Unidos – nada muito diferente da crise que acometia os faraós egípcios nas secas do Nilo. Os dois estimam que, nas eleições de 2000, 2,8 milhões votaram contra o democrata Al Gore só por causa de fatores climáticos. Citam até um estudo dos pesquisadores Daniela Campello e César Zucco, da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, segundo o qual a melhor forma de prever o resultado de eleições presidenciais na América Latina é olhar o preço internacional das commodities e a taxa de juros nos Estados Unidos – fatores fora do controle de qualquer candidato.
Isso não significa que um regime autoritário seria melhor. A segunda parte da frase de Churchill continua verdadeira – “… com exceção de todas as demais”. Achen e Bartels veem na democracia qualidades como alternância de poder, liberdade de expressão, a existência de oposição organizada e a independência do Judiciário. Mas consideram um equívoco as expectativas criadas em torno dela. “Eleitores, mesmo os mais informados, fazem escolhas não com base em preferências políticas ou ideológicas, mas com base em quem são – em suas identidades sociais”, dizem. Um regime democrático não segue o ideal liberal racional, mas uma lógica baseada em lealdades a grupos religiosos, étnicos, culturais e sobretudo partidários. Para aperfeiçoá-lo, o desafio é conciliar a opinião popular, expressa nesses grupos, e lideranças políticas competentes. Não há solução simples. Ela não está, de todo modo, na embriaguez anestésica da “teoria popular”. “Como em qualquer vício, o primeiro passo para a recuperação é admitir que temos um problema”, dizem.

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