domingo, 25 de setembro de 2016

A responsabilidade fiscal venceu - GUSTAVO FRANCO


O GLOBO - 25/09

Ajuste fiscal era conhecido como remédio dolorido, a meio caminho entre dívida e pecado


A ideia de responsabilidade fiscal veio da Nova Zelândia, pouca gente sabe, através de uma lei de 1994.

Nesse mesmo ano, no Brasil, estávamos às voltas com outras coisas: a hiperinflação, a URV, que mudou de nome para real em julho, 16 dias antes da final da Copa, e em dezembro, já campeões do mundo, a inflação bateu 1,7% pelo IPCA, equivalentes a 22% em bases anuais. Era um extraordinário progresso, mas ainda tivemos muito trabalho para chegar em 1,6% para o ano inteiro de 1998.

Nos primeiros tempos, a expressão “responsabilidade fiscal” parecia mesmo uma importação sem similar nacional, um estrangeirismo desses que os comunistas locais repelem, mas logo ficou claro que se tratava de uma inovação revolucionária, uma espécie de Uber dos debates fiscais, começando pela linguagem.

Antes dessa extraordinária invenção, os economistas eram como os farmacêuticos de antigamente que vinham nas casas de família com uma imensa seringa não descartável numa caixa de metal e as crianças se escondiam apavoradas. Os senhores parlamentares escutavam falar de “ajuste fiscal” e pareciam ver o farmacêutico querendo lhes aplicar injeções.

Ninguém queria saber de “ajuste fiscal”, que não se entendia bem como conserto ou contrato, mas como remédio dolorido, a meio caminho entre a dívida e o pecado. E aqui temos um parentesco ancestral: Margareth Atwood lembra que “no aramaico, a língua semítica falada por Jesus, a palavra para “dívida” e a palavra para “pecado” era a mesma. Assim, é possível traduzir a passagem [DO PAI NOSSO]como “perdoai nossas dívidas/pecados”, ou até como “nossas dívidas pecaminosas” embora nenhum tradutor tenha escolhido fazê-lo, ainda.

O “ajuste fiscal” era frequentemente colocado na mesma cava do inferno onde está a “austeridade”, outra criatura ascética, coisa de anacoretas, uma espécie de jejum da vida e, por isso mesmo, durante muitos anos, os economistas pregaram no deserto.

Tudo mudou com essa feliz expressão neozelandesa à qual ninguém poderia se opor. Quem pode ser contra a responsabilidade fiscal? Ou a sustentabilidade? Seja ela ambiental, fiscal, financeira, empresarial?

O equilíbrio fiscal entrou, com isso, para o domínio do politicamente correto, esse o truque que sempre nos faltou.

A mágica das palavras é fundamental para as disputas retóricas, mas em 1994, a responsabilidade fiscal não era mais que isso, uma expressão bem achada. Era preciso praticar para experimentar e entender.

Em 1994, os Estados estavam todos quebrados e em atraso com as empresas federais de geração de energia, com os bancos federais e com seus bancos estaduais, e estes, por sua vez, também encrencados e sem solução.

Era o caos. Não era o ambiente mais acolhedor para se introduzir a responsabilidade fiscal e, por isso, mesmo se abandonou a ideia de uma emenda constitucional de orçamento equilibrado ou de teto de gastos, como a de hoje.

Mas o que veio a seguir deu significado bem claro ao conceito. Foram diversas rodadas de refinanciamento das dívidas estaduais que resolveram todos esses problemas. Foi essencial que houvesse uma garantia boa (tanto que, hoje, os Estados não conseguem deixar de pagar a União), que fossem extintos os bancos estaduais (tal como funcionavam), que os Estados dessem em pagamento ativos para a União privatizar e, por fim, que fechasse o guichê dos refinanciamentos para que não houvesse essa “doença do Refis”, ou a ideia de que sempre virá um novo refinanciamento.

Mais importante que tudo, no entanto, foi colocar o Tesouro Nacional (STN) na posição de FMI estabelecendo programas, limites e metas. Depois de tudo resolvido, inclusive de um programa semelhante atendendo 174 municípios, veio uma lei complementar em 2000 que trouxe toda essa experiência para o que se conhece hoje como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Foi uma epopeia, um feito extraordinário para uma secretaria (STN) criada 14 anos antes, a partir do nada. Mais extraordinário ainda foi, 15 anos depois, ver iniciado e concluído o impedimento da presidente da República principalmente por violações à LRF.

A responsabilidade fiscal é uma ideia vencedora e paradigmática, inclusive por que, finalmente, deslocou o desenvolvimentismo inflacionista do terreno da obsolescência, ou do cinismo, para o da ilegalidade.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS

Conjunto de distorções explica poder de barganha de Clara, de 'Aquarius' - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 25/09

Clara, 65 anos, jornalista aposentada, viúva, três filhos criados é a personagem central desse filme. Mora em um apartamento no segundo andar de um edifício dos anos 50, defronte ao mar da praia de Boa Viagem, ponto nobre do Recife.

Foi lá que ela viveu boa parte de sua vida. Criou os filhos, enfrentou um câncer de mama e a viuvez. Vive rodeada de sua biblioteca e da farta coleção de discos de vinil, além do piano.

Todos os apartamentos do edifício foram adquiridos por um incorporador imobiliário que pretende erguer uma torre, provavelmente de gosto arquitetônico discutível.

Para Clara, sua memória não tem preço. Morrerá no edifício Aquarius.

Os filmes de Kleber Mendonça Filho escancaram as contradições da sociedade brasileira. Em "Aquarius" descreve com precisão minha classe social: os 5% mais ricos da sociedade que se consideram classe média.

Na maioria dos países, a aposentadoria é um período de ajustes e contenção, sobretudo para quem teve vida profissional mediana, afinal, não é comum aposentadoria com salário integral.

Por que Clara não vende seu apartamento aproveitando as condições favoráveis, podendo constituir reserva adicional para a velhice? Ainda mais, um apartamento de tamanho que já não é mais necessário, afinal os filhos já saíram do ninho.

Em países socialmente mais justos, uma pessoa com o histórico de vida de Clara venderia o apartamento por um bom preço ou o trocaria por um ou dois na nova torre.

Clara é aposentada, provavelmente no teto do INSS, e recebe a pensão do marido, que, imagino eu, é de professor titular da UFPE, ou algo equivalente. Nas regras brasileiras, exclusividade nossa, Clara pode acumular seu próprio benefício com o do marido.

Clara tem, além do imóvel no Aquarius, quatro outros apartamentos. Possivelmente herdou alguns e adquiriu um ou dois. A compra tanto dos herdados quanto dos por ela adquiridos deve ter sido financiada pelo finado Banco Nacional de Habitação (BNH). A hiperinflação brasileira reduziu significativamente o saldo devedor dos apartamentos e, pagou-se pelos imóveis muito menos do que custaram à sociedade. A ausência de correção da dívida foi cortesia de políticos demagogos. A diferença foi para a viúva na forma do Fundo de Compensações de Variações Salariais (FCVS), que até hoje pesa nas contas do Tesouro.

Assim, um conjunto imenso de distorções explica o poder de barganha de Clara.

Ela é capaz de enfrentar empresários gananciosos e barrar um empreendimento que geraria: aumento de apartamentos em Boa Viagem; renda para os empreendedores; renda para os ex-moradores do Aquarius que esperam o fim do negócio para receber parcela final da venda; e aumento significativo de IPTU para a prefeitura. Sem falar dos empregos e da renda durante a construção e vários depois dela.

Claro que a soma de nossas distorções –que resultam, entre outras, no gasto de 13% do PIB com aposentadoria e pensões, quando pela nossa estrutura demográfica deveríamos gastar 5%– é importante causa do baixo crescimento econômico. O setor público não tem recursos para financiar a construção da infraestrutura física e social do país, incluindo, entre outros tantos setores, o de saneamento básico.

O baixo crescimento econômico, por sua vez, torna o início da vida profissional das novas gerações muito difícil. Clara está sempre disposta a ajudar os filhos. Será que o Honda Fit da filha foi comprado com o dinheiro da mãe?

Massacre do emprego formal continua, mas fica menos sangrento - VINICIUS TORRES FREIRE FOLHA DE SP - 25/09



É preciso raspar o tacho da esperança para encontrar números melhorzinhos de emprego. Sem forçar a barra, algo até se acha, tal como uma nota amassada de R$ 2 no fundo do bolso da calça jeans que se põe para lavar.

O massacre do trabalho parece menos sangrento. Março parece ter sido o pico da destruição de empregos formais, a julgar pelo Caged, o registro de admissões e demissões de trabalhadores com carteira assinada, do Ministério do Trabalho.

Ainda é horrível. Em março, o total de empregos ditos formais era 4,5% menor que um ano antes. Agora em agosto, 4,1% menor: 1,656 milhão de carteiras assinadas a menos que em agosto do ano passado. Desde abril, a perda mensal de postos de trabalho "CLT" é menor que em mês equivalente de 2015. Mas a despiora é lentíssima.

Um grão de areia de ânimo vem do fato de que o grosso da razia de postos de trabalho ocorre na categoria "emprego formal". Trocando em miúdos, uma despiora no emprego formal deve melhorar o quadro geral do mercado de trabalho.

Não é bem um grande consolo. É bem diminuto, aliás. São justamente os empregos melhores que mais estão sendo dizimados.

As estatísticas do IBGE ajudam a explicar melhor a situação. Trata-se da Pnad, uma estimativa (não um registro oficial) do estado das coisas no mercado de trabalho, entre elas a taxa de desemprego e os rendimentos.

O emprego com carteira assinada equivale a 38% dos postos de trabalho do país (excluídos dessa conta os trabalhadores domésticos). Mas a redução do número de pessoas ocupadas com "CLT" equivaleu a 82% da redução do total de ocupados nos últimos doze meses.

As pessoas estão se virando em empregos sem carteira e por conta própria. Ou voltando a trabalhar como domésticos, um enorme desgosto para as trabalhadoras, aliás, dados os tantos maus tratos em "casas de família". Até meados de 2014, caía o número de domésticos, que encontravam coisa melhor para fazer.

Nesses tipos de emprego "salve-se quem puder" (por conta, bico, sem carteira ou doméstico), a ocupação tem crescido nos últimos meses. Logo, uma contenção da desgraça no mercado formal de trabalho pode desanuviar a situação geral.

Em agosto, o saldo de empregos formais na indústria foi positivo pela primeira vez em 17 meses. Desde março de 2015 havia redução mensal do número de empregos industriais. Houve reação também no comércio. O maior massacre no emprego "CLT" ainda ocorre na construção civil, se vê pelos dados do Caged.

Note-se de passagem que, pelos dados do IBGE, o número de ocupados na construção cresce faz uns meses. Resumo da ópera: o emprego nas obras está sendo precarizado em massa.

Em suma, a situação geral do trabalho ainda piora. No balanço do país, de emprego formal ou de qualquer espécie, o número de ocupados diminuía ainda cada vez mais rápido pelo menos até julho. Os números de agosto do emprego com carteira assinada indicam, porém, um início de despiora, ainda que lenta e insegura.

Pelo andar atual da carruagem, estima-se que o número de empregos volte a crescer apenas em meados do ano que vem. Isso se governo e Congresso não fizerem mais besteira.