terça-feira, 2 de julho de 2024

ALOIZIO MERCADANTE O Real não foi só um plano econômico, FSP

 O Plano Real teve sucesso em acabar com a alta inflação, diminuindo o grau de indexação da economia brasileira. A Unidade Real de Valor (URV) permitiu a saída de forma criativa e organizada da alta inflação inercial, sem congelamento de preços. Outro elemento crucial foi a renegociação e a securitização da dívida externa pelo Plano Brady.

Na preparação do Real, o governo renegociou a dívida externa velha, abriu a conta de capitais e elevou brutalmente o juro real, para evitar fuga de capitais domésticos e atrair capital de curto prazo, o que viabilizou a transição da URV para o Real.

A valorização inicial do câmbio foi essencial para a rápida redução da inflação, mas trouxe um alto custo: o início da era de elevados juros reais. De 1994 a 1999, a taxa básica média de juro real foi de 22% ao ano.

Batata com o preço em URV em feira em São Paulo, em março de 1994 - Luiz Carlos Murauskas/Folhapress

Para atrair recursos externos e promover o ajuste fiscal, o governo liquidou ativos estatais por preços reduzidos, sem o planejamento de uma política industrial e sem avaliação estratégica dos desdobramentos.

Depois de 30 anos, a história mostra que o Plano Real teve êxito ao reduzir a inflação, mas não em garantir a estabilidade macroeconômica e a retomada do crescimento. Para reeleger FHC, a âncora cambial foi prorrogada, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, empurrando o país para grave crise cambial, econômica e social.

Do lado financeiro, o déficit em transações correntes aumentou de 2,5% do PIB, em 1995, para 4,5% do PIB, em 1999. Do lado social, o arrocho monetário e fiscal produziu alta no desemprego, de 4,6%, em 1995, para 7,6%, entre 1995 e 1999.

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O governo FHC expôs o país a um ataque especulativo decorrente do desequilíbrio das contas externas, recorreu ao FMI e se submeteu ao chamado "Consenso de Washington". Mesmo assim, não evitou nova crise cambial e novo pedido de ajuda ao FMI (2002), selando o destino dos governos do PSDB, que não venceram mais eleições presidenciais e amargaram uma crise partidária, agravada pelo apoio ao golpe de 2016 e pela adesão de lideranças ao bolsonarismo.

A estabilização do Plano Real só se completou no governo Lula, quando o país quitou a dívida com o FMI e começou a acumular reservas internacionais, que até hoje nos dão autonomia de política econômica. Do lado fiscal, a estabilização está incompleta. Esgotaram-se as estratégias de queima de patrimônio público e de metas de resultado primário ambiciosas, que geraram uma política fiscal pró-cíclica que aprofundou as flutuações da economia.

Ao analisar o Plano Real, o PT reconheceu o mérito da desindexação da economia, mas denunciou a manutenção da âncora cambial, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, e o elevado custo econômico e social, que precarizou a vida da população.

É preciso reconhecer a competência e a inovação da equipe técnica que criou o Plano Real, em particular Pérsio Arida e Lara Resende. Eles têm imensa responsabilidade pelas vitórias do PSDB, mas pressões eleitorais no ninho tucano impediram a saída organizada da âncora cambial e empurraram o país para grave crise cambial, desindustrialização, endividamento público elevado e recessão econômica prolongada.

A despeito das nossas divergências, o país sente saudade do tempo em que a polarização se dava entre o PT e o PSDB. Naquele período, havia disputa acirrada, mas qualificada, sem renunciarmos ao compromisso com o Estado democrático de Direito e com a cidadania.

RICARDO LEWANDOWSKI Pela constitucionalização do Sistema Único de Segurança Pública ,FSP

 A segurança pública, de há muito, deixou de ser um problema local para tornar-se uma questão nacional, considerada a criminalidade organizada, cuja atuação transcende as fronteiras estaduais e até mesmo as do próprio país. Por isso, seu enfrentamento exige um planejamento estratégico capitaneado pelo governo central. Também os estabelecimentos prisionais, hoje majoritariamente controlados pelos estados e o Distrito Federal, demandam um tratamento semelhante.

Para tanto, é preciso modernizar o modelo concebido pelos constituintes de 1988, ou seja, há mais de 35 anos, para adequá-lo à conjuntura atual, mediante uma emenda à Constituição que outorgue à União a competência de coordenar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), instituído por simples lei ordinária (lei 13.675, de 11 de junho de 2018), permitindo que ela estabeleça diretrizes vinculantes
para todas as entidades federadas.

Ao par disso, conviria atribuir à União o poder de editar normas gerais sobre segurança pública e sistema prisional, objetivando uniformizar a atividade dos entes subnacionais nesses setores, sem prejuízo da competência destes de regularem seus interesses específicos.

Por outro lado, constata-se que os estados e o Distrito Federal atuam na segurança pública por meio de duas corporações distintas: uma polícia ostensiva e outra judiciária. Às polícias militares incumbe a preservação da ordem pública, cabendo às polícias civis a apuração de infrações penais, a qual, no plano da União, é feita pela Polícia Federal (PF).

A União, porém, não conta com uma polícia ostensiva propriamente dita, embora a Polícia Rodoviária Federal (PRF) venha sendo requisitada, com uma frequência cada vez maior, a dar apoio aos agentes de segurança locais, não raro extrapolando sua missão constitucional.

Dois PRFs de costas observam monte com pacotes de maconha ao lado de caminhão
Policiais da PRF diante de pacotes com maconha que foram jogados de carreta abordada na BR 448, em Canoas (RS) - 25.nov.23/PRF

Ao contrário de outros países, o governo central não possui uma força policial capaz de coibir eficazmente a criminalidade, que, de modo crescente, se espalha por todo o território nacional, a exemplo do roubo de cargas, do contrabando, do descaminho, da pirataria e do tráfico de drogas, de armas e de pessoas.

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A PRF poderia cumprir esse papel. Trata-se de uma polícia civil —e não militar— que respeita a hierarquia e disciplina e tem uma gestão de excelência. É integrada por quase 13 mil agentes, que contam com veículos, armamentos e equipamentos modernos e sofisticados, comportando uma ampliação de atribuições, de modo a dotar a União de uma força apta a evitar e reprimir crimes cometidos em áreas de seu interesse e a prestar auxílio aos entes federados, de forma emergencial e temporária.

Já a PF, sabidamente, enfrenta limitações no combate à criminalidade organizada e à destruição do meio ambiente, tendo em conta a disciplina constitucional vigente. Conviria, pois, cometer a ela, de forma expressa e inequívoca, a atribuição de investigar e reprimir as facções criminosas e de combater a degradação das áreas de preservação ambiental, sem prejuízo da ação dos órgãos de segurança locais.
Para conferir funcionalidade ao sistema, valeria criar um Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária, cujos recursos seriam direcionados a programas, projetos e ações em benefício dos três níveis político-administrativos da federação, vedando-se o seu contingenciamento.

Sem uma mudança constitucional adequada, continuaremos a enfrentar uma criminalidade cada vez mais organizada, sem prover o Estado brasileiro dos instrumentos legais e materiais necessários para combatê-la.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Hélio Schwartsman - Como a Bíblia surgiu?, FSP

 Para os fundamentalistas, a Bíblia é a palavra de Deus e ponto final. Tal posição tem problemas. O que fazer das inúmeras contradições das Escrituras? Não sei se Jacob Wright é ateu, agnóstico ou crente, mas, como professor de estudos bíblicos, ele se inscreve numa tradição que teve início com religiosos que se interessaram em compreender como esse corpo literário surgiu e se organizou num cânon. Para fazê-lo, costumam utilizar, além da exegese do texto, elementos de história, arqueologia, filologia e religião comparada. É, se quisermos, o mais perto que a religião chega da ciência.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 30 de junho de 2024, mostra, sobre um escriba judeu do século XXXIII a.C. escrevendo em hebraico antigo, à luz de velas,  sobre um livro de papiro, com uma caneta de pena, histórias que deram origem ao Antigo Testamento.
Annette Schwartsman

Em "Why the Bible Began", Wright oferece uma interpretação original para o surgimento da Bíblia Hebraica, por aqui chamada de Antigo Testamento. Como uma pequena comunidade que vivia numa região periférica do Oriente Médio da Antiguidade elaborou uma literatura que influencia o mundo até hoje? Para Wright, a resposta é: derrota, derrota acachapante. Num intervalo de cerca de 150 anos, os judeus viram os dois reinos que criaram, Israel, ao norte, e Judá, ao sul, serem arrasados. Não poderiam, como era costume na época, encetar uma canção da vitória.

A solução encontrada pelos escribas para tentar manter a comunidade como uma unidade política foi celebrar a derrota. Foram aos poucos juntando e reescrevendo um amplo corpo de histórias e lhes dando novos sentidos, que colocavam a ideia de um povo unido por um passado e um futuro comuns acima da de Estado, isto é, de reinos que não mais existiam.

No limite, os conquistadores não haviam vencido porque eram militarmente superiores, mas porque o Deus dos judeus quis que isso acontecesse, para punir violações pretéritas de seus eleitos.

O texto de Wight é deliciosamente erudito e muito elucidativo. Explica até como Eclesiastes e Jó, livros da Bíblia que caminham muito perto do niilismo e questionam abertamente Deus, foram incluídos no cânon.