terça-feira, 2 de julho de 2024

PF e Ministério Público são esperança no caso da Americanas, Elio Gaspari, FSP

 Houve algo de teatral na operação da Polícia Federal para trazer de volta à vitrine o escândalo da rede varejista Americanas.

Depois do vexame da Comissão Parlamentar de Inquérito, que não identificou responsáveis por um calote de R$ 47,9 bilhões, é nela e no Ministério Público que se depositam as esperanças de que a maior fraude corporativa da história de Pindorama seja exposta ao público. É coisa de R$ 25,2 bilhões.

Polícia Federal deflagrou operação contra ex-diretores da Americanas acusados de fraudes contábeis

Na sua expressão mais simples, já se sabe o seguinte: Miguel Gutierrez, o CEO da Americanas por mais de uma década, tinha uma sala exclusiva no prédio da empresa, onde só ele entrava.

A partir de julho de 2022, quando soube que seria substituído no comando da empresa, começou a transferir bens para parentes e vendeu ações da Americanas no valor de R$ 171,8 milhões.

Com nacionalidade espanhola, Gutierrez deixou o Brasil em 2023. Na semana passada foi expedido um mandado de prisão contra o doutor.

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No segundo semestre de 2022, quando a Americanas se apresentava ao mercado como um prodígio de gestão, diretores da empresa desfizeram-se de ações no valor de R$ 241,1 milhões.

Vinte dias antes do estouro, Anna Saicali, uma de suas diretoras, transferiu para um filho um patrimônio de R$ 13 milhões e vendeu ações da empresa no valor de R$ 59,6 milhões. Contra ela a PF também expediu um mandado de prisão. Saicali deixou o Brasil.

Outro diretor, José Timotheo de Barros desfez-se de ações da Americanas por R$ 20,7 milhões.

Miguel Gutierrez, ex-CEO da Americanas

A investigação recente estimou que a fraude pode ter começado em 2007. Em agosto de 2022, diretores da Americanas começaram uma operação para escondê-la.

Tudo bem, aceitando-se que ninguém havia desconfiado. Mais: como seria possível esconder a inexistência de R$ 25,2 bilhões? Sobretudo se, de uma hora para outra, os diretores começaram a vender suas ações.

Para que um esquema desses ficasse de pé, seriam necessários milhões de otários dentro e fora da Americanas. Se isso pudesse ser possível, sabe-se agora que no dia 27 de dezembro de 2022 a nova diretoria foi informada do que se chamaria de "inconsistência contábil".

A Polícia Federal já localizou contubérnios entre a turma da Americanas e funcionários de bancos encarregados de analisar seus números, bem como acertos com dois bancos para direcionar aplicações. A PF e o Ministério Público foram além da superfície do caso.

A Americanas explodiu em janeiro de 2023. Passou-se mais de um ano e até agora ninguém havia sido responsabilizado. A Comissão de Valores Mobiliários abriu inquéritos que ainda não fulanizaram responsáveis. (Nos Estados Unidos, o escândalo da empresa de energia Enron estourou em 2001. Um ano depois seu gênio financeiro tornou-se réu e, em 2004, tomou uma cana de dez anos.)

No Brasil, até agora, só foram penalizados milhares de acionistas, centenas de funcionários que perderam os empregos e 8.000 credores.

QUEM DECIDIU SACAR R$ 800 MILHÕES?

O país está assistindo ao funeral togado da Lava Jato. A ação da Polícia Federal e do Ministério Público pode impedir que aconteça o mesmo com a Americanas.

A turma da varejista era audaciosa. Remunerava-se regiamente e trocava mensagens explicitando a maquiagem de seus balanços. Se tudo isso fosse pouco, no dia 11 de janeiro de 2023 tentaram sacar R$ 800 milhões da conta da empresa no banco BTG Pactual. O BTG não pagou.

As investigações poderão revelar o processo decisório que instruiu essa iniciativa. Afinal, mesmo admitindo-a que ninguém sabia da fraude, está comprovado que o novo CEO, Sérgio Rial, soube do rombo no dia 2. (Seu diretor financeiro soube que havia gatos na tuba uma semana antes.)

No dia 4, começou-se a falar em "inconsistências contábeis". No dia 5, Rial contou o caso ao acionista de referência Carlos Alberto Sicupira, que, nas suas palavras, ficou "chocado". Sicupira era um dos astros do que se supunha ser um novo tipo de gestão.

No dia 11, horas depois da tentativa de saque, a Americanas explodiu.

A fraude da Americanas é o maior escândalo corporativo da história de Pindorama. Não envolve um só centavo de dinheiro público. Tudo coisa da iniciativa privada, com personagens que se apresentavam como modelares, meritocráticos e inovadores. (A rede varejista pagava em até 200 dias contas que devia ter pago em 90, mas essa é outra história.)

Desde 2023 o caso da Americanas inova também tecendo o grande tapete para debaixo do qual tenta-se varrer o escândalo.

A entrada da Polícia Federal e do Ministério Público na cena é uma esperança.

Valeria a pena que colocassem na operação um delegado e um procurador munidos de um mapa dos erros da Lava Jato. Eles teriam a tarefa de alertar os colegas para os riscos de ações teatrais e da manipulação da imprensa. No caso da Americanas, nada disso é necessário. Basta seguir o roteiro de fatos, cifras e golpes desprezados pela Comissão Parlamentar de Inquérito.


Celso Rocha de Barros - Brasil está fazendo o certo com proposta de taxar os riquíssimos, FSP

 O mundo tem cerca de 3.000 pessoas com patrimônio superior a US$ 1 bilhão. Se esse número fosse o público pagante de um jogo de futebol, seria um dos menores do atual Brasileirão. Esse pequeno grupo tem abocanhando uma parte cada vez maior da riqueza mundial. Em 1987, os 0,0001% mais ricos do mundo controlavam cerca de 3% da riqueza do mundo. Em 2024, esse número subiu para 13%. É muito pouca gente controlando muito dinheiro.

Os números são do estudo encomendado pelo governo Lula ao economista francês Gabriel Zucman, um dos grandes estudiosos de desigualdade de renda do mundo. O estudo, "A blueprint for a coordinated minimum effective taxation standard for ultra-high-net-worth individuals" ("Proposta para um padrão de taxação efetiva mínima para os indivíduos de riqueza ultra-alta"), foi publicado nos últimos dias.

Vista de Nova York para torres da chamada "Billionaires Row" (via dos bilionários), área da cidade com concentração de super ricos - Spencer Platt - 16.mai.2022/Getty Images/AFP

O governo brasileiro pretende apresentá-lo ao G20, o grupo dos 20 países mais ricos do mundo, que o Brasil atualmente preside.

Zucman propõe que todos os países concordem em taxar os bilionários em pelo menos 2% de sua riqueza. Um esforço coordenado ajudaria a contornar uma das grandes dificuldades dos impostos sobre grandes fortunas: o risco dos muito ricos enviarem seus recursos para fora do país, como aconteceu alguns anos atrás com a Colômbia. O economista francês estima que o imposto proposto arrecadaria algo entre US$ 200 bilhões e US$ 250 bilhões por ano.

Mas os ricos não parariam de investir? Bom, atualmente, sempre segundo Zucman, a riqueza detida pelos bilionários lhes rende, em média, 7,5% ao ano (7,2% após a cobrança de impostos). Com a nova alíquota, renderia 5,5% ao ano. Ainda é um bom trocado.

Notem que a iniciativa seria global, mas cada país arrecadaria seu próprio imposto e gastaria como quisesse. Em si, a proposta não implica em redistribuição de renda do norte para o sul global.

O governo brasileiro chegou a sondar os países ricos sobre uma outra proposta, a da Nobel de economia Esther Duflo, que poderia ser complementar à de Zucman. Duflo propõe que a grana arrecadada com o imposto de Zucman seja gasta para ajudar os países pobres a se adaptarem ao aquecimento global. Afinal, os países pobres contribuem pouco para o aquecimento global, mas sofrem muito com suas consequências.

Haveria algum grau de coordenação global para esse gasto, mas Duflo propõe que a burocracia envolvida seja mínima: a ideia seria que, por exemplo, se a temperatura atingisse um nível X em áreas sob risco (na África subsaariana, por exemplo), o sistema disparasse algo como um Pix para a população local, automaticamente.

Quando o Brasil trouxe a proposta de Duflo para a discussão, vários países ricos discordaram. Concordam que é imoral que os riquíssimos paguem menos imposto que o resto da população, mas preferem utilizar o dinheiro arrecadado com o imposto de Zucman para socorrer seus próprios pobres.

Por isso, o Brasil deve bancar apenas a proposta de Zucman diante do G20. A proposta de Duflo, como outras semelhantes, devem continuar na discussão. Como me disse a vencedora do Nobel em 2019 na semana passada, essa luta não é uma corrida de cem metros, é uma maratona.

Não sabemos se o Brasil conseguirá convencer os países ricos, mas é bom poder voltar a dizer que o Brasil está fazendo o certo.