domingo, 23 de junho de 2024

Bode, sanfona e energia renovável: como é a cidade que sedia o maior parque eólico da América Latina ,FSP

 Nicola Pamplona

DOM INOCÊNCIO (PI)

A cidade de Dom Inocêncio (PI) se orgulha de ser a terra da sanfona —tem até um museu dedicado a isso. Também se gaba de ser a terra do bode e da alegada maior estátua de bode do mundo. Mais recentemente, adicionou ao seu slogan também a energia renovável.

Com pouco mais de 9.000 habitantes, divide com as vizinhas Queimada Nova (PI), Lagoa do Barro do Piauí (PI) e Casa Nova (BA) 103 torres eólicas do parques Oitis, da espanhola Neoenergia, e 372 projetados para o parque Lagoa dos Ventos, da italiana Enel, o maior da América Latina.

Torres Eólicas da cidade de Dom Inocêncio, no interior do estado do Piauí, que é sede do maior parque eólico da América Latina e uma das cidades mais atrativas para o setor no país. - Eduardo Anizelli/Eduardo Anizelli/Folhapress

Com uma área equivalente a 2,5 vezes o município de São Paulo, é a terceira cidade brasileira com maior capacidade de geração de energia pelo vento e, considerando projetos planejados, disputa com as baianas Sento Sé e Morro do Chapéu o topo da lista entre as mais atrativas para o setor.

A chegada dos empreendimentos impulsionou a economia local, antes focada na pequena produção agropecuária. Mas trouxe também uma sensação de frustração depois da partida dos trabalhadores forasteiros, um desafio comum para as regiões propícias à geração renovável no país.

Após o início das obras, o PIB do município e a arrecadação da prefeitura mais do que dobraram. O número de empregos formais cresceu na mesma proporção, mas passou a recuar no início da década, com o início da desmobilização das construções.

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O movimento de trabalhadores impulsionou os negócios, com grande crescimento no número de estabelecimentos comerciais. Otávio da Mata Almeida, 46, por exemplo, colocou R$ 300 mil em uma pousada com dez quartos e, depois, outros R$ 950 mil para modernizar e dobrar a capacidade.

"Quando a gente abriu pela primeira vez, estava no pico das obras. Não tinha hospedagem, todas as casas disponíveis estavam alugadas com preço lá no alto", conta. "Aí acabou a obra e acabou o dinheiro na cidade."

Na semana em que a reportagem esteve no município, no fim de abril, a pousada tinha apenas quatro quartos ocupados. Dois funcionários dos tempos áureos tinham sido demitidos.

Monalisa Lustosa, que pesquisa a relação entre transição energética e desenvolvimento, diz que esse é um movimento comum em cidades do Nordeste que recebem grandes empreendimentos em energias renováveis, que em geral são voltados para abastecer grandes consumidores no Sudeste.

"A chegada dos empreendimentos gera uma expectativa muito grande de desenvolvimento", diz ela. "Mas o que se vê depois são restaurantes vazios, pousadas vazias, produtores sem produzir e, o que é mais irônico, com problemas de acesso a energia."

De fato, a percepção é que a bonança ainda não trouxe grande melhora na qualidade da infraestrutura de serviços. "Se tem chuva não tem energia", reclama Neci de Assis Lopes, 47.

Ela também investiu para aproveitar a bonança, abrindo um restaurante próprio, sobre o qual construiu quartos para alugar para trabalhadores de fora. Neci diz que a cidade melhorou com os projetos, mas que a economia esfriou após o fim das obras. "Espero que venham mais parques."

A energia não é o único sinal de infraestrutura deficitária no município. Segundo o Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apenas 0,03% dos 4.516 domicílios são ligados à rede de esgoto e 15,4% têm fornecimento de água. A coleta de lixo atende 32,2% deles.

Uma adutora trazendo água de São João do Piauí será inaugurada em breve, e a prefeitura deve iniciar obras para ampliar a rede de água. Mas não há planos para coleta de esgoto, que hoje é feito em fossas sépticas.

O secretário de administração da prefeitura, Valney Sousa, diz que o ganho de arrecadação com ISS (Imposto Sobre Serviços) durante as obras vem sendo investido em pavimentação, melhoria das estradas, perfuração de poços artesianos, educação e compra de equipamentos hospitalares.

"A prefeitura fez com que esses recursos circulassem no município", afirma.

O aumento na arrecadação municipal, em uma cidade onde o emprego depende da prefeitura —apenas 9,85% da população era ocupada em 2021, segundo o IBGE— faz de Dom Inocêncio um dos municípios com maior rendimento do trabalho formal no estado, com 2,8 salários mínimos, em média.

Mas, com níveis mais baixos de escolaridade, a população tem dificuldades para se candidatar a vagas mais qualificadas nos parques eólicos. Com apenas 80% da população alfabetizada, Dom Inocêncio é o 4.398º entre os 5.700 municípios brasileiros nesse indicador.

Alguns dos produtores rurais foram beneficiados com arrendamentos de áreas para a instalação dos parques e vias de acesso, que ocupam o alto das serras a leste do município. A Enel paga arrendamentos por 490 terrenos em Dom Inocêncio e cidades vizinhas. A Neoenergia, por outros 55.

As empresas dizem que os contratos de arrendamento seguem melhores práticas de contratos com proprietários, mas em regiões próximas aos parques há críticas de moradores afetados, principalmente aqueles que não têm torres nos terrenos.

O agricultor Raimundo Rodrigues, 42, que mora ao lado de uma torre eólica na zona rural da cidade de Dom Inocêncio, no interior do Piauí. - Eduardo Anizelli/Eduardo Anizelli/Folhapress

"Se pelo menos botassem uma torre na nossa terra, a gente ganhava um dinheiro. Mas ficou só o barulho", diz o Raimundo Rodrigues Coelho, 42, que vive com a esposa em uma comunidade chamada Bonfim, na divisa entre Piauí e Bahia.

Eles moram há 16 anos no terreno, onde produzem milho e feijão. A Neoenergia estava fazendo uma obra de isolamento acústico em sua residência, mas diz que ele mora a uma distância de torres além da mínima necessária para receber indenização.

Seu irmão Gilvan Rodrigues Coelho, 47, tem uma roça próxima, também perto de torres. Diz receber R$ 700 por mês por ter cedido parte do terreno para passagem de veículos. Mas hoje acha que poderia ganhar ao menos R$ 2 mil e se arrepende de ter assinado o contrato.

"A gente fica passando o dia todo embaixo dessas torres, correndo perigo", afirma, apontando as hélices gigantescas girando sobre a árvore que garante sombra ao seu cavalo.

Conflitos desse tipo de investimento com comunidades locais se espalham pelo Nordeste e geraram um manifesto de organizações sócio-ambientais em defesa de novas regras para autorizações de construção de parques de geração de energia eólica e solar no país.

Há uma avaliação de que os benefícios são sentidos apenas por grandes consumidores do Sudeste, que compram energia renovável e barata, tornando contraditórios os esforços do governo na necessária limpeza da matriz energética brasileira.

"A lógica comprada é de que existem zonas de sacrifício", diz a pesquisadora Lustosa. "É disso que a gente está falando no final das contas: quais lugares serão sacrificados para que o Brasil seja liderança em transição energética."

Com a expansão das energias eólica e solar, a capacidade de geração do Piauí praticamente triplicou desde 2017, chegando a 5,7 GW (gigawatts) em fevereiro, segundo a Aneel. O consumo do estado cresceu 20% no período, abaixo da média nacional de 24%, segundo a EPE (Empresa de Pesquisa Energética).

É um indicador de que o grande potencial de geração renovável não vem se traduzindo em desenvolvimento regional.

Sousa, da prefeitura, diz que a administração criou um ambiente facilitador de novos negócios, mas que a atração de empresas não depende apenas do município. "Depende também da iniciativa privada e da agilidade nos licenciamentos [de novos parques]."

A Enel afirma que empregou diretamente mais de 7.000 pessoas nas obras, com efeito sobre outros 3.000 empregos indiretos. Afirma ainda ter desenvolvido mais de 154 projetos nos municípios da área de influência da planta.

Enel e Neoenergia dizem que ofertaram cursos de qualificação de mão de obra local e desenvolveram projetos sociais para capacitar moradores em outras atividades.

Dona do parque que afeta os irmãos Rodrigues Coelho, a Neoenergia diz que seus projetos são desenhados dentro do conceito de coexistência de atividades, mantendo a prática agropecuária preexistente em torno da geração de energia.

Afirma que os valores pagos pelos arrendamentos "estão compatíveis com o mercado, mas restritos às partes por questões contratuais" e que os empreendedores têm papel importante na regularização das terras. A análise de reparos necessários nas residências, prossegue, é feita caso a caso.

"Importante ressaltar que a Neoenergia observa a distância recomendada entre as unidades residenciais e os aerogeradores, que estão de acordo com a legislação em vigor, o que garante a licença de operação", prossegue a companhia.

Operação Água Espraiada leva Berrini à beira do colapso, isola casas e falha com moradia popular, FSP

 Clayton Castelani

SÃO PAULO

Vitrine de uma São Paulo futurista no início dos anos 2000, o eixo das avenidas Engenheiro Luiz Carlos Berrini, Doutor Chucri Zaidan e Jornalista Roberto Marinho trouxe a reboque do seu inegável bem-sucedido plano de desenvolvimento urbano defeitos que agora, 23 anos após a sua concepção, provocam estagnação.

Casas abandonadas entre muralhas de condomínios residenciais, prédios empresariais tecnológicos em vias onde pedestres não se arriscam a caminhar à noite, milhares de moradias irregulares e trânsito infernal são algumas das consequências desses desacertos.

Ajustar o rumo de uma das mais valiosas porções do quadrante sudoeste da cidade depende de mudanças na lei que define as regras para uso e ocupação desse território, a Operação Urbana Consorciada Água Espraiada. É ao menos essa a posição representada pela maioria dos votos de vereadores que há uma semana aprovaram em primeiro turno um projeto de lei com esta finalidade.

Casa de Esquina com prédios no entorno
Cercada por prédios, casa está à venda em zona exclusivamente residencial dentro da Operação Urbana Água Espraiada, na rua Gabrielle D'annunzio, no Campo Belo (zona sul) - Zanone Fraissat/Folhapress

Pistas do que deverá mudar surgiram em uma das audiências públicas anteriores à votação na Câmara e no próprio texto da lei, mas a proposta final só deverá ser conhecida na segunda votação, prevista para ocorrer até o início de julho.

Em linhas gerais, o que a Câmara deverá fazer é permitir que empreendimentos imobiliários no perímetro da operação tenham benefícios semelhantes aos garantidos pelas versões mais recentes do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento, ambos revisados em 2023.

No emaranhado de regras para uso e ocupação do chão paulistano, operações urbanas criam exceções. No caso da Água Espraiada, a gestão da ex-prefeita Marta Suplicy (PT) permitiu que o mercado levantasse prédios com área construída quatro vezes maiores do que a metragem dos terrenos. Em 2001, quando a proposta foi aprovada, isso representava um importante ganho de potencial construtivo em comparação com a maior parte da cidade.

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Dividida em cinco grandes setores, a operação atraiu rapidamente investidores para o seu trecho mais desenvolvido, no entorno da Berrini. Os demais avançaram em ritmos distintos e um deles, o que segue o córrego Água Espraiada até perto do bairro Jabaquara (zona sul), foi praticamente ignorado pelo mercado.

Além do esgotamento de áreas na Berrini, a operação perdeu ainda mais competitividade quando o Plano Diretor de 2014 e a Lei de Zoneamento de 2016, da gestão Fernando Haddad (PT), passaram a oferecer vantagens para que os maiores edifícios da cidade ocupassem os entornos de estações do metrô e de corredores de ônibus por toda a capital.

As revisões dessas leis permitiram construções ainda maiores nos eixos de transporte. Estima-se que prédios poderão chegar perto de dez vezes o tamanho dos terrenos, caso incorporem unidades de habitação social e lojas nas fachadas, entre outras exigências.

Operações mais recentes, como a recém-aprovada Bairros do Tamanduateí, já consideram a equiparação de potencial construtivo com os eixos em alguns pontos, segundo o vereador Rodrigo Goulart (PSD), relator das principais pautas urbanísticas em discussão na Câmara.

Transportar os mesmos benefícios para Água Espraiada poderia revigorar a sua atratividade, diz o arquiteto e urbanista Marcelo Ignatios, consultor para desenvolvimento urbano e ex-superintendente da SP Urbanismo, a empresa da prefeitura que rege operações urbanas.

O texto que sairá da Câmara, porém, poderá liberar estoques de potencial construtivo em setores já saturados. "Existe um limite para se construir e ultrapassá-lo pode levar ao colapso de uma região", diz. "Liberar mais potencial construtivo perto da Berrini seria matar a galinha dos ovos de ouro."

Os tais ovos de ouro também podem ser chamados de Cepacs (Certificados de Potencial Adicional de Construção), nome oficial dos títulos negociados na Bolsa de Valores que dão direito ao seu detentor de construir na área da operação urbana.

A prefeitura é a responsável por leiloar lotes de Cepacs e o dinheiro arrecadado deve ser investido em obras para estruturar o perímetro da operação. Isso viabilizou, por exemplo, a construção da avenida Jornalista Roberto Marinho e a ponte estaiada Octavio Frias de Oliveira.

Mas o desinteresse pelos estoques de áreas ainda disponíveis emperrou a arrecadação para a continuidade da operação, sobretudo quanto à produção de habitação de interesse social. Estima-se um déficit de mais de 5.000 moradias para famílias de baixa renda, de um total de 8.000 previstas no perímetro.

A falta de moradia digna coexiste no território com grandes casas vazias ou subutilizadas, além de alguns terrenos baldios. São imóveis ou conjuntos de lotes pequenos demais para atender o lote mínimo em que Cepacs podem ser utilizados para construção. Sem eles, o que vale é a regra da Lei de Zoneamento.

Isso se torna um problema para casas em quadras classificadas como zonas exclusivamente residenciais, que comportam imóveis com apenas dez metros de altura, ocupadas por uma única família e sem permissão para serem utilizadas como comércio. A mudança de uso do imóvel também depende das Cepacs, cujo valor passou de R$ 3.200 por metro quadrado no leilão mais recente, em 2022, e pode custar ainda mais com a flutuação de mercado.

"Ninguém quer comprar nem alugar uma casa no meio desse monte de prédios e eu precisaria comprar quase R$ 160 mil em Cepacs para mudar o uso, mas eu não tenho", diz o aposentado Ruy Paiva, 62, proprietário de uma casa fechada há dez anos no Campo Belo.

O cenário é diferente num trecho do bairro do Brooklin que está fora da operação Água Espraiada. Com as novas regras de zoneamento em vigor, quadras classificadas como eixos de transporte tiveram dezenas de casas demolidas para dar lugar a prédios.

Para analista de seguros Marcos Fábio, 49, que nasceu no bairro, a decisão de vender ou não a casa onde vive com a família depende de alguma das frequentes propostas que recebe chegar ao que ele considera justo, cerca de R$ 18 mil por metro quadrado. "Eles não querem vir para o Brooklin? Que paguem o preço", diz.

COMO A OPERAÇÃO URBANA VIRA INVESTIMENTO EM OBRAS

  • A prefeitura coloca à venda, na Bolsa de Valores, certificados que dão ao comprador o direito de aumentar o tamanho ou mudar o uso das construções na área da operação
  • Isso valoriza os terrenos, pois quanto maiores os prédios, mais apartamentos, escritórios e comércios podem ser construídos e vendidos
  • O dinheiro arrecadado com a venda desse potencial construtivo deve ser usado em obras para melhorar a infraestrutura da região

DESEQUILÍBRIO ATRAPALHA A OPERAÇÃO ÁGUA ESPRAIADA

  • A operação está dividida em cinco grandes setores e cada uma deles tem um limite de metros quadrados de potencial construtivo
  • O mercado comprou o estoque disponível na região mais cobiçada, perto da avenida Luiz Carlos Berrini, mas teve menor interesse sobre o restante
  • Sem demanda, a prefeitura deixa de arrecadar e perde capacidade de investir em obras viárias e de habitação na área da operação, por exemplo

LOTES ESQUECIDOS ENTRE PRÉDIOS PERDEM VALOR

  • Alguns terrenos não podem receber aumento de potencial construtivo porque estão abaixo do tamanho mínimo, de 1.000 m², conforme o trecho da operação
  • Esses lotes podem ficar presos à Lei de Zoneamento e perdem valor nos casos em que a lei impede a construção de grandes prédios, como nas zonas residenciais
  • Alterar o uso do imóvel também depende da compra dos certificados que permitem adicionar área construída ao tamanho do lote
  • O custo é alto e, em muitos casos, famílias proprietárias desses imóveis esquecidos não conseguem fazer a alteração de uso, tampouco acham compradores para suas casas