sábado, 6 de abril de 2024

Muniz Sodré - Longe vá, temor servil, FSP

 Nenhuma organização criminosa subsiste hoje sem lavagem de dinheiro. E todo sistema de poder político precisa lavar a sua história das origens criminosas, assim como da eventual trilha corruptiva na estabilização de um Estado. Seja qual for sua natureza. O Vaticano tenta há muito tempo lavar a Igreja do sangue derramado no escravismo, na queima inquisitorial de milhões de mulheres e nos holocaustos de conquista, do mesmo modo que as antigas potências coloniais, fazendo penitências. Ética hipócrita do arrependimento.

Tanques das Forças Armadas no comício do presidente João Goulart, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro (RJ)
Tanques das Forças Armadas no comício do presidente João Goulart, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro (RJ) - CPDOCJB - 13.mar.64/Folhapress

Na memória dos 60 anos do golpe cívico-militar de 64 pesam sobre a consciência coletiva frases de síntese como a do general ao presidente militar: "As coisas estão melhorando depois que começamos a matar". Impossível de esquecer, uma dívida do Estado à Nação jamais paga. Por isso, o silêncio como desculpa para não melindrar uma casta melindrosa é tentativa inequívoca de lavagem da história. Na galega, sem arrependimento, corroborada pela apatia da Comissão dos Mortos e Desaparecidos, já a caminho do que antigamente se chamava obra de Santa Engrácia: começa, não termina. Há nesse remancho laivos do "temor servil" que Evaristo da Veiga incrustou na letra do Hino da Independência, musicado por D. Pedro 1º. O temor de agora é o da honesta mediação entre passado e presente.

Isso não é detalhe acadêmico. É ponto crucial para o avanço do pensamento coletivo nacional, nos termos da concepção de que o trabalho do pensador "é o de alinhavar as crenças velhas e as novas de modo que essas crenças possam cooperar em vez de interferir umas nas outras" (Richard Rorty, em "A Filosofia e o Futuro"). Olhar de frente os conflitos entre instituições herdadas e o desenho construtivo da nação define o princípio de responsabilidade para com a alma racional contemporânea.

Enxergar os idos de 64 começa com a precisão terminológica de não trocar revolução por golpe de Estado, o que foi. Depois, reconhecer o arbítrio das cassações, a brutalidade das torturas, as matanças, a inépcia econômica. E o mais ominoso para a consciência cívica: golpismo como sombra espúria da institucionalização da tutela militar sobre a cidadania. É como se a pedagogia do terror fosse a única mensagem do passado ao futuro.

O presidente Luiz Inácio Lula participa de cerimônia de apresentação de oficiais generais recém-promovidos, no Palácio do Planalto
O presidente Luiz Inácio Lula participa de cerimônia de apresentação de oficiais generais recém-promovidos, no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 4.abr.2024/Folhapress

Lavar a história equivale ao medo de encarar os crimes e a cumplicidade com a dialética negativa de uma instituição que prospera na inércia histórica, em que nada mudará se não mudarem as convicções petrificadas sobre a essência nacional. Sem a verdade dos fatos não se pode conhecer a posição real das Forças no jogo democrático. Hoje, uma releitura do Hino da Independência colocaria no lugar do domínio luso a anacrônica e armada colonização interna. Longe vá, temor civil.

60 ANOS DO GOLPE Legado econômico da ditadura, Samuel Pessôa, FSP

 É fato que houve piora do desempenho econômico no período democrático medido pelo crescimento do PIB per capita. Nesta coluna, avaliarei qual teria sido o custo, na forma de perda de desempenho econômico, que tivemos com a democracia.

Análises como esta servem para aquelas pessoas que argumentam que a redemocratização foi ruim pois a economia tinha um desempenho melhor na ditadura.

Se a pessoa pensa dessa forma, para ela, a democracia não é um valor fundamental. Para essa pessoa, a escolha do tipo de governo tem que ser feita de acordo com as consequências práticas deste ou daquele tipo de governo. Não é a minha visão, mas vou aceitar essa premissa e analisar os números com esse olhar.

Artur da Costa e Silva, então presidente da ditadura militar, caminha no aeroporto de Congonhas ao lado do ministro da Fazenda, Delfim Netto (esq.), e do governador de SP, Abreu Sodré
Artur da Costa e Silva, então presidente da ditadura militar, caminha no aeroporto de Congonhas ao lado do ministro da Fazenda, Delfim Netto (esq.), e do governador de SP, Abreu Sodré - 4.mai.1969-UH/Folhapress

Segundo os dados do Ipea, o crescimento brasileiro do produto per capita entre 1964 e 1984, considerando 1963 como base de comparação, foi de 3,9% ao ano. Para o período de 1985 até 2019 —deixei a fase da pandemia de fora—, foi de 1,2% ao ano. Houve, portanto, uma vantagem de 2,8 pontos percentuais por ano para a ditadura.

Note que mantive na conta a década perdida da ditadura, os anos 1980, e a década perdida da democracia, os anos de 2013 até 2022. Ambas tiveram uma componente internacional. Nos anos 1980, a elevação dos juros nos EUA; na última década perdida, a queda dos preços das commodities que ocorreu em duas etapas, em 2011 e 2014.

No entanto, o elevado grau de vulnerabilidade que demonstramos aos choques externos foi fruto de escolhas que fizemos internamente nos dois períodos. Com os militares, a decisão de endividar o país por meio de dívida em moeda estrangeira com juros flutuantes; no episódio mais recente, uma série de medidas —a mais importante delas foi a mudança do marco regulatório do petróleo— que aumentaram muito a exposição da economia brasileira à queda dos preços internacionais das commodities.

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Recentemente, em artigo publicado no terceiro fascículo de 2023 da Revista Brasileira de Economia, Edmar Bacha, Guilherme Tombolo e Flávio Versiani revisam os números da economia brasileira de 1900 até 1980. Com os novos números, o crescimento brasileiro ao longo do período ditatorial foi 1 ponto percentual menor do que a estatística que consta no Ipea. A vantagem da ditadura cai para 1,8 ponto percentual por ano.

A dificuldade de pararmos com o exercício por aqui é que a ditadura ocorreu em um período distinto daquele em que transcorreu a democracia. A economia mundial teve desempenho distinto.

Isto é, se imaginarmos um contrafactual em que a ditadura continuasse até agora, o crescimento não teria sido o mesmo. Qual teria sido o crescimento na ditadura se ela continuasse conosco?

Minha proposta é avaliarmos pela diferença entre o crescimento que tivemos na ditadura e a média do crescimento dos países na mesma época. Ou seja, a hipótese de meu exercício é que a diferença entre o comportamento do Brasil na ditadura em relação aos demais países naquele período se manteria até hoje. Considerarei como comportamento médio dos demais países o crescimento mediano de um conjunto de países que usarei como grupo de controle para a análise consequencialista do período ditatorial.

Considerei todos os países com informações disponíveis de PIB per capita de 1963 até hoje da base de dados de Maddison. Ajustei os números de Maddison para o Brasil à correção de Bacha, Tombolo e Versiani. O crescimento per capita brasileiro entre 1964 e 1984 foi de 2,4% ao ano, e o da mediana dos países da base de dados foi de 2,4%. Não houve uma clara vantagem da ditadura sobre a mediana das taxas de crescimento da base de Maddison.

Para o período democrático, o crescimento do Brasil foi de 1,9% ao ano, e o crescimento da mediana foi de 2,1%, uma diferença de 0,2 ponto percentual para pior.

Ou seja, a diferença da ditadura sobre o grupo de controle foi de 0,2 ponto percentual (0,2 + 0) maior que a diferença da democracia brasileira sobre o grupo de controle. Acumulada de 1985 até hoje, essa diferença gera um ganho de renda de 8%.

Parece muito pouco se levarmos em conta que o bem-estar de uma sociedade não depende só do ganho de renda, mas também da desigualdade, que certamente seria maior se a ditadura tivesse continuado até os dias de hoje.

Ou seja, nem o consequencialismo salva nossa experiência ditatorial.