sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

ESTADÃO / SAÚDE Colocar em prática 12 hábitos evitaria cerca de 50% dos casos de demência; veja quais são

 A demência acomete, hoje, cerca de 1,76 milhão de idosos brasileiros, e, se nada for feito, esse número deve continuar subindo. De acordo com o estudo Global Burden Diseases, publicado no The Lancet Public Health, a estimativa é de que a incidência de quadros demenciais, a exemplo do Alzheimer, triplique no mundo inteiro até 2050. Para evitar esse cenário, é fundamental entender que é possível reduzir a probabilidade de desenvolver a condição – e há 12 fatores decisivos nesse sentido.

Eles foram citados em um relatório de 2020, publicado no The Lancet, por uma comissão de cientistas de várias partes do mundo. Alterá-los poderia evitar ou pelo menos retardar o aparecimento do problema. Com base nesse trabalho, pesquisadores brasileiros decidiram calcular qual seria o impacto de colocar essas medidas em prática especificamente entre a nossa população. Ao usar como base um levantamento com mais de 9 mil brasileiros, eles concluíram, então, que evitar esses 12 fatores de risco poderia prevenir 48,2% dos casos de demência em nosso País. O estudo foi publicado no jornal científico Alzheimer’s & Dementia.

Casos de demência devem triplicar até 2050, aponta levantamento global
Casos de demência devem triplicar até 2050, aponta levantamento global Foto: Orawan/Adobe Stock

De acordo com a geriatra Claudia Suemoto, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e uma das autoras da análise, os aspectos que mais se destacaram foram baixa escolaridade, hipertensão, perda auditiva e obesidade. Juntos, esses fatores de risco respondem por 27,7% dos casos de demência. “Ficamos surpresos de ver perda auditiva em terceiro lugar. Não ter esse problema na meia-idade (entre 45 e 65 anos) poderia evitar quase 7% dos diagnósticos de demência. Não esperava que fosse tão importante”, conta.

Ela ressalta ainda que a primeira infância, adolescência e fase adulta são os momentos da vida mais críticos em termos de prevenção de demência. “Não é algo para nos preocuparmos com 70 anos de idade”, resume. “Não quer dizer que um hábito positivo nessa fase não vá ajudar, claro. Mas provavelmente já tem muito dano instalado”, acrescenta.

A médica nota que apenas de 3% a 5% dos quadros de demência são genéticos – e, quando é assim, a doença se manifesta cedo, antes mesmo dos 60 anos. “É uma situação totalmente diferente”, afirma. Em 95% dos casos, a demência surge em fases mais avançadas da vida e tem como pano de fundo sobretudo as chamadas questões ambientais, passíveis de prevenção.

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Abaixo, saiba mais sobre cada um dos 12 fatores citados no trabalho.

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1- Investir em educação e estimulação cognitiva na meia-idade e no final da vida

De acordo com estudos, a educação aumenta a capacidade cognitiva, principalmente até o final da adolescência, quando o cérebro ainda tem maior plasticidade. Ao que tudo indica, há poucos ganhos adicionais com a educação após os 20 anos – sugerindo que esse fator seria mais crucial no início da vida.

Mas a manutenção de atividades cognitivas na meia idade (a partir dos 40 anos) seria fundamental para garantir um melhor funcionamento cerebral na velhice. O relatório do Lancet informa que viajar, ter contato com música e outros tipos de arte, fazer atividade física, ler e falar um segundo idioma já foram associados à manutenção da cognição. Atividades intelectuais, focadas principalmente na resolução de problemas, também são bem-vindas.

Os autores ressaltam que indivíduos que têm empregos exigentes do ponto de vista mental tendem a apresentar uma menor deterioração cognitiva antes e, às vezes, depois da aposentadoria.

2- Manter a pressão arterial sob controle

Os pesquisadores são taxativos: “A hipertensão persistente na meia-idade está associada ao aumento do risco de demência no final da vida”.

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Para evitar a hipertensão, é fundamental investir em um estilo de vida saudável, com foco em alimentação equilibrada, prática de exercícios, interrupção do tabagismo, controle do peso e manejo do estresse. No âmbito da dieta, vale um destaque especial para a moderação no uso de sal, ingrediente intimamente associado à elevação da pressão.

Para flagrar alterações iniciais, é imprescindível medir a pressão com frequência. “A hipertensão não dá sintomas. Por isso, se a pessoa não for regularmente ao médico e aferir, não terá o diagnóstico nem conseguirá tratar”, alerta a professora da USP. “Dessa maneira, a doença poderá causar lesões cerebrais capazes de, em longo prazo, causar a demência”.

3- Proteger a audição

No relatório do The Lancet, os autores citam que uma revisão identificou um risco aumentado de demência a cada 10 decibéis de piora no comprometimento auditivo.

Eles ponderam que mais estudos são necessários para entender a relação, mas contam que um pequeno estudo chegou a demonstrar que a deficiência auditiva na meia-idade estava ligada a prejuízos mais acentuados em algumas áreas do cérebro, como o hipocampo – envolvido na formação de memórias e no aprendizado. “A perda auditiva pode resultar em declínio cognitivo por meio da redução da estimulação cognitiva”, escrevem.

De acordo com Claudia, os estudos ainda não chegaram a conclusões definitivas sobre o papel do uso de aparelhos auditivos na prevenção da demência. Mas a médica frisa que o melhor caminho mesmo é evitar a perda de audição – e, nesse aspecto, é fundamental contarmos com políticas públicas que foquem no controle de ruídos. Do ponto de vista individual, temos que evitar ambientes barulhentos e maneirar no volume do fone de ouvido.

Evitar a perda de audição na meia-idade é um dos fatores mais importantes para a prevenção da demência mais tarde
Evitar a perda de audição na meia-idade é um dos fatores mais importantes para a prevenção da demência mais tarde  Foto: Adobe Stock

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4- Evitar lesões cerebrais

Acidentes de carro, moto e bicicleta, além de quedas e prática de determinados esportes aumentam o risco de pancadas na cabeça e prejuízos ao cérebro.

“Qualquer exercício marcado por impacto cerebral frequente pode levar à demência”, comenta Claudia. A prática de boxe é o exemplo mais conhecido. “Mas a relação também é válida para o nosso futebol”, lembra Claudia.

Para ter ideia, a International Football Association Board (IFAB), órgão regulador do futebol, proíbe jogadores com menos de 12 anos de cabecearem bolas durante treinos e partidas.

5- Praticar exercícios

Os pesquisadores reconhecem que os padrões de atividade física mudam com a idade, a geração e a presença de doenças, e que são diferentes entre sexo, classe social e culturas. Mas ponderam que revisões têm apontado que os exercícios físicos são benéficos para a cabeça.

Inclusive, o trabalho brasileiro identificou a inatividade física depois dos 65 anos como o quinto fator mais relevante para aumento no risco de desenvolver demência.

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A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda pelo menos de 150 a 300 minutos de atividade aeróbica moderada a vigorosa por semana para todos os adultos – incluindo aqueles que apresentam doenças crônicas. Se a atividade for vigorosa, o tempo cai pela metade: de 75 e 150 minutos por semana.

6- Evitar o diabetes

No diabetes do tipo 2, o hormônio insulina não consegue atuar direito – e é ele quem coloca o açúcar dentro das células para gerar energia. Com isso, um excesso de glicose permanece na circulação, aumentando o risco de uma série de problemas – entre eles, a demência.

Para não desenvolver diabetes do tipo 2, uma das principais medidas é manter um peso considerado saudável, já que sobrepeso e obesidade estão entre os principais fatores de risco para a doença. Sendo assim, a orientação é adotar hábitos saudáveis, com foco em dieta equilibrada e prática de exercícios.

Assim como a hipertensão, o diabetes também é uma condição silenciosa. “Só vai provocar sintomas quando já está grave, o que pode levar anos”, avisa Claudia. Por isso, a médica reforça a necessidade de realizarmos check-ups preventivos. “Não espere um sintoma para ir atrás de um profissional da saúde”, aconselha a geriatra.

7- Não consumir álcool de forma exagerada

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“O consumo excessivo de álcool está associado a alterações cerebrais, comprometimento cognitivo e demência, um risco conhecido há séculos”, resumem os pesquisadores no relatório do Lancet.

Embora o documento chame a atenção para uma ingestão excessiva, o entendimento dos médicos vai cada vez mais na direção de que não existe uma quantidade segura de álcool, que é considerada a droga mais utilizada do planeta.

O hábito de beber aumenta a probabilidade de doenças hepáticas, câncer, distúrbios mentais, além dos mais variados tipos de acidentes.

8- Manter um peso saudável

O sobrepeso e a obesidade, cuja incidência vem aumentando significativamente no Brasil – inclusive entre crianças e adolescentes –, estão ligados a inúmeros problemas, de doenças cardiovasculares e distúrbios do sono a vários tipos de câncer e demência.

Para ter ideia, uma análise com pessoas de aproximadamente 50 anos chegou a estimar que a perda de 2 quilos ou mais entre quem tinha um IMC maior do que 25 (indicativo de sobrepeso) foi relacionada a uma melhora significativa em habilidades cognitivas, como capacidade de atenção e memória.

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Mais uma vez, a adoção de hábitos considerados saudáveis – com destaque para a dobradinha alimentação equilibrada e prática de esportes – é imprescindível para evitar o acúmulo de quilos extras.

Praticar exercícios está entre os comportamentos decisivos para evitar a demência. Esse hábito ainda ajuda na prevenção de obesidade, diabetes e hipertensão, outros fatores de risco associados a danos no cérebro
Praticar exercícios está entre os comportamentos decisivos para evitar a demência. Esse hábito ainda ajuda na prevenção de obesidade, diabetes e hipertensão, outros fatores de risco associados a danos no cérebro Foto: JackF/Adobe Stock

9- Parar de fumar

Segundo os especialistas, quem consegue largar o cigarro – mesmo sendo mais velho – fica mais protegido contra o surgimento de demência. Ou seja, nunca é tarde para parar de fumar.

Estudos indicam outro motivo para tomar essa atitude: a probabilidade de deterioração da memória é maior até entre fumantes passivos. Logo, largar o cigarro beneficia pessoas próximas.

10- Combater a depressão

Diversos mecanismos psicológicos e fisiológicos são capazes de explicar a ligação entre depressão e maior risco de demências, ressaltam os pesquisadores.

Para tentar preveni-la, Claudia sugere investir em bons hábitos – como alimentação saudável e exercícios –, criar e manter vínculos sociais, limitar o uso de telas e fazer terapia. Se sintomas aparecerem, a médica frisa que é imprescindível buscar o tratamento adequado, que pode ou não envolver medicamentos.

11- Investir em contato social

Manter relações sociais, evitando o isolamento, é uma ferramenta poderosa para aumentar a reserva cognitiva e favorecer comportamentos benéficos.

“Apesar da clara variação cultural no significado e na percepção do isolamento social, os resultados do efeito protetor de mais contato social são amplamente consistentes em diferentes ambientes e para ambos os sexos nos estudos”, reforçam os pesquisadores.

Nesse sentido, algumas estratégias podem ajudar: priorizar exercícios físicos em grupo, realizar trabalho voluntário, inscrever-se em algum tipo de curso e por aí vai. Focar em atividades como essas facilita não só o aumento do círculo social como coloca na rotina atividades que exercitam o cérebro.

12- Evitar a exposição à poluição

Em animais, estudos já mostraram que poluentes atmosféricos aceleraram processos neurodegenerativos.

Para minimizar os riscos, não faça atividade física em ruas e avenidas com alta circulação de veículos e troque o filtro do ar-condicionado do carro com certa frequência.

ESTADÃO / POLÍTICA Família Dino está no poder desde o Império e tetravô ajudou Pedro II contra rebelião; leia perfil

 BRASÍLIA - Indicado ao Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro da Justiça, Flávio Dino, é representante de uma linhagem que ocupa postos de poder desde os tempos do Império (1822-1889). A ascensão do clã começou com seu tetravô, Francisco Manuel Antônio Monteiro Tapajós, o “Herói de Tapajós”, que ajudou o então imperador Dom Pedro II a esmagar militarmente a Cabanagem, um levante popular de negros, indígenas e mestiços na Amazônia. O pai de Dino foi deputado estadual e o avô, desembargador – numa época em que os cargos no Judiciário se davam por indicação.

O Ministro da Justiça, Flávio Dino, indicado para a vaga no STF, fala após encontro com o presidente em exercicio do Senado, Veneziano Vital do Rego
O Ministro da Justiça, Flávio Dino, indicado para a vaga no STF, fala após encontro com o presidente em exercicio do Senado, Veneziano Vital do Rego Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

As informações sobre a genealogia de Flávio Dino foram levantadas por uma dissertação de mestrado em Ciências Sociais apresentada à Universidade Federal do Maranhão (UFMA) em 2007. O trabalho chama-se “A Tradição Engajada: origens, redes e recursos eleitorais no percurso de um agente”, do advogado José Barros Filho. Flávio Dino formou-se em Direito na mesma universidade em 1986 e foi coordenador do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Fez mestrado em Direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e passou em 1º lugar no concurso para juiz federal em 1994, aos 26 anos.

“Nicolau Dino (o avô de Flávio Dino) descende de uma tradicional família ‘amazonense’, a família Tapajós”, diz um trecho da dissertação. A linhagem começa com Francisco Tapajós (1815-1877), tetravô de Flávio Dino. Francisco “tornou-se um próspero proprietário de terras às margens do Rio Tapajós, na então província do Grão-Pará. Colaborou com o governo provincial no combate à ‘Revolta dos Cabanos’ (a Cabanagem) e, em sinal de gratidão pelos serviços prestados, foi proclamado pelo Imperador D. Pedro II ‘Herói de Tapajós’”.

A dissertação destaca que, além de coronel-Comandante da Guarda Nacional, Francisco Tapajós enveredou pela política. Foi deputado provincial em 1874, ocupando a presidência da Assembleia Provincial do Grão-Pará”, diz a dissertação. Tapajós foi também empresário, tendo sido dono de uma grande olaria – que usava inclusive trabalho forçado de indígenas, segundo o artigo “Mundos cruzados: etnia, trabalho e cidadania na Amazônia Imperial”, apresentado em 2009 por Patrícia Melo Sampaio.

O trabalho dos indígenas beneficiou “inúmeras vezes” o deputado “Francisco Antônio Monteiro Tapajós que contava também com o beneplácito de seus colegas de Assembleia para aprovar créditos, às custas dos cofres provinciais com juros e prazos amigáveis, para instalação de seus estabelecimentos industriais, entre eles, uma olaria destinada a fabricar tijolos e telhas para abastecer as obras públicas”, diz um trecho do artigo.

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Uma das filhas dele, Heloisa Clementina, casou-se com outro político, Nicolau Castro e Costa – este foi “deputado da Assembleia Provincial do Amazonas em 1874″, numa época em que o voto era censitário, isto é, restrito aos proprietários de terras. É daí que vem o ramo de Flávio Dino da família, e o político maranhense carrega hoje o sobrenome do trisavô (Castro e Costa), mas não o Tapajós. Desde Francisco Antônio Monteiro Tapajós até Flávio Dino, são cinco gerações de pessoas destacadas na política e na Justiça.

“A família dele (Dino) é uma família importante do Maranhão, uma genealogia muito bem estruturada no Maranhão e no Amazonas, há várias gerações, desde o período imperial. É exatamente o mesmo padrão (...) da composição do poder no Brasil. Dino segue este mesmo modelo sociológico, da classe dominante. Famílias políticas com parlamentares e redes de parentesco (...) no sistema judicial, nas Forças Armadas, na intelectualidade”, afirma o sociólogo Ricardo Costa de Oliveira, que é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e estudioso das famílias políticas. “Dino segue aquilo que a gente chama de CDT: a Classe Dominante Tradicional.”

Nicolau Dino, o avô desembargador, era estudioso. Publicou teses de Direito e pelo menos um livro, além de ter sido sócio do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão. Também fez parte da Academia Maranhense de Letras Jurídicas (AMLJ) – ele é o patrono da cadeira de número 40, hoje ocupada pelo próprio Flávio Dino. O avô era “pessoa sempre muito estudiosa (...). Eu lembro, quando eu era criança, ele tinha muitos livros. Essa é uma imagem que marca muito. Lia muito Rui Barbosa, ele produzia teses também, artigos, textos, enfim, defendia teses jurídicas inovadoras”, disse Dino numa entrevista à dissertação de mestrado de José Barros Filho.

Flávio Dino herdou do pai, Sálvio, a inclinação política à esquerda. Advogado criminalista, Sálvio foi deputado estadual no Maranhão pelo Partido Democrata Cristão (PDC) e teve os direitos políticos cassados em 1964 após o golpe militar, sendo acusado do “exercício de atividades comunistas”. Chegou a ser preso, e sua sorte só melhorou quando o ex-presidente José Sarney (MDB) foi eleito governador do Maranhão, em 1966. Sálvio integrava o mesmo grupo político de Sarney e trabalhou no governo dele, na Secretaria da Fazenda. Décadas depois, caberia a Dino interromper a sequência de governos ligados aos Sarneys no Estado.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

O QUE A FOLHA PENSA - O legado de Kissinger,

 

Henry Kissinger, diplomata e ex-secretário de Estado dos EUA - Brendan Smialowski/AFP

Gênio da diplomacia. Manipulador inescrupuloso. Maestro da Guerra Fria e pai da disputa geopolítica entre China e Estados Unidos. Criminoso responsável por ditaduras e políticas de extermínio.

Morto aos 100 anos, Heinz Alfred Kissinger era um dos poucos homens que podiam receber todas as qualificações acima. Ao mesmo tempo, como gostava de dizer, ser vilão e herói no fluxo histórico.

Kissinger, um judeu alemão cuja família fugiu do nazismo, tornou-se o americano Henry e avançou uma brilhante carreira acadêmica.

No seu doutorado em Harvard, publicado em 1957 como livro sobre a paz do Congresso de Viena no século 19, encontra-se seu modelo presumido: o príncipe austríaco Klemens von Metternich, artífice do longo período de relativa estabilidade europeia pós-Napoleão.

O nobre, escreveu Kissinger, destacou-se pela manipulação e pela sutileza. Da mesma forma, como acadêmico, diplomata, alto funcionário e consultor milionário, foi ouvido por 12 presidentes americanos, notavelmente o antissemita Richard Nixon, a quem desprezava.

E não só, como a recente visita do "velho amigo da China" a Xi Jinping provou. O país asiático é talvez o zênite da carreira de Kissinger. Como conselheiro de Segurança Nacional e secretário de Estado, estabeleceu os laços que levaram Pequim a ser o chão de fábrica do Ocidente por várias décadas.

Como a paz de Metternich desaguou no primeiro conflito mundial cem anos depois, o objetivo inicial de Kissinger com a China, de minar o poderio soviético nos anos 1970, gestou a segunda Guerra Fria entre Pequim e Washington.

A lista de eventos do fim do século 20 com a mão do diplomata é infindável, como a aceitação enrustida da derrota no Vietnã que lhe rendeu um Nobel da Paz e a instalação dos EUA como vetor central no Oriente Médio por décadas.

Aqui, as tintas do legado se tornam sombrias, quando não enrubescem pelo sangue derramado de 50 mil cambodjanos mortos numa campanha aérea brutal e ilegal dos EUA, ou das vítimas da ditadura de Augusto Pinochet, cuja ascensão patrocinou em 1973 no Chile.

Como todo colosso, Kissinger tinha fraturas e áreas de sombra. Defini-lo só por uma coisa ou outra é negar a complexidade inerente às grandes figuras históricas.

editoriais@grupofolha.com.br