sábado, 12 de agosto de 2023

USP terá primeiro posto do mundo para abastecimento com hidrogênio derivado de etanol, EPBR

 BRASÍLIA — A parceria entre Shell, Hytron, Raízen, SENAI CETIQT e Universidade de São Paulo (USP) para testar a viabilidade do hidrogênio de etanol lançou, na quinta (10/8), a pedra fundamental da primeira estação experimental de abastecimento do mundo a adotar a tecnologia de reforma a vapor do biocombustível.

A planta-piloto ocupará uma área de 425 metros quadrados e terá capacidade de produzir 4,5 kg de H2 por hora, dedicada ao abastecimento de até três ônibus e um veículo leve.



O projeto de Pesquisa & Desenvolvimento tem investimento total de R$ 50 milhões da Shell Brasil, com recursos da cláusula de PD&I da ANP.

Para testar o abastecimento, o grupo firmou um memorando de entendimento com a Toyota, que fornecerá um veículo para os estudos. A previsão é de que a estação experimental esteja operando no segundo semestre de 2024.

“O objetivo desse projeto inovador é tentar demonstrar que o etanol pode ser vetor para hidrogênio renovável, aproveitando a logística já existente da indústria. A tecnologia poderá ajudar a descarbonizar setores que consomem energia proveniente de combustíveis fósseis”, afirmou o presidente da Shell Brasil, Cristiano Pinto da Costa.

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Reforma a vapor

No conjunto de equipamentos que serão instalados no local, haverá um reformador a vapor de etanol desenvolvido e fabricado pela empresa Hytron.

É nesse equipamento que irá ocorrer a conversão do etanol em hidrogênio por meio de um processo químico chamado reforma a vapor — quando o etanol, submetido a temperaturas e pressões específicas, reage com água dentro de um reator.

“Estamos unindo a tecnologia brasileira pioneira da Hytron para demonstrar uma solução disruptiva, onde o hidrogênio produzido do etanol passa a ter um papel ainda mais relevante e de elevado impacto para a transição energética do país e do mundo”, aponta Daniel Lopes, diretor comercial da Hytron.

Ao longo do funcionamento da estação experimental, os pesquisadores vão validar os cálculos sobre as emissões e custos do processo de produção de hidrogênio.

De acordo com Julio Meneghini, diretor científico do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI), a estimativa é que o custo da produção de hidrogênio a partir de etanol é comparável ao custo do obtido a partir da reforma do gás natural no Brasil.

“Já as emissões são comparáveis ao processo que realiza a eletrólise da água alimentada com energia elétrica proveniente de fonte eólica”, afirma Meneghini.

O etanol será fornecido pela Raízen, joint venture entre a Shell e a Cosan. Já o Instituto SENAI de Inovação em Biossintéticos e Fibras do SENAI CETIQT fará simulações computacionais para tornar o equipamento mais eficiente, identificando oportunidades de aperfeiçoamento e aumentando a taxa de conversão do etanol em hidrogênio renovável.

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Testes em veículos

O hidrogênio produzido na estação vai abastecer os ônibus cedidos pela Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo (EMTU/SP). Eles vão circular exclusivamente dentro da cidade universitária.

Para testar a performance do hidrogênio, a Toyota cedeu ao projeto o Mirai, primeiro veículo a hidrogênio do mundo comercializado em larga escala, cujas baterias são carregadas a partir da reação química entre hidrogênio e oxigênio na célula combustível.

Rafael Chang, presidente da Toyota do Brasil, conta que o projeto é o primeiro  passo da empresa para testar o uso dessa nova tecnologia no país.

“Temos interesse e disposição para trabalhar em conjunto com o governo do Estado para viabilização do transporte sustentável com uso do hidrogênio renovável a partir do etanol”, afirma Chang.

CERRADO: AS CURVAS DE UM BIOMA AMEAÇADO Por Olavo David, MEIO

 

O Cerrado está esgotado. A estiagem que enxuga as árvores retorcidas e o solo ácido é costumeiramente cruel. Mas é o homem o agente central da aceleração na exaustão da “savana brasileira”. O Cerrado registrou um crescimento de 16,5% no desmatamento entre junho de 2022 e junho de 2023, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entre janeiro e junho deste ano, o Inpe já registrou aumento de 21% na devastação do Cerrado em relação aos mesmos meses do ano passado. A destruição está em ascendente. Em maio deste ano, desmatou-se 83% a mais que no quinto mês do ano passado.

Talvez pelo cenário de natureza peculiar, de árvores tortuosas e vegetação rasteira, seja difícil para alguns ligar a noção de desmatamento ao Cerrado. Mas ele está lá. Acelerado. O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro, atrás apenas da Amazônia, ocupando 20% do território nacional com seus mais de dois milhões de quilômetros quadrados originais. É uma Europa Ocidental no coração do Brasil. Metade disso (48%) já foi devastada. É — ou era — a parte sul do bioma, que abrange pedaços de Paraná, Minas e São Paulo.

Desde a campanha presidencial, o presidente Lula (PT) tem falado muito de Amazônia. Com a ministra Marina Silva ao lado, prometeu reduzir o desmatamento na região já a partir do primeiro dia de mandato. E tem cumprido. O aumento da devastação no Cerrado destoa das reduções percebidas na Floresta Amazônica, que, em 2023, teve 33% de alertas de desmatamento a menos, segundo o Sistema Deter, do Inpe. Mas o crescimento de um e a diminuição do outro são parte do mesmo fenômeno. Para além das ligações naturais entre dois ecossistemas fronteiriços, o bioma do coração do Brasil virou destino para quem desmatava na região Norte. Sozinhas, entretanto, a estiagem e a migração amazônica não explicam o risco para o Cerrado.

A resposta está nos grãos, na carne e na posse: cerca de 75% do desmatamento deste ano no bioma foi registrado na região que divide Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba, atualmente a maior fronteira agrícola brasileira. O agronegócio responde por cerca de 97% do desmatamento do ecossistema, numa dinâmica que é basicamente luta por terreno — e terreno para boi dormir. “A gente observa 33 milhões de hectares de pastagens degradadas ou subutilizadas. A Embrapa estima que cada hectare pode receber quatro cabeças de gado; no Cerrado, a média é de apenas uma”, explica Yuri Salmona, pesquisador do Instituto Cerrados. O que completa o tridente de um ecossistema em crise são as escrituras e titulações. Enquanto a Amazônia tem boa parte de seu território como terra pública, o Cerrado, a “savana brasileira”, está em mãos particulares, o que dificulta a ação do Estado e a regulamentação. Hoje, o Cerrado tem apenas 8,3% de sua extensão protegida, seja em áreas demarcadas ou Áreas de Proteção Ambiental (APA), com somente 3% de áreas de proteção integral.

Essas questões mantêm lá em cima a devastação que, historicamente, é muito alta. “Aumentar o desmatamento é ruim por si só, mas aumentar num lugar que já tem 50% do bioma morto é suicídio”, aponta Salmona. “É como se o Cerrado fosse um homem já muito careca que ainda perde muito cabelo.”

Os segredos da terra

A frase geralmente é usada para o estado de São Paulo, mas Salmona a reivindica para o Cerrado: “Nosso bioma é a locomotiva da nação”, diz ele, que defende um olhar apaixonado para o momento do meio ambiente no país. A centralidade do ecossistema no mapa deveria ser copiada para as ações públicas, como ele diz. Para a política institucional. Já foi, por força de convenção internacional, lá em 2010, pelo Tratado de Aichi. O acordo previa, entre muitas outras medidas, que, até 2020, todos os biomas dos signatários teriam 17% de suas áreas protegidas por Unidades de Conservação. A Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio) foi escalada para acompanhar a evolução das demandas, mas o negócio “não pegou” por aqui. A Conabio foi esvaziada por decreto de Bolsonaro em 2020, justamente no ano de encerramento do prazo para as metas estipuladas. Nem metade da meta de preservação foi cumprida.

É sobre isso que Yuri fala quando prega que temos de “repensar o país a partir do Cerrado”, ideia que talvez traga outros dividendos. O Cerrado é a marca da resistência. São as árvores que se contorcem sob um sol escaldante e vermelho, é a mata espinhosa e quebradiça, singular. Única. Arranha o corpo e não se deixa passar despercebida. É, em partes, ser mais como Madalena Soares. “Madá” é uma mulher bem tímida. Fala mansa, pausada. Em ritmo de interior, ela conta que não é apenas moradora e agricultora no Cerrado; ela é parte ativa do bioma. No mesmo tom que fala da rotina — que começa às 4h, “antes mesmo do sol” —, ela conta que será palestrante numa universidade particular de Brasília. Madá é bem famosa.

No movimento Slow Food, voltado à política alimentar e à agricultura sustentável, ela tem espaço garantido para falar sobre suas práticas. Madá era uma comerciante comum no Ceasa de Brasília até meados de 2014. De lá pra cá, formou-se técnica agropecuária pelo Instituto Federal de Brasília (IFB), aprendeu variações no cultivo e na colheita de frutas nativas e desenvolveu novos produtos a partir do que extrai da terra. Tudo com Madá é assim, utilizado até a última possibilidade, retorcido ao máximo. Como as árvores que a rodeiam.

Sua farinha de casca de baru é uma das especiarias mais procuradas na feira, e já chamou a atenção de alguns restaurantes da capital, que agora têm nela uma fornecedora dedicada. “Eu louvo tudo. O baru eu cuido do pé à flor, da semente à casquinha.” É com deferência que Madá lida com a terra. “A gente tem que dar valor a cada pezinho de árvore. Pode não dar fruto ainda, mas um dia vai dar.” Madá se aproveita dos segredos soprados que só quem é parte do bioma sabe ouvir. “Quem diz pra mim que tá na colheita do baru é a arara, que voa com ele no bico. A biodiversidade daqui é demais, são mais de três mil frutos. O ser humano aqui destrói pra plantar soja ou para ‘plantar boi’.”

Não só de frutos se faz a diversidade do Cerrado, que é casa para mais de 11 mil plantas, “podendo chegar a 14 mil”, segundo Salmona. Essa é uma das entradas que o biólogo enxerga para uma economia verde, voltada à exploração sustentável do bioma. Há chances também pelo mercado de carbono. O Cerrado é responsável por reter mais de 13 bilhões de toneladas de dióxido de carbono que iriam à atmosfera. Com um tesouro desses, parece loucura derrubar ou queimar a terra. É loucura. Mas compensa. Algumas missões de pesquisadores mata adentro conseguem perceber que a terra no bioma, hoje, vale mais dinheiro quando devastada.

O berço das águas

Madá mora e produz numa chácara de 12 hectares no assentamento Veredas II, a meio passo de Padre Bernardo, município goiano no entorno do Distrito Federal. Ela percebe as mudanças nos hábitos mais básicos. No imóvel, onde “jorrava água”, o líquido começou a rarear durante a estiagem. O jeito foi cavar uma cisterna, mas a água continuou a fugir. Ela apelou para um brejo a cerca de dois quilômetros de sua propriedade. E lá foi Madá com picareta, enxada e pá. “Mas ainda periga, viu?”, alerta, em tom grave.

Conhecido por “berço das águas” do Brasil, o Cerrado abriga as nascentes de quatro das mais importantes bacias brasileiras: a do Tocantins, afluente do Amazonas; a do próprio Amazonas, por meio do Xingu; a do São Francisco, o icônico “Véio Chico”; e a do Paraná, “o mais fértil e também o mais importante para a geração de energia elétrica no Brasil”, segundo Salmona. Há outras 3.424, mas essas são as de maior destaque. O que nasce no Cerrado, com sua paisagem avessada, é valioso. É possível destruir o Pantanal e toda sua diversidade sem nem tocar naquela região. Só devastando o Cerrado. Porque saem dali as águas que inundam a floresta pantaneira.

Em estudo, Salmona analisou as bacias hidrográficas enquadradas no bioma, em registros que vão de 1935 a 2022. O resultado? Houve queda na vazão de todas elas, o que reflete nos rios. Uns mais, outros menos, mas em média 15% da vazão dos cursos d’água que saem do Cerrado foi perdida, graças às mudanças no solo — “leia-se desmatamento”, traduz o pesquisador. Numa projeção feita até 2050, a tendência é que 34% da capacidade hidrológica seja perdida. Isso num cenário otimista, “com políticas públicas contra desmatamento e modelo climático de menor emissão de CO2”.

O timbre tranquilo de Madalena só se altera quando ela fala da destruição de seu lar. A raiva sobe aos olhos e aperta a garganta. Madá chora num misto de dor e ódio, como se houvesse perdido um parente. “Desculpe, filho”, diz ela, envergonhada. “É maldade demais. O Cerrado faz parte de mim, é da minha família.” Mas Madá não arreda o pé. “Eu enfrento esse mato todinho no facão e na enxada, mas não boto fogo. Trabalha eu e Deus.” Ela enxuga os olhos e se reconforta na ideia de um parceiro de batalha. “Eu me sinto o próprio Chico Mendes, como se eu tivesse lutando sozinha.”

Por Flávia Tavares, Edição de Sábado: A era do calor que mata começou, MEIO

 Quatrocentas e oitenta e nove mil pessoas morrem por ano por causa do calor; 61 mil no verão passado, só na Europa. A onda de calor de 2021 no noroeste do Pacífico matou 1 bilhão de criaturas marinhas. Os oceanos absorvem, por segundo, o calor equivalente a cinco bombas atômicas. Outra onda de calor, na Antártica, levou os termômetros aos 20ºC. O recorde histórico de alta temperatura do Canadá foi batido em 2021, com 49,6ºC. Da Europa também: 48,8ºC, na Sicília. Há menos de um mês, uma cidade chinesa marcou 52,2º C. Julho de 2023 foi o mês mais quente de que se tem registro. A última vez que o planeta esteve tão quente foi 125 mil anos atrás. O número de dias em que a temperatura passa dos 50ºC em algum canto do mundo dobrou desde a década de 1980. Cerca de 30% da população mundial está exposta a ondas de calor mortíferas mais de 20 dias por ano. Há uma chance de 98% de que ao menos um dos próximos cinco anos seja o mais quente de que se tem notícia. No fim deste século, até 75% dos habitantes da Terra viverão sob risco de morte por causa de eventos climáticos causados pelo calor. Desde a década de 1990, ondas de calor causadas por mudanças climáticas custaram à economia US$ 16 trilhões.

Estamos na era do calor que mata. Num dia tórrido, um trabalhador desprotegido insiste na lida ao ar livre, temendo por seu emprego, e sucumbe. Sob a incandescência do sol, uma família sai com sua bebê e seu cachorro numa caminhada que parecia inocente e seus corpos são encontrados horas depois. Os tetos de zinco que refletem poeticamente a luz do luar em Paris se tornam fornalhas que sufocam idosos. Essa onipresença invisível que é a ardência de um dia extremamente quente está mais comum, mais intensa e mais perigosa do que nunca foi ao ser humano. Nos últimos 250 anos, fomos colocando combustível no forno que, por fim, nos assará. Combustível literal, fóssil, que libera gás carbônico, cujas moléculas vibram com o calor que a Terra absorve e reflete. Quanto mais moléculas de gás carbônico no ar, mais vibração, mais calor. “Precisamos mudar, fundamentalmente, tudo”, diz Jeff Goodell, jornalista que cobre mudanças climáticas há mais de duas décadas, principalmente para a Rolling Stone, em conversa com o Meio. “Nossas velhas ideias sobre como é o clima — o que é o verão, quando começa o inverno —, tudo que sabíamos de mundo climático acabou.”

Goodell é um americano nascido no Vale do Silício, mas que mora no Texas, terra de muito calor. Num dia escaldante, conversava com sua mulher e musa, Simone, e, já tendo escrito livros sobre o aumento do nível do mar, os efeitos da indústria do carvão e outras ameaças climáticas, percebeu que era hora de encarar a força motriz dessas mudanças. The Heat Will Kill You First (O Calor Vai te Matar Primeiro, em tradução livre) é o livro produto dessa apuração, recém-lançado em nove países (ainda não no Brasil). As histórias de morte relatadas ali em cima são algumas das que Goodell compilou em três anos de pesquisa — assim como a certeza inequívoca do título de sua obra. E de que é o CO2 dos combustíveis fósseis o grande responsável. “O fato de estarmos queimando combustíveis fósseis que emitem CO2, e que o CO2 vai para a atmosfera e aquece o planeta, é ciência muito, muito básica. É tão real quanto a gravidade.” Essa habilidade de apontar culpados por eventos climáticos extremos com convicção — e provas — é algo relativamente novo no campo científico. Depois de uma onda de calor que vitimou 70 mil pessoas na Europa vinte anos atrás, pesquisadores perceberam que atribuir responsabilidade clara era chave. Uma nova área, dedicada a isso, se fundou. E hoje pode afirmar, com dados, que uma onda de calor como a que acometeu a China em 2023 pode acontecer até a cada 5 anos se a temperatura continuar subindo — sem a ação direta do homem, esse teria sido um evento de 1 em 250 anos.

Ter essa confiança na ciência por trás de afirmações assustadoras é crucial. Tão devastadoras quanto as ondas de calor são as de negacionismo. Mesmo àqueles que questionam o mais básico dos dados, o de que a indústria de óleo e gás é uma das principais causadoras do aquecimento global, Goodell tem ciência como resposta. “A própria ExxonMobill tem estudos e modelos, da década de 1970, que mostravam com bastante precisão que a queima de combustíveis fósseis esquentaria o planeta. Eles não são ambientalistas liberais de esquerda malucos.” Não são. Mais que isso. Há pesquisas que estimam que a ExxonMobill foi responsável, sozinha, por cerca de 3% do total de emissão de gás carbônico no planeta em cinco décadas. Enquanto seus acionistas seguem se recusando a tomar medidas concretas para diminuir essa “contribuição”, processos e mais processos podem começar a pingar contra a empresa — pedindo 3% de toda a destruição de propriedade, prejuízos e mortes que aconteceram por eventos climáticos nesse período. Isso talvez a force a mudar. Os grandes consumidores de combustível fóssil estão se mexendo. Do Fórum de Sustentabilidade da Boeing, em São Paulo, Pedro de la Fuente, gerente de Sustentabilidade da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês), disse ao Meio que, na última década, as companhias aéreas já gastaram mais de US$ 1 trilhão em aeronaves mais eficientes e reduziram em 21,5% as emissões de CO2 por assento por quilômetro. “Foram 10 anos de muito trabalho.”

Só que o nível de trabalho que frear o aumento da temperatura requer é imensurável. Sim, frear, porque, a não ser que se invente uma forma de sugar gás carbônico em quantidades colossais, não se reverte o estrago do que foi jogado na atmosfera. No máximo, se freia. Até aqui, nesses mais de dois séculos de queima de óleo e gás, a temperatura do planeta já subiu 1,1ºC comparada aos níveis pré-industriais. A ONU limitou, no Acordo de Paris, a 1,5ºC o tolerável. Na trajetória que estamos de crescimento, até 2100 vamos ficar entre 2,1ºC e 3,9ºC acima dos níveis pré-industriais. A conta não fecha. Na previsão “otimista”, de 2,1ºC, teremos uma temperatura terrestre que não acontece há mais de 2,6 milhões de anos. No piores cenários traçados pelo IPCC, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU, se o planeta bater as temperaturas mais altas projetadas, vamos reverter até 50 milhões de anos mais frios em apenas dois séculos. Por que essa referência à pré-história importa? Porque os cientistas já sabem que as mudanças climáticas, regionais ou globais, foram fundamentais em cada um dos cinco eventos de extinção em massa na história da Terra. E a temperatura no final do século pode ultrapassar os limiares que desencadearam extinções em massa anteriores. O calor pode nos extinguir.

Então, por que não estamos mais assustados?

Uma das razões é a noção de que outros eventos climáticos extremos são mais devastadores. Um furacão ou uma enchente têm a destruição e a morte como cartão de visita, você vê pela janela. Goodell lembra, de saída, que o calor está na formação e nas consequências de muitos desses fenômenos. Até 600 mil pessoas morrem por ano por inalar a fumaça de incêndios florestais. “Furacões nada mais são que motores de calor, que giram com o ar quente e úmido que emerge de oceanos quentes.” E os oceanos, onde se movimentam as correntes que definem a estabilidade do clima, estão mais quentes do que nunca. Mais calor significa, necessariamente, mais eventos extremos de todo tipo.

O calor é ardiloso. No imaginário e na história da evolução, está associado à criação tanto quanto à destruição. O universo nasce de uma explosão. Na Terra, a vida surge em torno do calor dos vulcões. É provável que o calor no solo tenha feito nossa antepassada hominídea, Lucy, se levantar e iniciar uma espécie ereta. A manifestação física primordial do calor costuma ser um belo dia de sol, basicamente a versão romântica de felicidade. Enquanto emoldura a imaginação do que é um momento feliz, o calor que esquenta as águas dos rios em Vancouver leva salmões a descamarem enquanto nadam para procriar. Filhotes de falcão que ainda não aprenderam a voar se jogam de seus ninhos nos parapeitos metálicos de prédios para não fritar. Na última década, algo entre 40% e 70% das 4 mil espécies de animais estudadas por um grupo de cientistas migraram para fugir do calor extremo.

Mas os humanos, em alguma medida, têm feito o movimento oposto. Nos EUA, o censo de 2020 apontou que as pessoas já estão migrando por mudanças climáticas. Elas saem de áreas sujeitas a tempestades (de chuva ou de neve) e procuram lugares mais quentes — entre outras coisas, porque costumam ser mais baratos. Também porque foram acostumadas à ideia de calor como algo saudável. Sexy. Desejável. “Mesmo o termo 'aquecimento global' soa como um clima melhor na praia”, preocupa-se Goodell. Comunicar que o mundo esquentar 2 graus é algo catastrófico é muito difícil. Quem é capaz de perceber a diferença entre 35 e 37 graus? Entre as mudanças radicais que o jornalista propõe, está a da linguagem. A começar por se nomear ondas de calor como se faz com furacões e tempestades. “Ao se ouvir falar da onda Lúcifer ou Diablo, uma pessoa que não está atenta ao assunto ou às formas de se prevenir presta atenção.”

Outro motivo do desprezo pelo tamanho da ameaça é um dos que mais assustam Goodell quando ele tenta ser otimista sobre o futuro. O pouco valor atribuído à vida, especialmente dos mais vulneráveis. Como em toda catástrofe, os mais suscetíveis são os mais pobres. E os idosos. Goodell divide, em seu livro, os que têm mais condições de se salvar (os “cool”) no curto prazo dos basicamente condenados a perecer (os “damned”). O tipo de recurso necessário para se pagar por ar-condicionado, mudar de cidade, lidar com uma disparada de preços nos alimentos por causa do calor extremo é algo restrito a poucos. O tipo de saúde que resiste à insolação, desidratação e exaustão causadas pelo calor certamente não é a da população mais velha. E a pandemia deixou evidente como estamos, enquanto sociedade, prontos a suportar altos níveis de morte de pobres e idosos. Aos milhares por dia. “Temos que a gente se adapte a ver pessoas morrendo de calor, a furacões maiores e mais fortes, à Amazônia queimando, pensando 'ah, é assim que nosso mundo funciona'. Não é. É assim que o mundo que criamos funciona. Mas temos algum controle sobre ele.”

Por acreditar nisso, Goodell está na missão do alerta, do chamado à ação. Não quer ser profeta do caos, da ruína. Já foi chamado até de “otimista ingênuo”, ele esboça um projeto de sorriso pela primeira vez em toda a entrevista. Enquanto é um fato que as cidades, com seu efeito de ilhas de calor, chegando a exibir 15 graus a mais que o entorno rural, são armadilhas mortais, é nelas que têm surgido algumas das inovações e saídas mais auspiciosas. Em contraponto aos edifícios lacrados que dão suporte a sistemas de ar-condicionado (eles próprios grandes emissores de gases do efeito estufa), há cidades se remodelando para ter áreas verdes, de sombra, de circulação de ar — e menos circulação de carro. A humanidade está, em alguns casos, recuperando a memória de construir cidades para o calor, como se fazia na Grécia, no Oriente Médio. Vai ser tarde demais? “Teremos que pensar de forma diferente sobre como obtemos nossa energia, como construímos nossas cidades, de onde obtemos nossa comida. Se olharmos a situação francamente, bem no olho, e começarmos a construir de uma maneira mais inteligente, a tomar as ações que precisamos tomar para lidar com as coisas, podemos usar essa transformação para realmente construir um mundo melhor.” A humanidade simplesmente depende disso.

Em tempo: esta reportagem foi escrita ao som da trilha sonora de Interstellar, de Hans Zimmer (Spotify).