Entendo, lendo isso e aquilo, que o governoLula já acabou, afundado em irresoluções. E todos os desaires derivariam de atitudes erradas do presidente. Li há pouco um troço que sugere haver traços de senilidade nas suas atitudes. Espantoso, mas não surpreendente. Discordo, sim, e torço para estar certo, não por vaidade intelectual. É que, do contrário, não vislumbro um futuro muito alvissareiro para o país. Até porque, convenham, como num poema de Jacques Prévert, "o asno, o rei e eu/ Estaremos mortos amanhã".
"Os homens fazem a sua própria história rigorosamente como querem, segundo circunstâncias que são de sua escolha. O passado é irrelevante. As tradições de todas as gerações mortas fenecem com elas e, uma vez também defuntas, libertam o cérebro dos vivos". Uma ferramenta qualquer de inteligência artificial, fazendo jus à burrice natural destes tempos, poderia reescrever assim um trecho de "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", de Karl Marx. Nesta minha primeira coluna de junho, nos 10 anos daquele 2013 do florescer dos porras-loucas, mal posso conter a tentação de fazer aqui o elogio da pura vontade contra as fronteiras do real. Tempos difíceis. Faço soar o alerta de ironia?
Lula durante entrevista no Palácio do Itamaraty após receber o presidente da Finlândia, Sauli Niinistö - Gabriela Biló/Folhapress
Bem, sou, nessas coisas, um conservador. A cada dia, sua agonia, como dizem, e será sempre necessário "cultivar nosso jardim". E é fato que "tudo vai pelo melhor, no melhor dos mundos possíveis". Será mesmo essa uma divisa do otimismo tolo? A resposta vem na forma de uma pergunta: o que há no impossível? Tudo o que avança além dessa linha fica no território do sonho, da utopia, dos desejos. São prefigurações legítimas, mas, ao fim da jornada, lida-se com o que há. Assim é a política. Parte considerável das circunstâncias que definem nossa existência não derivam mesmo da nossa vontade. Buscar fazer o melhor do que fizeram de nós, aí sim, parece-me um primado moral e ético.
"Tanta ‘filosofice’ por quê?" Voltemos ao início. O que em Lula é querer e o que está condicionado por circunstâncias que lhe eram e são alheias? É preciso separar os balaios. Os salamaleques ao ditador Nicolás Maduro, por exemplo, são uma escolha inaceitável, além de inútil e contraproducente. Não expressam nem sequer o respeito que ele próprio sempre manteve às regras do jogo democrático. Há uma diferença entre restabelecer relações com a Venezuela, e isso está certo, e emprestar seu prestígio a um tiranete truculento. No que respeita à guerra entre Rússia e Ucrânia, as posições do presidente divergem das de EUA e Europa (nem tanto do que anda a dizer Emmanuel Macron, é verdade), mas não das de Índia e China, que também existem. E, no fim das contas, ou se fará um acordo por lá, ou tudo irá pelo pior, no pior dos mundos possíveis. De toda sorte, Lula fez escolhas incondicionadas.
colunas e blogs
Receba no seu email uma seleção de colunas e blogs da Folha; exclusiva para assinantes.
Carregando...
Concluídos os cinco meses de governo, tem-se praticamente aprovado um arcabouço fiscal aplaudido, a seu modo, até por Roberto Campos Neto; resgataram-se programas sociais essenciais, e a economia não foi à breca, como anteviram implacáveis bolas de cristal. O país cresceu 1,9% no primeiro trimestre, "bem acima do que se esperava" —este "se" é o índice de indeterminação do sujeito. "Vai piorar", asseguram. Quem sabe se espere errado de novo... As mães Dinahs da economia andam a nos dever acertos.
O embate para a aprovação da MP da reestruturação do governo evidenciou o que está dado faz tempo: vive-se, hoje, na prática, um regime semipresidencialista especialmente perverso porque o Congresso, em parte, governa sem ter de responder pelo resultado. O governo terá de fazer nomeações e de liberar mais emendas, o que sempre deixa arrepiados alguns dos nossos moralistas.
Observo, adicionalmente, que, passados esses cinco meses, inexiste uma oposição minimamente organizada, que tenha um eixo claro de resistência ao governo. Resume-se a produzir delinquências em depoimentos de ministros e nas comissões de inquérito do golpe e do MST, ainda germinações do espírito fascistoide que foi derrotado nas urnas. Não me engano: o risco que essa gente representa, embalada pelo esgoto das redes sociais, ainda não passou —hipótese em que morreremos todos: o asno, o rei e eu.
Nas últimas décadas, houve forte queda da participação daindústrianoPIBbrasileiro. Do pico de 34%, em 1985, para os atuais 10%. Parte significativa da queda deve-se a dois fatos não ligados diretamente ao desempenho do setor.
Primeiro, dado que o progresso tecnológico é maior na indústria, o preço dos bens industriais relativamente ao preço dos serviços reduz-se. O valor da participação cairá naturalmente.
O segundo motivo é que, nas séries antigas, não se mensurava bem o tamanho dos serviços, e, portanto, o produto total do país era subestimado.
Linha de produção da fábrica da Mercedes Benz no Brasil, em São Bernardo do Campo - Paulo Whitaker/Reuters
Corrigindo esses dois fatores, meu saudoso colega do FGV Ibre Regis Bonelli mostrou que o pico nos anos 1980 foi de 24%, não de 34%. Mesmo assim, houve, de meados dos anos 1980 até hoje, forte queda de 14 pontos percentuais do PIB.
Assim, cabe uma reflexão sobre a queda da participação da indústria no PIB, para além dos fatores elencados nos parágrafos anteriores.
Um primeiro motivo é comum a todas as economias: o crescimento econômico reduz a demanda por bens relativamente à demanda por serviços. Em economês, diz-se que serviços apresentam elevada elasticidade-renda da demanda. Da mesma forma que, na primeira metade do século 20, houve a transição da agropecuária para a indústria, nas últimas décadas temos passado pela transição da indústria para os serviços.
PUBLICIDADE
Ou seja, em grande medida a queda da participação da indústria no PIB é um fenômeno normal e compartilhado por inúmeras economias.
folha mercado
Receba no seu email o que de mais importante acontece na economia; aberta para não assinantes.
Carregando...
No entanto, as economias asiáticas apresentam participação da indústria no PIB bem maior. Os economistas heterodoxos/desenvolvimentistas enfatizam a política industrial e a existência de subsídios concedidos por bancos de desenvolvimento. Há dois fatores que nossos colegas desenvolvimentistas esquecem.
O primeiro é a elevadíssima taxa de poupança das economias asiáticas. Há um efeito direto da elevada taxa de poupança sobre a indústria e um efeito indireto. O efeito indireto é mais simples: elevada poupança conduz a juros domésticos menores e, portanto, barateamento de um fator de produção, o capital, empregado intensamente pela indústria de transformação.
O efeito direto é sobre a composição da demanda. Se a poupança é elevada, o consumo é baixo. Se o consumo é baixo, o país irá apresentar superávit externo. Bens são mais transacionáveis internacionalmente do que serviços. Quem poupa muito exporta muito e, consequentemente, produzirá mais bens.
A elevada poupança dos países asiáticos deve-se ao baixíssimo Estado de bem-estar que vigora por lá. Para ter uma ideia, basta olhar para os gastos previdenciários. O Japão tem quatro vezes mais idosos, como proporção da população, do que o Brasil, e, no entanto, não gasta mais com aposentadorias do que nós.
O segundo fator que os economistas desenvolvimentistas esquecem é que os asiáticos construíram sistemas públicos de educação fundamental de elevadíssima qualidade. Há fartura de mão de obra qualificada.
Esses dois fatores —elevada poupança e elevada qualidade da qualificação da força de trabalho— explicam muito melhor a elevada participação da indústria no PIB do que o BNDES deles.
Por aqui, o governo anuncia programa para subsidiar carros a combustível fóssil para a classe média. Medida contra as agendas de meio ambiente nas cidades (qualidade do ar e congestionamento das vias públicas), de transição energética e de ajuste das contas públicas por meio de redução do gasto tributário (isenção tributária), que tem sido reiteradamente denunciado pelo ministro Haddad. Continuaremos na vanguarda do atraso.
O número de roubos e furtos de veículos caiu pela metade no Estado de São Paulo desde 2014, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.
Naquele ano, foram subtraídos 221 mil veículos no Estado, incluindo carros de passeio, motocicletas, caminhões e outros veículos automotores - patamar mais elevado computado desde pelo menos 2003.
Lei do Desmanche e mudanças no PCC e no mercado automotivo levaram a queda significativa no roubo e furto de veículos no Estado, diz estudo - Getty Images via BBC
O número caiu para pouco mais de 112 mil em 2021.
Considerando a taxa de subtração (soma de roubos e furtos) por 100 mil habitantes, o movimento é similar: foi de 502 em 2014 para 241 em 2021.
Para entender essa mudança, pesquisadores foram a campo para observar e conversar com participantes de cada um dos elos na trajetória dos veículos roubados: quem rouba, quem recepta, os diversos tipos de desmanche - legal, híbrido ou clandestino -, lojas de autopeças, oficinas e regiões de fronteira.
Parte dos resultados desse estudo está na edição de abril da revista Tempo Social, publicada pelo Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo).
Segundo os pesquisadores, a implementação da Lei do Desmanche (Lei Estadual 15.276/2014), que regulou o mercado ilegal de autopeças, teve efeito decisivo na redução desses tipos de crimes.
Mas transformações nas dinâmicas do PCC (Primeiro Comando da Capital), grupo criminoso hegemônico no Estado de São Paulo, e mudanças na indústria automotiva, com a entrada de peças chinesas baratas no mercado nacional, também contribuíram para a tendência observada.
Para Gabriel Feltran, diretor de pesquisa do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês) e professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), a experiência de "legalização de um mercado ilegal" com a Lei do Desmanche e seu impacto sobre a redução da violência podem servir de exemplo para outros mercados ilegais, como o de drogas.
Gráfico mostra criminalidade em queda - BBC
FURTO OU ROUBO
Em primeiro lugar, é preciso diferenciar os dois tipos de crime: furto e roubo.
O furto ocorre quando o criminoso se apossa de um veículo sem contato com o proprietário. No roubo, há contato com a vítima e pode haver uso de violência ou ameaça para tomada do veículo.
Os dois tipos de crime estão em baixa no Estado de São Paulo, segundo as notificações da Secretaria de Segurança Pública, mas a queda dos roubos foi mais acentuada desde 2014, mostra o estudo.
Enquanto os furtos recuaram 35%, de 122 mil para 79 mil entre 2014 e 2021, os roubos diminuíram 66%, de 98 mil para 33 mil no mesmo intervalo - ou seja, caíram para um terço do que eram antes.
Furtos recuaram, mas estão estáveis - BBC
"O furto é o crime mais especializado, feito por quadrilhas, com dimensão bem clara de mercado", observa Feltran, um dos autores do artigo Lei do Desmanche, PCC e mercados, ao lado de Rafael Rocha, Janaína Maldonado, Gregório Zambon e Fernanda de Gobbi.
"No furto, há uma dificuldade muito maior de recuperar o carro. Onde o mercado de carros e de autopeças é mais pujante, há mais furto e menos roubo. Porque o furto destina diretamente para o mercado [de desmanche], que consegue dar vazão mais facilmente a essa mercadoria."
Já o roubo tem um circuito completamente distinto, explica o pesquisador, cujo livro Irmãos: uma história do PCC (Cia. das Letras, 2018) inspirou a série documental PCC: Poder Secreto, da HBO Max.
"O roubo é feito pela molecada que está no crime, que está na quebrada, armada, e vai fazer uma abordagem mais violenta e tirar esse carro da mão do proprietário", afirma Feltran.
"Não está diretamente ligado à destinação comercial: o roubo pode ser para realizar uma fuga, uso em outro crime, obtenção de uma peça específica."
Outra característica do roubo, diz o pesquisador, é a alta taxa de letalidade policial contra os ladrões.
De 2012 a 2016, por exemplo, em 60% a 70% dos homicídios cometidos por policiais no município de São Paulo, havia um veículo roubado na cena do crime, citam os pesquisadores no estudo.
"Ou seja: morre-se muito em São Paulo depois de roubar carros e motos. Diferentemente do Rio de Janeiro, onde morre-se muito mais em confronto na fronteira das favelas", observa o sociólogo.
Assim, trata-se de um crime violento, muito mais grave que o furto e muito menos eficiente do ponto de vista de mercado, destaca Feltran.
"A grande maioria dos carros subtraídos que são encontrados são provenientes desse tipo de ação criminal: a ação violenta."
O QUE ACONTECIA ANTES DE 2014
Segundo os pesquisadores, existe uma "governança híbrida" do mercado de veículos, compartilhada entre Estado, crime (o PCC, no caso de São Paulo) e agentes de mercado.
Assim, eles buscam avaliar as transformações nessas três esferas que podem explicar o comportamento das estatísticas de roubo e furto no Estado.
Feltran lembra que o roubo de veículos teve um pico nos anos 1990, época marcada por "guerras" entre grupos armados nas periferias e prisões de São Paulo, em meio à disputa pelo controle de mercados ilegais - principalmente, o de cocaína.
Início dos anos 2000 é marcado pela consolidação da hegemonia do PCC nas cadeias e favelas paulistas, destacam pesquisadores - Getty Images via BBC
Já a primeira década dos anos 2000 é marcada por uma mudança significativa no mundo do crime, com a consolidação da hegemonia do PCC nas cadeias e favelas paulistas.
"Entre 2003 e 2008, época mais tensa da expansão do PCC por todo o território estadual, ainda enfrentando alguma resistência de grupos criminais rivais e operadores de proteção, a subtração de veículos no Estado apresentou uma ligeira tendência de queda", observam os pesquisadores.
"Em seguida, estabelecida a rotina pacificada nas dinâmicas e mercados criminais, com acertos financeiros sistemáticos nos mercados de proteção [policiais agindo ilegalmente para proteger a ação de criminosos], observa-se uma maior desenvoltura e expansão dos negócios da facção."
Segundo os pesquisadores, a profissionalização das quadrilhas impulsionou a ampliação tanto no número de roubos, quanto dos furtos de veículos, com as revendas automotivas sendo usadas como uma forma comum para lavagem do dinheiro proveniente do tráfico de drogas.
'UMA SOCIEDADE DE APOIO ENTRE EMPRESÁRIOS CRIMINAIS'
"O PCC é uma sociedade secreta que favorece o apoio mútuo entre empresários criminais", diz Feltran.
"São empresários criminais de vários mercados, de várias habilidades, de vários níveis socioeconômicos, que apoiam uns aos outros para favorecerem seus negócios. Um cara que é muito bom de roubar carro, e que é irmão do PCC, vai ser acionado pelos caras que vão fazer um assalto a banco e vão precisar de carro. E o cara que rouba precisa destinar os carros dele", exemplifica.
"Então é bom para todos eles que as redes de roubo de carro estejam associadas às redes de assalto a banco, de transporte de drogas, de logística e de lavagem de dinheiro. O PCC permite que todos esses empresários se encontrem e que um fortaleça o outro, como se diz na linguagem do crime."
No âmbito do mercado, um fato relevante no período anterior a 2014 foi a ampliação da frota de veículos, que acompanhou a dinâmica de crescimento econômico do país, puxado pelo consumo.
Os pesquisadores destacam que o peso da indústria automotiva no Produto Interno Bruto (PIB) industrial passou de 13,2% em 2003 para 19% em 2008, com um crescimento de 83% na quantidade de veículos emplacados no mesmo período.
Com isso, a frota nacional passou de 12,6 milhões de veículos em 2003 para 31,4 milhões em 2021, um crescimento de 148% em pouco menos de duas décadas, o que fomentou o comércio de autopeças, ampliando a demanda por estes itens que são fruto de roubos e furtos.
LEI DO DESMANCHE E O PÓS-2014
O ano de 2014 foi "um ponto de inflexão", destacam os pesquisadores.
"Não apenas porque inverte a tendência observada nas notificações [de roubos e furtos de veículos] no período anterior, como por ser o momento de aprovação da Lei do Desmanche, que propõe uma política de segurança pública centrada na regulação de um mercado ilegal."
Após a Lei do Desmanche, cada peça de veículo passou a ser identificada com uma etiqueta de segurança com nome da peça, número de rastreio e QR Code - Juliano Amaral/Detran RS
Sancionada pelo então governador Geraldo Alckmin (à época no PSDB, hoje vice-presidente e no PSB) em 2 de janeiro de 2014 e em vigor desde 1º de julho daquele ano, a lei prevê o registro junto ao Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP) de todos os estabelecimentos que atuam com desmanche, revenda ou reciclagem de autopeças usadas.
Entre outras exigências, os desmanches precisavam a partir de então ter "ficha limpa", ou seja:
não ter dívida ativa junto ao Estado, nem sócios com antecedentes criminais;
ter alvará de funcionamento expedido pela Prefeitura;
e manter controle de entrada e saída das peças.
Após a lei, cada peça de veículo - carro, ônibus, caminhão ou moto - passou a ser identificada com uma etiqueta de segurança com o nome do item, um número de rastreio e um QR Code.
"Um dos efeitos práticos da lei é a estratificação do mercado de desmanches e a entrada de um grupo relativamente grande de desmancheiros no mercado legal, embora é evidente que sobre uma franja de mercado ilegal ainda", diz Feltran.
"Há um gradiente que vai do ilegal ao legal. Se você anda numa avenida cheia de desmanches, todos vão ter o atestado de funcionamento, todos vão ter as notas fiscais das peças que estão lá. Mas nem todas as peças que estão lá são legais, porque a peça ilegal puxa o preço para baixo e torna esse negócio competitivo."
Os empresários 100% legais acabam se focando em nichos de maior renda. Já quem é totalmente ilegal trabalha agora mais escondido, observa o pesquisador.
"O mercado era inteiro ilegal, abastecido em maior proporção por carros roubados e furtados. Quando você legaliza, isso reduz a demanda por roubos e furtos, o que diminui as taxas [de notificação desses crimes]", afirma Feltran.
A queda mais acentuada dos roubos em relação aos furtos se explica porque se torna mais difícil escoar a mercadoria roubada no mercado agora legalizado, explica o pesquisador.
PCC, PEÇAS CHINESAS E CRISE ECONÔMICA
Segundo o pesquisador, a pesquisa revelou que a Lei do Desmanche foi de fato o principal elemento na queda do roubos e furtos de veículos no Estado. Mas há fatores adicionais, ainda que de menor impacto.
O ano de 2014 também é um marco na atuação do PCC no Estado de São Paulo, quando a facção passa a ter a hegemonia do tráfico transnacional de cocaína através do Porto de Santos, o maior da América do Sul.
Além do porto, a facção criminosa se expande para outros Estados, através de acordos com facções locais.
"Em São Paulo, nesse momento de expansão, uma série de integrantes da facção, dedicados a 'crimes clássicos', como roubo de veículos ou grandes assaltos, passam a aderir às redes do tráfico internacional de cocaína, além do contrabando e dos mercados a ele associados (armas, lavagem de dinheiro etc.)", observam os pesquisadores.
Balança brasileira de autopeças ficou negativa entre 2014 e 2021, com importações concentradas na China, Japão, EUA, México e Alemanha - Getty Images via BBC
Além disso, o período de 2014 a 2021 é marcado pela crise econômica e pela pandemia de Covid-19, com impacto sobre o consumo das famílias, o poder de compra dos salários e a oferta de crédito.
O número de emplacamentos de veículos encolheu 44% entre 2014 e 2021, em comparação com o período 2003-2014, destacam os estudiosos.
Também a crise dos semicondutores em meio à pandemia restringiu a produção de carros no Brasil e no mundo neste período.
Por fim, os pesquisadores observam que a balança brasileira de autopeças ficou negativa entre 2014 e 2021, com importações concentradas na China, Japão, Estados Unidos, México e Alemanha.
Em campo, eles ouviram relatos de aumento do uso e venda de peças chinesas, mais baratas que as originais novas e competindo em preço com as originais usadas.
Mas os analistas ressaltam que mensurar o efeito disso sobre a dinâmica criminal exige avaliação mais aprofundada.
AS LIÇÕES DA LEI DO DESMANCHE, SEGUNDO PESQUISADOR
"Nenhum dos outros fatores se mostrou tão efetivo quanto a lei para modificar o mercado de autopeças", observa Feltran.
Segundo os pesquisadores, a lei representou uma novidade por ao menos três razões:
ser uma política distante da lógica ostensiva e policial de "guerra ao crime";
trazer para o debate público a ideia de que o Estado pode agir regulamentando mercados criminais instalados, com efeitos mercantis positivos e consequências benéficas para a segurança pública;
e reunir atores públicos e privados em uma proposta que envolveu os poderes Legislativo e Executivo.
"Há muita especulação em torno do que aconteceria com a legalização de drogas, por exemplo, da cocaína e da maconha", diz o sociólogo.
"Ao mesmo tempo, nós temos uma experiência empírica, feita há dez anos no Estado de São Paulo, de legalização e um mercado ilegal e nós temos essas consequências concretas, reais, do que aconteceu, para pensarmos o que aconteceria. Então, acredito que é um exemplo fantástico do que pode acontecer com a legalização de um mercado ilegal", acrescenta.
Ou seja, na avaliação de Feltran, pode acontecer, segundo a experiência da Lei do Desmanche e de outros países que legalizaram o mercado de drogas:
uma segmentação do mercado, com um gradiente do legal ao ilegal;
redução da parcela ilegal do mercado, o que favorece a capacidade de controle estatal;
a possibilidade de todos os operadores ilegais se integrarem à economia formal;
e uma redução da violência.
"A ideia é que o mercado vá se tornando progressivamente mais legal, à medida que vai se tornando mais fácil o controle e mais difícil burlar esse controle. Você sai de uma situação em que é tudo ilegal e cria regras, que vão deixar alguns de fora no começo e outros dentro", afirma.
Para o sociólogo, se as regras forem bem feitas, é possível fazer esse processo de transição com inclusão e distribuição dos benefícios desse novo mercado legal crescente e menos violento.
"É só pensarmos nos extremos: quantas pessoas morrem por vender cerveja no Brasil? E quantos morrem por vender cocaína?", questiona Feltran. "É bem claro que uma droga legal produz menos violência na sua comercialização. Ninguém acha que tem que matar garçom, mas parte da sociedade acha que tem que matar o menino na quebrada que está vendendo maconha."