Patrícia Constante Jaime
Esta coluna foi escrita para a campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, colunistas cedem seus espaços para refletir sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil. Quem escreve é Patrícia Constante Jaime, vice-coordenadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e vice-diretora da Faculdade de Saúde Pública da USP
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A notícia de que 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil, amplamente divulgada em junho, é estarrecedora. Se Cazuza estivesse vivo, no entanto, veria, mais uma vez, um museu de grandes novidades.
Até os anos 2000, o país registrava taxas significativas de desnutrição infantil –à época, um dos principais indicadores para mensurar a fome. Figurávamos no Mapa da Fome da ONU, ao lado de nações com muito menos recursos, e que não se intitulavam "celeiro do mundo". Poucos anos depois, o jogo começou a virar e, em 2014, o Brasil comemorava uma quase erradicação da fome.
Como isso foi possível? A receita é uma só: um sopão de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional. A base desse caldo foi a criação de um programa eficaz de transferência de renda, dando à população o poder de adquirir alimentos de forma direta.
A essa base foram adicionados outros ingredientes –como os reforços ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (e suas pontes com a agricultura familiar) ou a publicação de guias alimentares– para impulsionar a melhora no padrão de consumo alimentar e promover a saúde da população.
Todas essas iniciativas eram orientadas pela ciência, que era o sal dessa sopa –um ingrediente essencial, que dá sentido à receita, mas que raramente conseguimos ver. A nutrição e a epidemiologia nutricional contribuíram em diversas etapas: seus dados possibilitaram fazer um diagnóstico da situação do Brasil, criar e testar diferentes intervenções, escolher soluções, monitorá-las e avaliá-las.
A ciência também mostrou que, de 2016 para cá, a insegurança alimentar voltou a dar as caras, culminando na fome que vemos hoje. É o inaceitável resultado de desmontes como o corte no orçamento de ações estratégicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa de Cisternas, e a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) –órgão que era ligado diretamente à Presidência da República e tinha ampla participação da sociedade civil para a formulação de políticas públicas. Com ingredientes de baixa qualidade, ou mesmo ausentes, a sopa ficou rala.
Só a reconstrução das políticas públicas de alimentação e nutrição é capaz de engrossar a sopa novamente – e, neste contexto, a ciência tem papel crucial.
É claro que o monitoramento da insegurança alimentar continua, seja ela leve (quando há perda na qualidade da alimentação), moderada (quando a alimentação é feita em quantidade insuficiente), ou grave (a fome propriamente dita). Mas o Brasil tem, agora, novos desafios. Vivemos a coexistência de desnutrição e obesidade, a oferta cada vez mais significativa de alimentos ultraprocessados, ambientes alimentares cada vez menos promotores de saúde e um sistema alimentar com pesados impactos ambientais e sociais. A lista é longa, e a ciência está a postos. Afinal, como dizia Betinho, quem tem fome, tem pressa.