segunda-feira, 4 de julho de 2022

Ruy Castro Acontece em Brasília, FSP

 Não deve ser o único caso. Uma família carioca, cujo bisavô era proprietário de um terreno de 12 mil metros quadrados em Brasília, desapropriado em 1957 para a construção da capital federal, luta desde 1975 para receber a indenização. Venceu a causa em 1980, mas, segundo reportagem de Eduardo Cucolo no domingo (26), três gerações dessa família já morreram e o dinheiro ainda não saiu.

Obras da construção de Brasília, registradas em 1959 - Folha Imagem


O terreno foi avaliado há 20 anos pelo próprio governo do Distrito Federal em R$ 3,8 milhões e pelo Ministério Público em R$ 11 milhões. Todas as perícias giraram em torno desses valores, mas eles continuam a ser contestados no Judiciário. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, matreiramente, fixou a indenização em R$ 60 mil, com base no valor do terreno em 1957. Avaliação, como se vê, injusta —na época, comprava-se qualquer autoridade em Brasília por um preço que, hoje, mal dá para uma mariola. E ainda querem descontar R$ 55 mil, referentes ao custo da última perícia. Mais um pouco e a família ficará devendo a eles.


É típico. Também em 1957, meu pai, em Minas Gerais, foi visitado por um corretor itinerante de imóveis. O homem abriu um belo mapa de lona sobre a sua mesa e lhe ofereceu um terreno na futura capital. Era um quadradinho vermelho numa vastidão de quadradinhos amarelos. Ele o comprou e manteve os impostos em dia, mas nunca foi lá. Brasília foi construída, inaugurada e, a custo, o Estado se instalou. Anos depois, meu pai se interessou em saber a quantas andava o terreno.


Descobriu que seu quadradinho vermelho ficava bem no coração da Granja do Torto, propriedade federal e residência favorita de fim de semana do ex-presidente João Goulart e do então presidente João Figueiredo. Pela dificuldade em despejar o inquilino, deu o terreno por perdido.


Acontece muito em Brasília. As pessoas compram uma coisa e depois percebem que foram tapeadas.


Criptomoedas, ano do perigo, Ronaldo Lemos, FSP

 O mercado de criptomoedas está nervoso. Aliás, qualquer mercado de inovação também está. Desde abril de 2022, o mundo mudou completamente. Os tempos de dinheiro barato, juros e inflação baixos não correspondem mais à realidade.

Empresas que viviam basicamente do dinheiro proveniente de fundos de capital de risco viram a fonte secar. No Brasil, a regra para a maioria das startups está sendo de ajustes e demissões. Apareceu até o site Layoffs Brasil, que está compilando as demissões no setor de inovação. É muita gente boa e qualificada sendo dispensada. A ideia é ajudar na recolocação dessas pessoas. Tudo isso em meio a números dramáticos, com algumas empresas demitindo 400 pessoas de uma vez.

Se as empresas de inovação estão assim, o que dizer então do mercado de cripto? Sem nenhum rodeio, este é um ano em que esse mercado vive risco de morte.

Representações das criptomoedas ripple, bitcoin, ethereum e bitcoin - Dado Ruvic - 14.fev.2018/Reuters

Um sinal claro disso foi o colapso do ecossistema da moeda chamada luna. De moeda especulativa preferida de investidores globais, a luna simplesmente colapsou, e seu valor praticamente desapareceu. Ainda mais grave, essa criptomoeda sustentava uma moeda digital estável atrelada ao dólar chamada UST. A ideia dessas moedas estáveis é justamente ter paridade permanente com o dólar, sem nenhuma flutuação (por isso são chamadas de stablecoins).

Um dos espetáculos mais dramáticos do ano foi acompanhar a stablecoin UST perder sua estabilidade, cambalear e logo depois morrer, vaporizando os investimentos de centenas de milhares de pessoas.
A verdade é que esse colapso quase matou todo o mercado de cripto. Para tentar conter a derrocada da UST, os gestores do ecossistema haviam acumulado uma quantidade avassaladora de bitcoins. No desespero, começaram a vender essas reservas, fazendo com que a instabilidade contaminasse o mercado como um todo.

O resultado está aí até agora. O aumento dos juros, conjugado com a percepção de risco sistêmico revelado pelo colapso da luna, derrubou os preços das criptomoedas e tem levado progressivamente à falência fundos que se especializaram em cripto. Apesar de alguns dias positivos, o viés de baixa do mercado continua, bem como um pessimismo raramente visto, justamente em um mercado que se sustenta em boa parte em cima do entusiasmo dos seus participantes.

E agora? Há alguns movimentos importantes em curso. O primeiro é a regulação. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, chegou a hora de discutir seriamente a regulação desse mercado. Outro movimento diz respeito à valorização de criptomoedas que possuem utilidade e aplicação reais, seja gerando eficiências, seja funcionando como infraestrutura competitiva com relação a outras existentes.
Nesse sentido, as moedas puramente especulativas que não servem para nada (muitas delas chamadas de shitcoins) devem ter um caminho ainda mais turbulento pela frente.

Mas há razões também para otimismo. Processos de tokenização de bens de interesse comum, como energia e carbono, têm hoje uma oportunidade singular. Inclusive o Brasil, com seu potencial verde gigantesco, pode se beneficiar se souber aproveitar a estrutura dos mercados de cripto para alavancar o financiamento global de carbono, serviços ambientais e energia no país.

Em suma, tempos interessantes. É mentira que as palavras crise e oportunidade são representadas pelo mesmo caractere em chinês. Na verdade, a palavra crise contém um caractere que está contido também na palavra oportunidade. Não são a mesma coisa, mas um contém elementos do outro. Essa é uma metáfora mais cautelosa para descrever o mercado de cripto no momento.


Já era Luna e UST

Já é Questionar qual stablecoin é realmente estável

Já vem Regulação do mercado de cripto


Morre dom Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, aos 87 anos, FSP

 O cardeal Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, morreu nesta segunda (4), prestes a completar 88 anos. Em nota em que confirmou o falecimento, o arcebispo dom Odilo Scherer afirmou que o cardeal passava por "prolongada enfermidade, que suportou com paciência e fé em Deus".

Apontado como um dos principais "candidatos a papa" do primeiro conclave do século 21, aquele que se seguiu à morte de João Paulo 2º em 2005, o cardeal brasileiro acabou se tornando o inspirador de um dos nomes papais mais surpreendentes da história da Igreja Católica, o escolhido pelo argentino Jorge Mario Bergoglio, em 2013.

Hummes recontou a história da seguinte maneira ao jornal italiano "La Stampa": "Os votos convergiam para ele [Bergoglio]. Ele estava muito introspectivo, silencioso. Quando as coisas começaram a ficar um pouco mais perigosas para ele, eu o confortei. Depois, houve o voto definitivo e começou um grande aplauso. Eu logo o abracei e beijei. E lhe disse aquela frase, ‘Não se esqueça dos pobres’. Eu não tinha preparado nada, mas naquele momento me veio do coração, com força, dizer-lhe isso."

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Dom Cláudio Hummes celebra missa em encontro de preparação para o Sínodo da Amazônia, em São José dos Campos (SP) - Lucas Lacaz Ruiz - 29.set.2019/Folhapress

É assim que dom Cláudio Hummes provavelmente entrará para a história: como o cardeal que ajudou o novo papa a escolher o nome Francisco, em homenagem ao "santo dos pobres" são Francisco de Assis, na primeira vez que um pontífice se arriscou a usar essa designação.

Lembrar-se dos pobres e de são Francisco foi algo extremamente natural vindo de um membro da ordem franciscana (fundada pelo santo de Assis), como era o caso de Hummes.

Nascido em 8 de agosto de 1934 numa família de lavradores de origem alemã de Montenegro, interior gaúcho, Auri Affonso Hummes se tornou Cláudio Hummes ao virar franciscano e receber a ordenação sacerdotal, poucos dias antes de completar 24 anos.

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Professor de filosofia em seminários e universidades gaúchas, o frade se especializou na questão ecumênica (o diálogo entre as várias igrejas cristãs) e ocupou cargos importantes na estrutura de sua ordem e na CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) nos anos 1960 e 1970.

Mas foi a partir de 1975, com sua ordenação como bispo coadjutor de Santo André, na Grande São Paulo, que o jovem prelado passou a entrar em contato com o movimento sindical de operários da região, que tentavam se organizar em desafio às limitações impostas pela ditadura militar.

Oferecendo espaços da diocese de Santo André para que os operários pudessem se organizar, o bispo se tornou amigo do metalúrgico e futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além de se aproximar da Teologia da Libertação, corrente de pensamento que defendia a união entre fé e compromisso social e político.

Apesar do uso, por parte do governo militar, de algumas táticas de intimidação —como o sobrevoo de helicópteros do Exército num estádio onde o bispo celebrava uma missa, em 1978—, a aliança entre o religioso e os militantes sindicais nunca chegou a ser atacada frontalmente pela ditadura.
Com a democratização, o bispo franciscano passou a ser um crítico dos abusos do capitalismo e da globalização, antecipando, em parte, a pregação que o papa Francisco faria na segunda década do século 21.

Ao mesmo tempo, por se manter próximo da doutrina tradicional da Igreja Católica em temas envolvendo a moralidade sexual, como o aborto e uso de anticoncepcionais, seu prestígio durante o papado de João Paulo 2º se manteve intacto e até aumentou.

Tornou-se arcebispo de Fortaleza em 1996 e, dois anos depois, arcebispo de São Paulo. Em 2001, recebeu o chapéu de cardeal das mãos de João Paulo 2º, sendo convidado, no ano seguinte, para conduzir os exercícios espirituais anuais promovidos pelo papa (sua pregação na ocasião viraria um livro, intitulado "Sempre Discípulos de Cristo").

Embora tenha comemorado a ascensão do PT ao poder e reiterado sua admiração por Lula, Hummes não hesitou em criticar os escândalos de corrupção envolvendo o partido do então presidente.

Em sermão, chegou mesmo a afirmar que o povo tinha razão em desenhar o rosto de políticos nos Judas destruídos durante a tradicional malhação do Sábado de Aleluia, avaliando que, ao chegar ao poder, o PT estava sendo menos zeloso do que se esperaria do partido no combate às desigualdades sociais do país.

O corpo do cardeal será velado na Catedral Metropolitana de São Paulo, na Sé.