Os cigarros eletrônicos estão criando uma legião de novos dependentes de nicotina. Vamos perder décadas de trabalho educativo no combate ao fumo.
Venho repetindo nesta coluna e em outros espaços, que, descontada a escravidão, o cigarro foi o maior crime continuado da história do capitalismo internacional.
Que outro seria comparável ao de investir fortunas em publicidade, criar lobbies para corromper autoridades, pressionar financeiramente a imprensa para não divulgar os malefícios do fumo, contratar cientistas de aluguel para contestar as pesquisas que o ligavam ao câncer, às doenças cardiovasculares, pulmonares e a tantas outras que encurtam a vida dos usuários crônicos em pelo menos dez anos?
Essas ações criminosas foram perpetradas no decorrer de décadas com um único objetivo: tornar dependentes de nicotina crianças e adolescentes ingênuos e desinformados.
Fumei dos 17 aos 36 anos. Fiz parte de um contingente de cerca de 60% de brasileiros com mais de 15 anos, daquele tempo. Como outros de minha geração posso lhes dizer que começávamos a fumar sem ter noção de que nos tornaríamos dependentes químicos de uma droga psicoativa, causadora de uma das dependências mais escravizadoras que a medicina conhece.
O combate ao fumo começou a se estruturar em nosso país a partir dos anos 1970. Eram iniciativas isoladas que partiam de algumas entidades apoiadas pelo Ministério da Saúde. As campanhas educativas só ganharam abrangência nacional quando proibimos a propaganda nos meios de comunicação. Sem a possibilidade de subornar a mídia com campanhas milionárias, sobrou apenas aos fabricantes a oportunidade de fazer propaganda nos pontos de venda: padarias e bares nos quais exibem os maços em meio às balas e chocolates tão a gosto da criançada que eles pretendem viciar.
O país realizou um grande esforço educacional para desconstruir a imagem criada pela publicidade perversa que associava o cigarro à liberdade, a mulheres lindas e homens maduros que faziam sucesso entre elas. Com perseverança conseguimos mostrar o que o fumo realmente é: um vício chinfrim que provoca hálito repulsivo, mau cheiro no corpo, tosse com secreção e pele com aparência doentia.
Hoje, pouco menos de 10% dos brasileiros com mais de 15 anos são fumantes. Fumamos menos do que nos Estados Unidos e do que em todos os países europeus. A OMS e as agências internacionais reconhecem o programa brasileiro de combate ao fumo como um dos melhores do mundo.
Com a queda nas vendas, as companhias foram atrás de outras estratégias para repor o número dos que se livram do cigarro e dos usuários crônicos que morrem por ter fumado.
A principal delas foi a de investir nas empresas que comercializavam cigarros eletrônicos. A desculpa seria a de reduzir danos: se o fumo causa tantos males, por que não fumar nicotina sem o alcatrão e outros compostos cancerígenos?
Os estudos nunca demonstraram que o impacto dos eletrônicos como método para chegar à abstinência foi significante, mas o sucesso entre os jovens do mundo inteiro é incontestável. Meninas e meninos que jamais colocariam um cigarro na boca aderiram em massa aos eletrônicos, com a mesma ingenuidade e desinformação dos meus 17 anos. A maioria acha que está fumando um vaporzinho inofensivo. Poucos sabem que se trata de vapor de nicotina em concentrações muito mais altas do que as do cigarro convencional.
Entre nós o número dos que aderiram aos eletrônicos é assustador. Esta semana gravamos para o Fantástico um especial sobre o tema. Nas escolas, nas comunidades periféricas e nos bairros de classe média alta a prevalência dos eletrônicos é enorme.
Estamos diante de uma epidemia que se alastra sem controle. Fumam nas baladas, nos bares, na rua, nos banheiros das escolas, em ambientes fechados na frente de crianças, grávidas e pessoas de idade, e até no quarto de casa sem que os pais percebam, porque os fabricantes acrescentam essências perfumadas para disfarçar o odor e atrair a criançada.
Enquanto nossos olhos estavam voltados para a pandemia do coronavírus, a indústria do fumo produziu em larga escala dispositivos para administrar nicotina, que viraram moda entre crianças e adolescentes. Sorrateiramente, como costumam agir os criminosos.