terça-feira, 10 de maio de 2022

'Lagartos' assumiram tráfico na cracolândia no centro de SP antes de migração, FSP

 Rogério Pagnan

SÃO PAULO

Glauciene Pereira, 31, conhecida como Formiga, era presença constante na alameda Barão de Limeira, nos Campos Elíseos, na região central, nos arredores da cracolândia, onde revirava lixeiras e pedia trocados a quem cruzasse o caminho dela. O rosto chupado, o corpo esquelético e a voz rouca denunciavam o vício da qual era escrava. Desde o dia 8 de março, porém, ela não é mais vista na região.

Motivo: Glauciene foi presa pela Polícia Civil de São Paulo, na Operação Caronte, sob a suspeita de traficar drogas. Formiga era, segundo os policiais, um dos "lagartos" que assumiram o tráfico na cracolândia nos últimos dias do antigo endereço, antes da migração à praça Princesa Isabel, na mesma região central.

"Lagarto" é o nome dado pela polícia aos dependentes químicos que gozam da confiança dos traficantes da cracolândia e, geralmente, prestam serviços em troca de pequenas porções de crack. Antes mesmo da migração, segundo os policiais, esses usuários passaram a ser responsáveis pela venda das drogas como uma forma de poupar os traficantes de serem presos numa eventual ação policial, que se tornaram constantes desde a deflagração da Operação Caronte.

Imagem aérea da Praça Princesa Isabel onde se encontra o novo local do fluxo da cracolândia
Usuários de drogas passaram a ser responsáveis pela venda de drogas na cracolândia como uma forma de poupar os traficantes das ações policiais - Danilo Verpa 28.abr.22/Folhapress

"Era uma mão de obra barata e descartável", disse a delegada, Maria Cecília Castro Dias, adjunta do 77º DP (Campos Elíseos), unidade policial responsável pelas investigações da Caronte.

Para a delegada, essa situação, impensável tempos atrás, ajuda a entender por que os traficantes decidiram mudar para a praça, local com muitas rotas de fuga, diferente da armadilha que havia se tornado o antigo endereço, com os emparedamentos dos hotéis e fechamento de passagens secretas.

"Nós tivemos informações de que [antes da mudança] nem mesmo os 'lagartos' queriam mais ficar lá [vendendo]. Por isso, eles mudaram [para a praça], porque começou a incomodar. Teve operação que nós apreendemos R$ 20 mil. Dinheiro jogado no chão, muito dinheiro, se contar ninguém acredita", explica.

De acordo com dados da investigação da Operação Caronte, dos 105 alvos identificados vendendo drogas no local, mais da metade era considerada "lagartos": 64 pessoas (59 delas presas, 5 foragidas).

Formiga preferiu ficar em silêncio durante o interrogatório de sua prisão.

Procurada, a Defensoria Pública, que aparece como representante dela no processo, não respondeu aos pedidos de posicionamento enviados. A instituição chegou a dizer em entrevistas anteriores que não defendia presos na Caronte, porque as ações correm em vara especializada em crime organizado.

Todos os suspeitos presos na Operação Caronte foram filmados por policiais infiltrados vendendo drogas nas bancas montadas no interior da cracolândia. As áreas para comércio de entorpecentes, chamadas vagões, eram controladas pelo crime organizado, leia-se PCC, ainda conforme investigação da Polícia Civil.

Maria Cecília participa da operação desde o início e, também, das prisões dos "lagartos". Para ela, embora saiba que se trata de pequenos traficantes e estão sendo usados pelo crime, deixar de prendê-los seria crime de prevaricação –ou deixar de fazer ato que é obrigada por força de lei.

"A gente vê questionamentos assim: ‘ah, ele vende para o consumo dele’. Mas, a lei não fala isso. A lei fala que é proibido vender droga. Se ele está vendendo para ganhar dinheiro ou está vendendo para comprar droga para ele, a lei em nenhum momento faz essa distinção", explica a policial.

Ainda segundo a delegada, no início, a função dos "lagartos" era simples. Ficavam encarregados de buscar marmitas para traficantes ou tomar conta das barracas de drogas enquanto o chefe precisava fazer rápidas saídas. Com prisões feitas no início da Caronte, que levou boa parte dos verdadeiros traficantes para a prisão, esses dependentes químicos ganharam essa nova função.

Além de pequenas porções de droga, explica ela, os empregados do tráfico recebiam de R$ 20 a R$ 50 diários. Em vez de ficarem com tijolos de crack, como se via antes com traficantes, os dependentes recebiam pequenos pedaços do entorpecente e colocavam sobre pratos para a venda.

O ataque aos vendedores no fluxo fez parte de uma terceira etapa de ação da polícia. Primeiro, foram realizadas prisões de traficantes fora do fluxo, depois o ataque foi concentrado nos estoquistas nos hotéis (quando aconteceram os emparedamentos) e, por fim, os vendedores de drogas no interior do fluxo.

O procurador paulista Marcio Sergio Christino, especialista em crime organizado, elogia a estratégia da polícia em combater o tráfico em três etapas por seguir, assim, segundo ele, um ataque à cadeia de venda de drogas –que segue a mesma lógica comercial.

"Assim como numa cadeia de fast food, não adianta você prender só os diretores, e deixar os gerentes. Não adianta prender só os gerentes, e deixar os vendedores atuarem. Assim como não adianta prender só os vendedores se deixar os gerentes e diretores atuarem", disse.

Ele continua. "O erro é você olhar para isso é enxergar apenas uma estratégia. ‘Vou só atacar os vendedores’. Não vai adiantar porque, quando esses caras saírem, eles vão colocar outros. Quando você ataca as três cadeias e tem sucesso nas três, ou começa a ter sucesso nas três, o que acontece? O tráfico naquele lugar não se sustenta. Aí, ele tem de mudar de lugar", afirma.

Para a advogada criminalista Roselle Soglio, a legislação não difere, de fato, como diz a polícia, o pequeno do grande traficante e, por isso, ela é obrigada a efetuar a prisão de quem está traficando. Para Roselle, porém, a energia deveria estar concentrada na prisão de grandes criminosos ou grandes traficantes.

"Porque quando combato o chefe do tráfico, quem está fornecendo, de onde chega a droga, eu não vou ter nem mais o usuário nem mais o traficante. Porque eu cortei aquela cadeia, a corrente, o liame entre o fornecedor e o consumidor. Só prender esses 'lagartos', não vai resolver o problema. Atrás desse 'lagarto', se eu for atrás, vou encontrar um réptil muito maior. É esse réptil maior que eu preciso prender", finalizou.

Para o psiquiatra Dartiu Xavier, idealizador do De Braços Abertos, o usuário que vende drogas para sustentar o vício não pode ser considerado como traficante. "Ele é acometido por impulsos irracionais para ter a droga e não faz disso um modo de enriquecimento ilícito", diz.

De Braços Abertos foi um programa anticrack lançado pela prefeitura em 2014, na gestão Fernando Haddad (PT) que, entre outras características, oferecia emprego e moradia para pessoas em situação de rua na região da cracolândia. Foi encerrado em 2017, na gestão João Doria (PSDB), que criou outro modelo.

Ainda segundo o médico, esse perfil de traficante é o último estágio entre a dependência e a cadeia. "A função da polícia é reprimir o tráfico, mas, se quer prender traficante mesmo, não é ali na rua. Se ficar prendendo no varejo, vai ficar punindo gente doente", afirmou ele.

O advogado Rildo Marques, integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo) também critica as prisões em massa na cracolândia. "As prisões devem ser feitas na origem da droga. Ali na rua nunca vão pegar o grande distribuidor", diz.

Entre as prisões feitas pela operação Caronte, ao menos 16 foram revogadas na audiência de custódia por se tratar de presos primários.

Nei Lopes e azeite doce, Dodô Azevedo - Quadro Negro FSP

 

Retrato do escritor e compositor Nei Lopes
Retrato do escritor e compositor Nei Lopes - Jefferson Mello/Divulgação

O que muitos brasileiros chamam de azeite, milhões de outros chamam de azeite doce.

É que para os brasileiros não-sudestinos, ou para os sudestinos que professam a cultura afro-brasileira, azeite é o nome que se dá para o azeite de dendê.

A lógica é parecida com as milhões de pessoas que chamam pessoas de pele escura de pessoas pretas e que chamam as pessoas brancas simplesmente de pessoas.

A colonização tornou anormal tudo o que não é ela ou veio dela.

Acontece, que a colonização, a cada ano que passa, prova-se ser um dos momentos mais lamentáveis de nossa história.

Sob o nome dela, genocídios piores que os contemporâneos foram praticados em regime de legalidade.
Sob seu nome, uma ciência de valor incalculável foi aniquilada.

Prevaleceu o saber europeu, que tratava doenças com falta de banho e temperava carne com sal e sangue coagulado, sobre africanos e indígenas, que já dominavam uma infinidade de bactericidas naturais e preparavam seus guisados com cominho, salsa e alecrim.

Nei Lopes, cientista negro, fez 80 anos ontem. Neste século certamente decolonial, onde as academias começam a revisar terraplanismos eurocêntricos e voltar-se ao saber ancestral, mais sofisticado e, por isso, pouco pouco estudado, o sábio foi festejado.A bibliografia de Nei Lopes, doutor Honoris Causa da UERJ e da Ufrj é, como tudo o que é africano , e como tudo deveria ser, horizontal e popular. Para todos lerem com facilidade. Desmistificante como tudo deveria ser. Religiões do continente africano são geralmente animistas? Ele ensina que não? Feitichistas? Muito menos, crava ele.Seus extensos dicionários (da História da Africa, do Banto, da antiguidade africana, escolar afro-brasileiro, do Samba) trazem resgates de conceitos e palavras que por esquecidas nos deixaram à deriva como povo.

Cada vez que abrimos os jornais, livros, sites, e não encontramos palavras como eweká, kiniaruanda, cafuxe, lúmbu, quiçama, sabredim, fongbé, uagadugu, wolosso ou diarrissô, ficamos mais ignorantes. Logo, com mais medo do mundo. Logo, mais reativos a ele. Diz ele, em sua obra sobre o oráculo Ifá, que para os iorubás, o Universo é vivenciado e compreendido como um processo dinâmico em que forças se atraem e se repelem, se equilibram e desequilibram.

Segundo esta cosmovisão, o equilíbrio não configura uma harmonia estática, mas uma situação de constante movimento, de união e oposição. Se isso não é o que você precisa para entender a política brasileiras, qualquer resultado que vier das eleições que vêm aí, saber o que afinal está por trás de pandemias como a Covid-19, de guerras como a da Ucrânia, de cistos que aparecem em seu corpo, tempestades tropicais e amores de verão, não sei mais o que fará.

Em suas canções, cujas letras estão sendo preparadas para serem editadas em livro, Nei Lopes trabalha com metáforas para falar com o povo - seu interesse primeiro. Goiabada cascão é coisa fina que ninguém mais acha. Vida de casa de vila, sem chateação, já não tem na praça, mas como era bom - dizia em famoso samba.

Escrevo do sossego de uma casa de vila, e como é bom escrever sobre os 80 anos de Nei Lopes. As coisas existem, resistem, irmão café. É como você canta: mesmo usados, moídos, pilhados, vendidos, trocados, estamos de pé.

De pé, e prontos para, sob sua inspiração, resolvermos a questão dos azeites que nesse país teimam em não se misturar.