Por esses dias um conhecido meu, alemão, está todo feliz porque acaba de ser contratado por uma rede hoteleira internacional chique e famosa, e vai morar e trabalhar no Caribe. Com muita razão, ele está encantado com o mar, com o calor, as praias vazias, os pescados fartos e frescos degustados diante de cenários escandalosamente lindos. O Instagram dele está uma delícia: só foto incrível.
Em Johannesburgo, conheci uma mulher da etnia xhosa que era funcionária de outra dessas poderosas cadeias hoteleiras internacionais. Ela tinha excelente formação, pós-graduada, estudos na Europa, falava uns três ou quatro idiomas e era uma das mulheres mais elegantes que conheci. Mas, apesar de seu currículo impecável, o todo-poderoso do hotel era um homem francês, que havia sido convidado para ocupar aquele lugar, recebendo ajudas de custo para se mudar com a família para o país africano.
Aliás, fui algumas vezes à África do Sul, e nunca conheci um gerente geral de hotel internacional que não fosse europeu.
Em Seychelles, uma jovem inglesa recebeu o meu grupo de jornalistas como última missão dos seus dois anos como relações públicas de um hotel de luxo. Com currículo turbinado pela experiência tropical, ela estava voltando ao Reino Unido. Provavelmente, seria substituída por algum outro estrangeiro, em mais uma repetição do ciclo de exploração do sul global para benefício prioritariamente do norte.
Enquanto isso, os nativos desses lugares, os nossos lugares, ficam com os postos de camareiros, massagistas de spa, guias de passeios e supervisores de nível médio. Geração de emprego e renda, eles dizem, e obviamente esses são todos trabalhos dignos e relevantes. Mas os altos cargos e salários são para os de fora.
Todas essas empresas falam em sustentabilidade, mas essa boa intenção não chega a incluir as pessoas. Adianta pouco abolir o plástico e servir comida orgânica aos hóspedes se o empreendimento turístico não leva desenvolvimento real e melhoria da qualidade de vida à população local. Se não combate desigualdades, não distribui renda e não transfere poder de decisão aos habitantes dos lugares escolhidos como destinos turísticos, a sustentabilidade é uma fachada para turista ver.
É claro que eu desejo sucesso ao meu amigo alemão. Isso não é sobre pessoas, mas sobre sistemas de poder e exploração. O modelo de negócio da hotelaria internacional está fora de hora e de lugar. Não é sustentável coisa nenhuma.
E o que isso tudo tem a ver com viagem em família? Ora, eu levo meu filho para conhecer o mundo querendo mostrar a ele que todas as formas de vida, em todos os lugares, são relevantes e dignas de respeito. E não é essa a mensagem que esses empreendimentos transmitem às nossas crianças.
Alastair Fraser-Urquhar*, Especial para The Washington Post
29 de junho de 2021 | 10h00
Um mês atrás, em um dos momentos mais aterrorizantes da minha vida, fui exposto de propósito ao Sars-CoV-2. Isso aconteceu por meio de um líquido claro que foi pingado diretamente no meu nariz – um processo que demandou uma equipe de seis pessoas, algumas retirando o lacre do recipiente com vírus, outras registrando as doses e uma enfermeira fazendo a contagem regressiva dos segundos. Decidi me submeter a isso por uma simples razão: esse era o meu jeito de ajudar a avançar em nossa luta contra o novo coronavírus.
Faço parte do primeiro estudo de infecção humana controlada de covid-19 do mundo. Esse tipo de estudo, que tem sido fundamental para nossa compreensão de doenças como gripe, maláriae cólera, apresenta riscos aos voluntários e isso pode torná-los polêmicos. Dados os potenciais enormes benefícios científicos e sociais de se aprender mais a respeito de uma doença, decidi assumir os riscos: os perigos da covid-19 para alguém da minha idade são semelhantes aos de procedimentos médicos de rotina (a doação de rim em vida é um exemplo particularmente adequado).
Mas quando, em junho de 2020, entrei para a organização sem fins lucrativos 1Day Sooner, que defende potenciais voluntários de estudos de infecção controlada, não havia nenhum deles planejado em qualquer lugar do mundo. Isso mudou quando um foi anunciado em meados de outubro e recebeu aprovação ética em fevereiro.
Minha experiência como sujeito de pesquisa começou em Londres, em janeiro, com uma triagem que durou a metade de um dia: submetendo-me a testes como o RT- PCR e a coleta de amostras para garantir que eu estava saudável, meus pulmões estavam funcionando adequadamente, que eu não tinha anticorpos para o vírus ou qualquer comorbidade que aumentaria minha suscetibilidade a ele. Algumas semanas depois, recebi a ligação que estava esperando: eu iria para a próxima fase, que incluía duas reuniões com um médico do estudo na qual, durante várias horas, lemos e discutimos um termo de consentimento informado de mais de 30 páginas. (Os voluntários do estudo receberam aproximadamente US$ 6.375, uma quantia baseada no salário mínimo de Londres. Conforme recebo os pagamentos que vão até o próximo ano, doo eles para organizações sem fins lucrativos.)
O estudo começou no final de março. Fui submetido a um check-up rigoroso nos primeiros dois dias, que contou com exames de imagem como raio-X, avaliação da função respiratória e amostras de sangue. Depois, no terceiro dia, fui exposto ao vírus.
Um dos requisitos essenciais para estudos de infecção controlada é o isolamento estrito, para garantir que o vírus não escape para o resto do mundo. Fiquei confinado em um ambiente de biocontenção, projetado desde o início para impedir a saída do vírus. Ele era um pouco maior do que um quarto de hospital padrão e era mantido a uma pressão de ar ligeiramente mais baixa do que a da ala posterior. Ninguém entrava sem luvas, capote e um capuz que cobria toda a cabeça e funcionava como proteção respiratória, com um aparelho que bombeava ar descontaminado. Eu nem conseguia ver o resto do hospital - apenas uma pequena antecâmara onde os funcionários se desinfectavam ao entrar ou sair de onde eu estava. Tirando eles, não tive contato com outros humanos - nem mesmo com os demais participantes do estudo.
Eu acordava todas as manhãs às 5h30 para que os profissionais de saúde do estudo checassem meus sinais vitais, coletassem exames do tipo RT-PCR e uma amostra de saliva; meus últimos exames eram finalizados por volta das 23h30. Eu dava amostras de sangue diariamente, realizava testes de olfato, tomografias computadorizadas e tinha minha função pulmonar avaliada. No final do estudo, eu tinha feito mais de 100 testes do tipo RT-PCR. Embora nem tudo isso fosse agradável, era surpreendentemente gratificante pensar sobre a quantidade de dados que meu corpo estava gerando como objeto de estudo. Durante meu tempo livre fazia coisas triviais: li livros, trabalhei um pouco e vi muita Netflix.
Direto do mundo exterior, minha família e meus amigos constantemente entravam em contato: todas as manhãs, acordava com mensagens de texto preocupadas com minha saúde. Embora o risco de doença grave fosse baixo, a equipe do estudo tinha esteroides, oxigênioe remdesivirà disposição para o caso de eu piorar. Nenhum desses tratamentos era perfeito, o que significava que eu estava inseguro em relação ao vírus durante o estudo. O medo de desenvolver uma "covid longa" dominava todos os nossos pensamentos. (No momento, estou livre de quaisquer sintomas de longo prazo.) Minha mãe se preocupou com minha capacidade pulmonar, reclamando de eu ter "começado a dar trabalho a ela antes de nascer e de não ter parado desde então".
O estudo está em andamento em Londres. Por causa disso, por recomendação da equipe do estudo, optei por não falar dos meus sintomas com detalhes, para evitar influenciar quaisquer voluntários que possam estar decidindo se vão participar dele ou que estejam atualmente no estudo. Basta dizer que me senti mal por alguns dias depois de ser infectado pelo vírus. Foi semelhante a algo que eu esperaria de um resfriado muito forte. Eu me recuperei totalmente (e tive dois resultados negativos consecutivos para covid-19) no momento em que deixei o ambiente de quarentena - e adquiri um novo respeito pelo poder do vírus.
Quando meus 17 dias no estudo chegaram ao fim, eu estava mais do que pronto para ir para casa. A vista do meu quarto no 12º andar era impressionante, mas eu não conseguia olhar para ela sem ser dominado pelo desejo de sair - não ajudou muito o fato de o governo ter suspendido algumas restrições enquanto eu estava confinado. Quando entrei no hospital, as lojas estavam fechadas e as principais ruas estavam quase desertas. Ao sair dele, fiquei quase emocionado com a visão surreal de lojas, pubs e restaurantes movimentados, reabertos pela primeira vez depois de mais de um ano.
Eu me sentia como se estivesse fazendo algo para acabar com o sofrimento da pandemia ao me expor voluntariamente ao vírus. Mas também carrego comigo a informação desalentadora de que este estudo não foi tão eficaz quanto poderia ter sido. Se o tivéssemos realizado antes - digamos, no verão passado (do hemisfério norte) - talvez o mundo pudesse ter aprendido mais em relação ao vírus de um modo mais rápido. Talvez tivéssemos alcançado progressos mais rápidos nos testes para uma vacina ou tratamentos eficazes.
Não acho que os estudos de infecção humana controlada ajudem o mundo apenas com o novo coronavírus. Mais fundamentalmente, eles nos mostram que existem pessoas que estão verdadeiramente felizes em assumir riscos físicos para o avanço do conhecimento humano e da saúde. Negar a nós a oportunidade de fazer isso apenas perpetuará o sofrimento. Assim como haverá mais pandemias, haverá mais voluntários. E temos muito a perder ao ignorá-los. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA
*Alastair Fraser-Urquhart vive em Stoke, Inglaterra, e trabalha como gestor da divisão no Reino Unido da 1Day Sooner, um grupo que defende voluntários estudos de infecção humana controlada de covid-19.
BRASÍLIA – O Ministério da Saúde decidiu suspender temporariamente o contrato para comprar 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin, fabricada pelo laboratório indiano Bharat Biotech. A decisão ocorre um dia após o presidente Jair Bolsonaro ser alvo de uma notícia-crime no Supremo Tribunal Federal (STF) acusado de prevaricação. Senadores apontam que o presidente ignorou alertas, feitas ainda em março, de que haveria corrupção no processo de contratação do imunizante, que foi intermediado pela Precisa Medicamentos. Esta foi a primeira reação prática do governo após as suspeitas de irregularidades, que o Palácio do Planalto tem negado existir.
O acordo do Ministério da Saúde com a Precisa foi assinado em 25 de fevereiro e prevê pagar R$ 1,6 bilhão. O valor por dose (US$ 15) é o mais caro dos seis imunizantes que o País comprou até agora. A decisão de suspender o contrato ocorreu após recomendação da Controladoria-Geral da União (CGU), que vai fazer um pente-fino no processo de contratação da vacina.
"Por orientação da CGU, por uma questão de conveniência e oportunidade, decidimos suspender o contrato para que análises mais aprofundadas sejam feitas. Por outro lado, o Ministério da Saúde vai fazer uma apuração administrativa para verificar todos os aspectos da temática que foram suscitadas a partir do final da semana passada", afirmou o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em entrevista no Palácio do Planalto. A informação de que o contrato seria suspenso havia sido antecipado pela CNN Brasil.
O ministro da CGU, Wagner Rosário, disse que a suspensão do contrato vai durar apenas enquanto o órgão analisa se houve irregularidades na contratação, o que espera concluir em, no máximo, dez dias. "A gente suspendeu como medida preventiva, visto que há uma denuncia de irregularidade que nao conseguiu ser ainda bem explicada pelo denunciante", afirmou Rosário, que concedeu entrevista ao lado de Queiroga. "Vamos fazer essa análise para ter certeza que não haja nenhuma mácula nesse contrato. A partir daí, a decisão de contratação ou não é um ato de gestão do ministro da Saúde, não cabe à CGU. A CGU está suspendendo o processo única e exclusivamente para verificação de possível irregularidade trazida por um servidor que não conseguiu especificar ainda qual é. Estamos revisando o procesos para dar a máxima segurança para o ministro tomar as decisões dentro da legalidade."
Em depoimento à CPI na sexta-feira, 25, Luis Ricardo Fernandes Miranda, chefe do setor de importação do Ministério da Saúde, afirmou ter sofrido pressão de superiores para acelerar a compra do imunizante indiano. O servidor apontou uma tentativa de pagamento antecipado e, ao lado do irmão, o deputado Luis Miranda (DEM-DF), se reuniu com Bolsonaro em março para apontar indícios de corrupção no acordo.
Na ocasião, segundo o deputado, o presidente atribuiu às suspeitas a “mais um rolo” do deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), ex-ministro da pasta e atual líder do governo na Câmara. Ainda segundo Miranda, Bolsonaro disse que acionaria a Polícia Federal para investigar o caso, mas nenhuma investigação foi aberta na época.
Além do preço mais alto e a pressão para acelerar o negócio, o contrato do governo para adquirir a Covaxin também levantou suspeitas de senadores por ter sido o único firmado por meio de uma empresa intermediária. Todos os outros foram negociados diretamente com laboratório fabricantes ou que produzirão os imunizantes no País. A Precisa Medicamentos não atuava até então no ramo de vacinas.
O contrato, assinado em fevereiro, previa que a primeira remessa, de 4 milhões de doses, seria enviada ao Brasil ainda em março. Sem aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, porém, o prazo foi desrespeitado. A Precisa só conseguiu uma autorização da agência para importação excepcional dos imunizantes no início do mês, mas com uma série de exigências que ainda não foram cumpridas, como a apresentação de um plano de monitoramento dos pacientes que receberem as doses. Assim, nenhuma unidade do imunizante chegou a ser enviado ao País. O governo afirma também não ter pagado nada pelas doses até o momento. O dinheiro, porém, já foi empenhado (reservado) no Orçamento.
Para o senador Humberto Costa (PT-PE), que integra a CPI, o governo admite que há irregularidades ao suspender o contrato. “Essa decisão é o reconhecimento de uma culpa”, disse ele em entrevista à CNN Brasil.