segunda-feira, 3 de maio de 2021

O "cala boca" não morreu: o problema é o guarda da esquina, Ricardo Toledo Santos Filho é vice-presidente da OAB-SP. Conjur

 Elegante, comedido, espécime refinado da astúcia mineira, o governador Milton Campos costumava conversar no Bar do Ponto, em Belo Horizonte, com um popular que criticava sua administração (1947-1951). Um correligionário o interpelou por tamanha condescendência e ouviu de volta uma lição que, mais que uma pérola do folclore político, foi uma aula de tolerância: “Meu filho, falar mal do governo é tão bom que não pode e não deve ser privilégio dos nossos adversários”.

Não se sabe se Campos levou essa concepção libertária ao Ministério da Justiça, que assumiu em 15 de abril de 1964, período de numerosas prisões e suspensão de direitos políticos e perseguição de todo aquele que ousava “falar mal da Revolução”, mas é certo que se demitiu em 11 de outubro de 1965 por não concordar com a edição do Ato Institucional n.º 2.

Na quadra atual, três décadas depois de a Constituição de 1988 restaurar o Estado Democrático de Direito e o País surfar no período das mais amplas e duradouras liberdades democráticas de sua história, criticar o governo começa a ser temerário.

No dia 4 de agosto passado, o cidadão Rogério Lemes Coelho denunciou que foi arrancado à força da torcida no jogo Corinthians e Palmeiras, na Arena Corinthians, algemado e levado aos trancos para o posto do Juizado Especial Criminal no estádio. O motivo, segundo os próprios policiais militares que o detiveram: “proferia palavras contra o presidente da República”. No boletim de ocorrência lavrado já ficou evidente a confusão típica desses episódios sui generis: o declarante foi o preso, mas os policiais também explicaram sua atitude (“evitar tumulto”) e foram os signatários do BO.

Instada pela imprensa, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo emitiu nota em que se atribui o papel de neutra higienista política:

“Todas as polícias de São Paulo são instrumentos do Estado Democrático de Direito e não pautam suas ações por orientações políticas. Entre as atribuições da Polícia Militar estão: proteger as pessoas, fazer cumprir as leis, combater o crime e preservar a ordem pública. No caso em questão, a conduta foi adotada para preservar a integridade física do torcedor, que proferia palavras contra o presidente da República, o que causou animosidade com outros torcedores, com potencial de gerar tumulto e violência generalizada. A pasta informa que não houve prisão, mas a condução dele por policiais militares ao posto do Juizado Especial Criminal, instalado dentro da Arena Corinthians, onde foi registrado boletim de ocorrência não criminal e depois liberado para voltar a assistir à partida de futebol”.

O episódio parece pequeno, mas a causa é grande. Já são numerosos os incidentes desse tipo País afora, principalmente em São Paulo. Admitir essa doutrina repressiva de obstar a livre manifestação de opinião significa concordância com violação explícita ao artigo 5º, inciso IV, da Constituição: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Aquele que se achar vítima de calúnia, injúria ou difamação pode recorrer à Justiça, pois são condutas tipificadas na legislação penal.

No entanto, não cabe à polícia, valendo-se da força, sair mandando cidadãos “calarem a boca” por expressarem palavras – no caso, nem se falou em ofensa criminosa – contra uma autoridade. Muito menos conduzir a distrito policial, contra sua vontade, e com registro de ocorrência. Por sinal, e, paradoxalmente, ninguém exerce essa liberdade de opinião com tanto alarido guerreiro quanto o próprio suposto ofendido.

A lei, por óbvio, não respalda essas abordagens da polícia, mas parece estar em curso a tessitura de um ambiente repressivo – já empesteado de ódio nas redes sociais – que ganha as ruas pelas mãos de agentes do Estado, que se sentem estimulados.

O caso remete à lenda de que, quando foi promulgado o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, o vice-presidente Pedro Aleixo, outro mineiro afável, manifestou seu temor de que um ato extralegal tão repressor iria desencadear o terror no país, como desencadeou, e disse ao general Costa e Silva: “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país; o problema é o guarda da esquina”. A tragédia é que a história sempre pode se repetir...

Crescimento urbano desordenado divide municípios paulistas entre ‘ganhadores’ e ‘perdedores’, Agência Fapesp

Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Entre os 180 municípios que formam a macrometrópole paulista, existem aqueles que provêm e aqueles que apenas usufruem de serviços ecossistêmicos como abastecimento de água, alimentos e recursos para a geração de energia. E os municípios provedores – que dão suporte à vida em toda a região – são, de modo geral, os que apresentam as maiores iniquidades em termos de desenvolvimento humano e inclusão social. A conta, portanto, não fecha.

Essa é a conclusão do estudo Environmental injustices on green and blue infrastructure: Urban nexus in a macrometropolitan territory, publicado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) no Journal of Cleaner Production.

“Desde que o mundo é mundo, os aglomerados urbanos têm sido impulsionadores do desenvolvimento econômico. Mas existe uma condição para as cidades: só há vida se existirem os chamados serviços ecossistêmicos, que garantem insumos tão básicos como água, energia e alimentos. Para que isso aconteça em todo o tecido urbano da macrometrópole, ocorre uma inter-relação entre os municípios, mas o que se vê são grandes desproporções que tendem a não levar em conta a importância dessa troca”, afirma Leandro Giatti, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP-USP) e coordenador da pesquisa, apoiada pela FAPESP.

No artigo, os 180 municípios foram divididos em quatro diferentes grupos: três de “ganhadores” (capital, interior e ganhadores desenvolvidos) e um agregado de municípios com forte atuação no fornecimento de água, alimentos e subsídios para geração de energia.

“A avaliação para a gestão da água, da energia e dos alimentos é sempre feita pela ótica econômica. Só que tem uma conta que precisa ser feita: são 34 milhões de habitantes necessitando desses recursos para sobreviver na macrometrópole. As indústrias também precisam. É importante incluir essas complexidades nas avaliações para o desenvolvimento da região”, explica Giatti.

A área da macrometrópole paulista abrange as regiões metropolitanas de São Paulo, Campinas, Sorocaba, Baixada Santista e o entorno do Vale do Paraíba. Desde os anos 1950, o Estado de São Paulo vem se urbanizando de maneira rápida e muitas vezes desordenada. Não por acaso, as chamadas infraestruturas verdes e azuis – como parques urbanos, reservas florestais, mananciais e telhados verdes – têm ganhado destaque nos últimos anos.

“As áreas remanescentes garantem água, regulação climática e formação de solo para o cinturão verde que provê alimentos. E, em um grande adensamento urbano como a macrometrópole paulista, esses recursos precisam ser trazidos cada vez mais de longe. Essa inequidade mostra a falta de um projeto adequado para os municípios que provêm esses serviços de suporte à vida, seja nos planos municipais ou nas grandes obras de engenharia voltadas para o abastecimento de água, energia e alimentos”, avalia Giatti.

Ganhadores e perdedores

Entre os vários exemplos mencionados no estudo estão São Caetano do Sul e Natividade da Serra. Enquanto a cidade do ABC paulista é extremamente urbanizada, tem pouquíssima estrutura verde e azul e um dos mais altos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, o município situado às margens da represa de Paraibuna abriga uma pequena população, grande cobertura vegetal, provê serviços ecossistêmicos e tem um IDH extremamente baixo.

De acordo com os pesquisadores, a importância de avaliar os benefícios conjuntos de remanescentes ambientais em espaços urbanos pode servir como estratégia de adaptação para melhorar a gestão dos recursos naturais e oferecer suporte a diferentes processos e funções do ecossistema.

“O estudo fornece uma compreensão abrangente de sistemas urbanos complexos, considerando a justiça ambiental e a sinergia do nexo água-energia-alimentos. O objetivo é fazer um chamado para as políticas públicas. Muitas vezes se considera o pagamento por serviços ecossistêmicos como uma solução ou uma fórmula mágica. Mas é preciso levar em conta os trade-offs [escolha de uma opção em detrimento da outra] e os efeitos colaterais de uma decisão. A abordagem que utilizamos para analisar os 180 municípios da macrometrópole paulista nos trouxe essa visão mais completa”, explica Lira Luz Benites-Lazaro, pesquisadora da USP coautora do artigo.

Os cientistas correlacionaram por meio de técnicas de machine learning 19 indicadores socioeconômicos e ambientais para os 180 municípios. “É perceptível que os muitos municípios que fornecem água para a geração de energia e a produção de alimentos são aqueles que apresentam menor qualidade de vida e maior proporção de cobertura vegetal”, afirma Mateus Henrique Amaral, primeiro autor do estudo.

Nexo água-energia-alimento

O estudo buscou fornecer uma compreensão abrangente de sistemas urbanos complexos, considerando a justiça ambiental e uma abordagem sinérgica do nexo água-energia-alimento. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), a agricultura é o maior consumidor dos recursos de água doce do mundo. Mais de um quarto da energia utilizada globalmente é gasta na produção e no fornecimento de alimentos.

Alimentar uma população global que deverá atingir 9 bilhões de pessoas até 2050 exigirá um aumento de 60% na produção de alimentos. Como consequência, haverá maior consumo de água e energia.

O grupo de pesquisadores também tem realizado estudos com base nessa abordagem sobre a produção de cana-de-açúcar e etanol. “Com a análise entramos em um nível de discussão da sustentabilidade muito compatível com os ideários dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável [ODS, propostos pela Organização das Nações Unidas na Agenda 2030]. Não basta ter uma medida ótima para a gestão da água se forem desconsideradas as compensações necessárias com a energia e o alimento”, opina Giatti.

A análise do desenvolvimento pelo viés do nexo água-energia-alimento ganhou força e novos estudos a partir de 2011, quando ocorreu o Fórum Econômico Mundial. “Mas é uma ótica muito mais antiga. A civilização Inca, no Peru, há mais de 500 anos já pensava suas cidades dessa maneira”, diz Benites-Lazaro.

O artigo Environmental injustices on green and blue infrastructure: Urban nexus in a macrometropolitan territory (doi: /10.1016/j.jclepro.2021.125829), de Mateus Henrique Amaral, Lira Luz Benites-Lazaro, Paulo Antonio de Almeida Sinisgalli, Humberto Prates da Fonseca Alves, Leandro Luiz Giatti, pode ser lido em www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0959652621000494?via%3Dihub.

  

domingo, 2 de maio de 2021

‘Locação flexível’ vira novo hábito dos hóspedes brasileiros durante a pandemia, OESP

 Bianca Zanatta

02 de maio de 2021 | 05h00

Especial para o Estadão

Afetados pela pandemia da covid-19, os hábitos de viagem se transformaram ao longo do último ano. Segundo um levantamento da plataforma Airbnb nos Estados Unidos, aspectos de limpeza e higienização ganharam mais relevância na decisão dos hóspedes, que hoje optam também por estadias em lugares com menor fluxo de pessoas e rotatividade, como casas de campo e em cidades menores do litoral.

Além das fronteiras fechadas, que dificultaram o vaivém internacional, a saudade é outro fator que trouxe mudanças na escolha dos destinos de viagem. Ainda de acordo com o Airbnb, as viagens ganharam um “significado mais pessoal, que leve de volta às raízes”. Apesar de 31% dos entrevistados desejarem uma nova experiência ou destino, de preferência próximo, 32% priorizam sair de casa para estar perto da família e 25% sentem vontade de retornar a um destino preferido.

Thomaz Guz
Nomah, de Guz, trabalha com dois modelos de 'locação flexível'. Foto: Alan Teixeira

Diante do novo comportamento, alternativas de locação flexível entraram na mira de pessoas que procuram imóveis para atender a um momento específico – das férias rápidas ou da visita a familiares a mudanças temporárias por causa do trabalho, por exemplo. De acordo Thomaz Guz, fundador da Nomah – startup com foco na gestão e transformação de ativos residenciais para locação flexível em São Paulo –, tanto os hóspedes de estadia curta quanto os de locação de médio ou longo prazos prezam por quatro fatores: praticidade, inovação, custo-benefício e disponibilidade de serviços adicionais sob demanda.

Com o lema “fique o tempo que quiser”, a empresa, que faz retrofit de prédios antigos e hotéis, faz a gestão de unidades residenciais totalmente mobiliadas, com portaria e atendimento 24 horas e serviços como limpeza adicional e descontos em estabelecimentos próximos.

“A ideia é também fazer uma cobrança democrática que viabilize a permanência das pessoas”, afirma Guz, explicando que a startup trabalha com dois modelos – cobrança por diária (que custa de R$ 100 a R$ 400, dependendo da localidade) ou pacotes mensais a partir de 30 dias. “Quanto mais tempo fica, menor o preço”, diz.

Parceria

A Nomah também atua em empreendimentos novos, como no caso de uma parceria com a Gafisa. O primeiro ativo incorporado e construído pela construtora em parceria com a startup, que acaba de ser entregue, é o Moov Estação Brás, localizado no centro da cidade. Com 542 unidades distribuídas em duas torres, o condomínio tem uso misto: 321 apartamentos residenciais e 221 unidades destinadas a estadias curtas, médias e longas. A startup cuida desde a gestão de contas e manutenção desses apartamentos até os contratos das locações flexíveis.

Para o empresário Roger Righi, de 43 anos, o padrão dos apartamentos é o maior atrativo. Morador de Porto Alegre (RS), ele comanda empresas no Rio Grande do Sul e em São Paulo, onde costuma se hospedar na Nomah. “Eu prefiro pela comodidade, organização e preço e gosto muito do padrão”, afirma. “Das residências novas, da facilidade de ter as amenidades por perto, a exemplo de lavanderia e cafés.”

Maior rentabilidade

anyLife, que acaba de completar um ano de vida, é outra startup que apostou na demanda por hospedagem rápida no setor imobiliário e chegou a R$ 500 mil de faturamento com gestão e R$ 1 milhão com obras em 2020. A empresa atua em imóveis prontos, obras ou lançamentos, com um braço para cada público – hóspede (corporativo ou turista) e proprietário.

Para o proprietário que quer usar o imóvel como fonte de renda, a startup faz, além da manutenção, toda a gestão da locação. O dono só precisa acompanhar os ganhos pela plataforma da empresa, que desenvolveu um algoritmo de precificação inteligente em que os valores das diárias são ajustados de acordo com os parâmetros do mercado, calendário de eventos da cidade, oferta e procura da região e preço de apartamentos concorrentes. De acordo com dados da própria anyLife, o aumento na rentabilidade chega a 50%, se comparado ao modelo tradicional de locação de curta estadia, que gira em torno de 0,2% a 0,6% ao mês.

Já para os hóspedes, a startup oferece facilidades que vão de limpeza e arrumação, itens de higiene e “concierge” digital a suporte 24 horas e serviços sob demanda. Responsável pela gestão de 91 unidades em bairros paulistanos como Itaim BibiVila Olímpia, BrooklinVila MarianaConsolaçãoPinheiros e Centro, a empresa tem a meta de chegar a 400 imóveis gerenciados ainda este ano.

Locação flexível
Exemplo de imóvel de locação flexível oferecido pela Nomah. Foto: Birdie

Referência na modalidade, seja de curta, média ou longa duração, a Housi, primeira plataforma de moradia por assinatura do mundo, acaba de ampliar sua atuação para se tornar um marketplace da locação flexível.

A ideia é distribuir os imóveis não só no site e aplicativo da própria empresa, mas em dezenas de grupos parceiros, como AirbnbBooking.comZap e Imóvel Web, que direcionam os interessados para os canais da Housi. Até o fim do ano, a intenção é triplicar de tamanho e expandir para 80 novas cidades. Também está nos planos da empresa iniciar uma expansão para a América Latina.

Sem burocracia

“A ideia da moradia por assinatura é que a pessoa escolha por quanto tempo morar e onde morar, não importa se é uma semana ou se são 36 meses”, diz Alexandre Frankel, fundador da Housi. “Não é uma concorrência aos modelos tradicionais de curta permanência, que são bem especializados em turismo e hospitalidade, mas uma modalidade complementar.”

Frankel destaca que é possível mudar de uma unidade da Housi para outra sem burocracia nenhuma. “Nossos clientes são pessoas que querem prazos mais flexíveis porque inclusive podem mudar de necessidade durante o período de assinatura”, fala o empresário. “É para atender a uma demanda gerada por um novo perfil de consumo, novos tipos de trabalho, novas necessidades.”