domingo, 13 de dezembro de 2020

BEATRIZ DELLA COSTA É hora da imaginação política, FSP

 12.dez.2020 às 23h15

Beatriz Della Costa

Cientista social, é cofundadora e diretora do Instituto Update, que lançou neste ano o projeto ‘Eleitas: Mulheres na Política’ (www.eleitas.org.br)

Nunca houve tanta diversidade numa campanha eleitoral. No primeiro turno, enquanto o Tribunal Superior Eleitoral cantava as pedras dos resultados, não me restava qualquer dúvida de que uma efetiva representatividade tinha chegado às urnas.

As boas notícias vinham de todos os lados. Vinte e cinco pessoas trans eleitas, entre elas as recordistas gerais de votos em Belo Horizonte, Aracaju e outras cinco cidades —sem falar de onde saíram as mulheres mais votadas, como em São Paulo. Negras estreando nas Câmaras Municipais de capitais como Cuiabá, Curitiba e Vitória ou, como em Recife e Porto Alegre, despontando em primeiro lugar.

Mas a empolgação durou pouco. Os dados oficiais logo botaram o pé na porta, carregando baldes de água fria. As estatísticas insistiam que pouquíssimo havia mudado: a taxa de mulheres eleitas aumentou apenas 2,5%, e a de pessoas negras e pardas não subiu muito mais que 1%. No segundo turno, as coisas não melhoraram. As duas únicas candidatas foram derrotadas, deixando-nos com apenas uma capital governada por mulher. Vinte anos atrás, tínhamos cinco.

Os números são incontestáveis. Mas não abro mão de usar a minha lupa qualitativa.
Ficou claro, sim, que quem está de volta para reocupar o espaço tomado em 2018 por uma direita extremista é o velho centrão. Só que, se olharmos bem, vamos perceber que existem outros vencedores.

Um zoom apurado deixa evidente uma mudança de pensamento. Está nascendo um projeto de país a partir da representatividade. É uma narrativa que, pela boca dos jovens, vem saindo dos bastidores para, aos pouquinhos, acomodar-se no cenário político.

As novidades são muitas. Dois anos atrás tivemos a primeira deputada trans eleita. Agora, as 25 vereadoras trans escolhidas são mais que o triplo de 2016. Outro fenômeno são os mandatos coletivos, vanguarda que, em geral liderada por mulheres, abre portas para mais gente participar do fazer política a partir de uma única vaga. Essas candidaturas cresceram quase 2.000% em quatro anos.

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É uma experiência novíssima que acaba de ter 17 coletivos aprovados nas urnas.
Ainda parece pouco? Outro dia ouvi uma expressão que logo adotei: “paciência histórica”. A história é construída ao longo de décadas, séculos. E a política é um reflexo desse processo. Se não dá para mudar a história de uma hora para outra, também não dá para mudar a política de uma eleição para a outra. O segredo está na paciência e na perseverança. E na imaginação.

A imaginação política é o que faz a roda girar. É ela que constrói realidades e organiza o futuro. E há algum tempo as sementes de imaginação política vêm sendo cultivadas por aqui. Agora, cuidadosamente fertilizadas pela criatividade, pela colaboração e pela busca por novas práticas institucionais, finalmente começaram a brotar.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Update e Datafolha, pouco antes das eleições, destacou que os brasileiros estão dispostos a votar em mulheres e pessoas negras. Ficou nítido também que os eleitores são mais propensos a escolher candidatos apoiados por líderes comunitários do que por políticos consolidados —e confiam mais em iniciativas de renovação do que nos próprios partidos.

Por que, então, as urnas mostraram algo tão diferente? Porque só o movimento da sociedade não vai dar conta de fazer a mudança. Marcos jurídicos são fundamentais para transformar novos paradigmas em políticas públicas. Precisamos de cotas. Precisamos da paridade de gênero instituída nos Três Poderes. Precisamos de fiscalização para que as verbas do financiamento de campanhas cheguem a quem são de direito.

Mas o ponto fundamental é que nem isso vai dar jeito se não houver um comprometimento dos partidos. Sem transformações nas estruturas e nas cúpulas partidárias, vamos continuar avançando a passos muito, muito lentos.

As eleições de 2020 são uma derrota que precisa ser encarada com os olhos da inspiração. Nada é em vão. Deixando a mente voar solta, estamos saindo do buraco. Com os pés no chão, e também com muita paciência e persistência (da sociedade, das instituições, dos partidos), vamos construir o futuro que merecemos —para 2022 e além.


Ruy Castro Ninguém nos quererá por perto, FSP

 RIO DE JANEIRO

Um amigo, adolescente no Rio durante a 2ª Guerra e hoje perto dos 90, me falou da diferença entre aquela época e a nossa, sob a Covid. A guerra era disputada lá fora e só participávamos dela pelos jornais, cinejornais e rádio. Saía-se à rua à vontade, não nos jogavam bombas. À noite, ia-se para o escurinho da orla com a namorada a fim de “vigiar” os submarinos alemães. E, quando o Brasil mandou seus rapazes para a Europa, foi melhor ainda porque, diziam, a FEB ganhava todas.

A guerra atual é muito pior. Também é mundial, mas, ao contrário da outra, desconhece fronteiras. Dá-se na nossa rua, na nossa casa e dentro de nós. O inimigo é invisível e não escolhe veículo para nos invadir —30 segundos de conversa a menos de dois metros com um estranho podem bastar. Há inúmeros casos de contágio por amigos, filhos, netos. É cruel imaginar que a transmissão possa se dar por gestos de amor.

Esta guerra já dura nove meses e, para muitos que continuamos fiéis à quarentena, a rotina do front interno começa a ser um suplício. O consumo de álcool, cigarros e ansiolíticos disparou. Secretárias de médicos já mantêm blocos de receitas assinadas autorizando a compra dos remédios que as exigem.

Quantos enfartes não se darão por falta de exercício dos cardiopatas? E, pelos índices de violência doméstica, quantos casamentos não se tornaram uma jaula a dois?

De repente materializa-se a esperança da vacina. E o que faz o demente Bolsonaro? Aproveita-se de que muitos estão loucos por um pretexto para sair e estimula uma última onda de contágio ao anunciar que a pandemia está “no finalzinho”.

Enquanto outros países cuidam de orientar seus cidadãos, os assassinos que nos governam fazem da nossa tragédia uma farsa. Em breve, aqueles países estarão maciçamente vacinados. Nós, precariamente —alguns sim, outros não. Mas ninguém nos quererá por perto em conjunto.

Lorna Lucas, 81, toma vacina contra a Covid-19 da Pfizer, antes de se marido, Winston, em hospital de Londres, na Inglaterra
Lorna Lucas, 81, toma vacina contra a Covid-19 da Pfizer, antes de se marido, Winston, em hospital de Londres, na Inglaterra - Victoria Jones/AFP
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Hélio Schwartsman As muitas mortes do Universo, FSP

 

Bolsonaro tem razão; todos morreremos, inclusive o Universo

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Bolsonaro tem razão. Não devemos nos preocupar com a Covid-19, pois, ao fim e ao cabo, todos morreremos. E não apenas nós. Esse também será o destino do planeta, da galáxia e do próprio Universo.

“Na plenitude do tempo, tudo o que vive morrerá”, escreve Brian Greene na abertura de seu mais recente livro, “Until the End of Time” (até o fim do tempo). Mas a visão do físico norte-americano neste livro dedicado a perscrutar as mortes do Cosmo é surpreendentemente menos niilista do que as omissões do presidente brasileiro.

É que no miolo da obra, entre considerações sobre a entropia e descrições dos vários “fins” que o Universo experimentará, Greene examina temas como linguagem, religião, consciência, arte, ciência, que, como ele próprio sustenta, podem dar sentido a nossas efêmeras existências.

Greene discorre sobre esses assuntos com competência, mas é quando explica aspectos mais abstrusos da física que ele se torna genial. Os capítulos finais do livro, em que ele detalha o que a entropia fará no longo prazo com objetos tão variados como planetas, estrelas, galáxias, buracos negros, energia, matéria, pensamento, permitem “insights” desconcertantes.

E, quando se fala aqui em longo prazo, é importante frisar o “longo”. O Universo tem hoje, arredondando, 1010 anos. Quando passarmos dos 1014, a maioria das estrelas da maioria das galáxias terá se apagado.

Aos 1030, buracos negros centrais terão sugado o que restou delas. Aos 1038, já não haverá átomos e, aos 1050, o próprio pensamento como atividade abstrata será impossível. Com 10102, tudo o que restará será uma difusa névoa de partículas vagando pelo espaço.

É aí que as coisas podem ficar interessantes de novo. Se admitirmos escalas de tempo verdadeiramente grandes, algo como 10.000.000.00068, flutuações quânticas poderão fazer com que objetos macroscópicos como eu, você e Bolsonaro reexistam por alguns instantes.

desenho sugere uma espécie de explosão em amarelo sobre fundo azul
Ilustração de Annette Schwartsman para coluna de Hélio Schwartsman de 13.dez.2020 - Annette Schwartsman
Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".