O anúncio feito esta semana de que uma vacina contra o coronavírus de baixo custo e produção fácil parecia ter eficácia de até 90% foi recebido com grande alegria. “Tome um vacaccino”, festejou um tabloide britânico, destacando que a vacina em questão, desenvolvida pela AstraZeneca e a Universidade Oxford, custa menos que um cappuccino.
Mas desde que anunciou os resultados preliminares, a AstraZeneca admitiu que um erro crucial foi cometido na dose de vacina recebida por alguns participantes em seus estudos. Com isso, aumentam as dúvidas quanto a se a eficácia aparentemente espetacular da vacina vai se confirmar após ensaios adicionais.
Cientistas e especialistas do setor disseram que o erro e uma série de outras irregularidades e omissões no modo como a AstraZeneca divulgou os dados inicialmente enfraqueceram sua confiança na confiabilidade dos resultados.
Autoridades nos Estados Unidos destacaram que os resultados não são claros. Foi o diretor da grande iniciativa federal de vacinas contra o coronavírus –não a empresa—quem primeiro revelou que os resultados mais promissores da vacina não refletiram dados relativos a pessoas mais velhas.
A consequência, disseram especialistas, é que as chances de reguladores nos EUA e outros países autorizarem rapidamente o uso emergencial da vacina da AstraZeneca estão diminuindo –um revés inesperado na campanha global para conter a pandemia devastadora.
“Acho que eles [a AstraZeneca] realmente prejudicaram a confiança em todo seu programa de desenvolvimento”, disse Geoffrey Porges, analista do banco de investimentos SVB Leerink.
Michele Meixell, uma porta-voz da AstraZeneca, disse que os ensaios “foram feitos obecendo os padrões mais elevados”.
Em entrevista dada na quarta-feira (25), Menelas Pangalos, o executivo da AstraZeneca encarregado de boa parte das pesquisas e desenvolvimento da empresa, defendeu o modo como a companhia lidou com os ensaios e seus anúncios públicos. Disse que o erro na dosagem foi cometido por uma firma contratada e que, uma vez flagrado, os reguladores foram notificados imediatamente e autorizaram o plano para continuar a testar a vacina com doses diferentes.
Indagado por que a AstraZeneca compartilhou algumas informações com analistas de Wall Street e alguns outros especialistas e autoridades, mas não com o público, Pangalos respondeu: “Acho que a melhor maneira de refletir os resultados é em uma revista científica revista por pares, não em um jornal”.
A AstraZeneca foi a terceira empresa este mês a anunciar resultados iniciais animadores de um candidato a vacina contra o coronavírus. À primeira vista, na manhã de segunda-feira (23), os resultados pareciam promissores. Dependendo da intensidade em que as doses eram administradas, a vacina parecia ter eficácia de 90% ou de 62%. A eficácia mediana, disseram os criadores, era de 70%.
Mas os dados foram questionados quase imediatamente.
O programa que parecia ter eficácia de 90% envolveu participantes que receberam meia dose da vacina, seguida por uma dose completa um mês mais tarde. O programa menos eficaz envolveu duas doses completas. Em seu anúncio inicial, a AstraZeneca revelou que menos de 2.800 participantes seguiram o programa com uma dose inicial menor, enquanto quase 8.900 participantes receberam duas doses completas.
As maiores perguntas foram: por que houve uma variação tão grande na eficácia da vacina em doses diferentes e por que uma dose menor parece ter produzido resultados muito melhores? Pesquisadores da AstraZeneca e da Universidade Oxford disseram que não sabem.
Havia outras informações cruciais faltando. A empresa disse que a primeira análise foi baseada em 131 casos sintomáticos de Covid-19 que surgiram em participantes do estudo. Mas ela não informou quantos casos foram encontrados em cada grupo de participantes –os que receberam a dose inicial 50% menor, os que receberam a dose inicial normal e os que receberam um placebo.
“O release para a imprensa suscitou mais perguntas do que ofereceu respostas”, disse John Moore, professor de microbiologia e imunologia no Weill Cornell Medical College.
Para aumentar a confusão, a AstraZeneca juntou os resultados de dois ensaios clínicos concebidos de maneira diferente realizados no Reino Unido e no Brasil. Foi uma ruptura com a prática habitual nos relatos de resultados de ensaios de medicamentos e vacinas.
“Não consigo entender de onde está vindo toda a informação e como ela está sendo combinada”, disse Natalie Dean, na Universidade da Flórida, especialista em bioestatística e na criação de ensaios de vacinas. Ela escreveu no Twitter que a AstraZeneca e a Universidade Oxford “recebem nota baixa em transparência e rigor em relação aos resultados de ensaios de vacinas que anunciaram”.
Com as ações da AstraZeneca perdendo valor na segunda-feira, executivos da empresa fizeram várias teleconferências reservadas com analistas da indústria farmacêutica em que revelaram detalhes que não constaram do anúncio público, incluindo a parcela de casos de Covid-19 nos diferentes grupos. A divulgação de informações a analistas, como neste caso, não é incomum na indústria, mas frequentemente gera questionamento sobre o porquê de as informações não terem sido compartilhadas com o público.
Não demoraram a vir à tona preocupações maiores.
Pangalos disse à Reuters na segunda-feira que a empresa não pretendera que nenhum participante recebesse a meia dose. Os pesquisadores britânicos que comandavam o ensaio no Reino Unido pretenderam inicialmente dar a dose total aos voluntários, mas, devido a um erro de cálculo, os participantes receberam apenas meia dose. Pangalos descreveu o erro como “um acaso feliz” que permitiu aos pesquisadores encontrarem por acaso um programa de dosagem mais promissor.
Para muitos especialistas externos, isso enfraqueceu a credibilidade dos resultados, porque os ensaios clínicos cuidadosamente calibrados não haviam sido designados para testar a eficácia de uma dose inicial 50% menor.
O anúncio inicial feito pela empresa não mencionou que a descoberta havia sido acidental.
“A verdade é que o erro pode acabar sendo útil”, disse Pangalos na quarta-feira em entrevista ao New York Times. “Não pôs ninguém em risco. Foi um erro de dosagem. Tudo estava sendo feito muito rapidamente. Corrigimos o erro e continuamos com o estudo, sem mudar nada, e concordamos com o regulador em incluir os pacientes que tomaram a meia dose inicial na análise do estudo.
“O que há para revelar? Na realidade, não tem importância se foi feito intencionalmente ou não.”
Na declaração atribuída à Universidade Oxford, Meixell, a porta-voz da AstraZeneca, disse que o erro se deveu a um problema –que foi corrigido desde então—no modo de manufatura de algumas das doses da vacina.
Na terça-feira, porém, Moncef Slaoui, diretor da operação Warp Speed, a iniciativa dos EUA para acelerar a criação de vacinas contra o coronavírus, chamou a atenção para outra limitação nos dados da AstraZeneca. Em uma ligação com jornalistas, ele sugeriu que os participantes que receberam a dose inicial mais fraca tinham no máximo 55 anos de idade.
Pangalos confirmou a informação na quarta-feira, dizendo que os participantes receberam a dose menor ao longo de semanas antes de o erro ser descoberto.
O fato de a dose mais fraca inicial não ter sido testada com participantes mais velhos, que são especialmente vulneráveis ao vírus, pode enfraquecer os argumentos apresentados pela AstraZeneca aos reguladores dizendo que a vacina deve ser autorizada para uso emergencial.
Stephanie Caccomo, porta-voz da Food and Drug Administration, se negou a comentar se o erro de dosagem vai prejudicar as chances de a vacina ser autorizada. A FDA disse que espera que as vacinas tenham eficácia de pelo menos 50% na prevenção da doença ou redução de sua gravidade. A vacina da AstraZeneca parece ter superado esse limiar, mesmo entre o grupo de voluntários que recebeu as duas doses completas.
A Pfizer e a Moderna disseram este mês que suas vacinas, que empregam uma tecnologia conhecida como “RNA mensageiro”, parecem ter eficácia de cerca de 95%. Parece quase certo que as duas recebam autorização emergencial da FDA nas próximas semanas.
A vacina da AstraZeneca, que utiliza uma abordagem diferente envolvendo um vírus de chimpanzé para provocar uma resposta imunológica ao coronavírus, tinha tudo para ser um sucesso certeiro.
Tinha custo baixo –apenas alguns dólares por dose—e era fácil de produzir em massa. Diferentemente das vacinas da Pfizer e da Moderna, a da AstraZeneca poderia ser armazenada por meses em geladeiras comuns. A empresa estimou que conseguirá produzir 3 bilhões de doses em 2021, o suficiente para vacinar quase um quinto da população mundial.
Nos Estados Unidos, que já encomendou pelo menos 300 milhões de doses da vacina da AstraZeneca, o caminho regulatório futuro da vacina não está claro. A AstraZeneca disse pouco na segunda-feira sobre seus planos para buscar aprovação dos reguladores. A empresa disse que vai pedir orientação da FDA sobre se deve apresentar formalmente os resultados de seus ensaios para pedir autorização emergencial.
A AstraZeneca não vem testando a meia-dose inicial promissora no ensaio que está realizando no momento nos Estados Unidos. A empresa disse que vai trabalhar com a FDA para acrescentar a meia dose inicial a esse ensaio o mais rapidamente possível.
Pangalos disse que a empresa pretende realizar um ensaio global para comparar os dois programas de dosagem. O número de participantes que vai convocar ainda não foi determinado, mas serão milhares.
“O único jeito que vão descobrir é com ensaios que testem especificamente essa observação casual e afortunada”, disse Moore. “Cabe à AstraZeneca comprovar o que está sendo especulado.”