quarta-feira, 3 de junho de 2020

O Brasil já começa a perder a paciência, e o que se faz é uma aposta na guerra civil, Marcelo Coelho, FSP

Há quem se empolgue com as manifestações antifascistas que começam a aparecer. Não é bem o meu caso. Qualquer coisa que se pareça com torcida organizada de futebol me dá mais vontade de ficar em casa do que de aderir.

Certa disposição para o confronto físico, já apresentada nas escaramuças deste domingo, vai no sentido contrário de tudo o que seria importante agora.

Ilustração geometrizada, em preto e branco, onde pontas de lanças apontam umas para as outras, em fileiras de quatro, mas desenho dá a entender que podem ser bandeiras também.
Ilustração - André Stefanini

Precisaríamos de milhões de pessoas na rua (uma hora isso vai acontecer) contra a demência bolsonarista.

Os adeptos de uma volta à ditadura e de uma intervenção no STF estão avançando para a ilegalidade. Conspirar contra as instituições, formar grupos armados, ameaçar autoridades são crimes evidentes.

Mas combatê-los na correria, no soco ou na pedrada é uma forma de agir contra as instituições também. É, sobretudo, contraproducente: com feridos ou mortos, de qualquer dos lados, há pretexto
para maiores restrições de liberdades públicas, atos arbitrários da polícia e medidas emergenciais do Executivo.

No limite, o que se faz é uma aposta na guerra civil.

Não acho que estejamos próximos disso. Apenas em teoria, digo que a lógica desse tipo de jogo é uma só: vence quem tiver mais força física, mais armas, mais dinheiro, mais apoio militar nacional ou estrangeiro.
Acho péssimo se a sobrevivência da democracia depender de um grupo de valentões.

Estaremos chegando a esse ponto? Se for esse o caso, não me espantarei muito. Explico.

As instituições democráticas têm sido lentas demais para responder à provocação de Bolsonaro e seus acólitos.

Um manifesto como o dos oficiais da reserva insultando o STF teria tudo para justificar um pedido de prisão preventiva.

O mesmo se aplica aos chamados “300 de Brasília”; se isso não é formação de quadrilha, não sei mais o que é.

As bravatas e afrontas de alguns deputados bolsonaristas já teriam levado, em qualquer outro país, a processos de cassação por falta de decoro parlamentar.

São tantos os atentados à lei e à democracia que algumas coisas passam batido. Para pegar o menor dos casos, o presidente da República ignora as normas de isolamento estabelecidas pelas autoridades do Distrito Federal.

Fora as investigações no STF, o que tem sido feito é pouquíssimo.

Congresso, governadores, Ministério Público se mostram cuidadosos demais —e podem ter seus motivos e táticas.

O fato é que, na falta de meios efetivos de controle, a “moderação” das forças institucionais acaba estimulando quem quer atacar o golpismo pelas próprias mãos.

Estamos todos perdendo a paciência, é claro. Mas esse “nós” precisa ser qualificado.

A oposição a Bolsonaro não se confunde com a nostalgia pelo PT, com o corpo-mole tucano, com os redutos de Ciro, nem mesmo com os arrependidos de Amoêdo, Moro e Janaina. De modo geral, tudo isso é classe média.

A nova força social antibolsonarista é outra. São os jovens negros e mestiços da periferia, as militantes pobres de movimentos feministas e LGBT, os estudantes que não têm como pagar a faculdade e não
arranjam emprego.

Foram diretamente atacados com o assassinato de Marielle Franco e são ameaçados pela PM, pelas milícias, pelo racismo e pelo preconceito dos bolsonaristas.

Foram os que, nos movimentos de 2013, protestavam contra o aumento das passagens de ônibus, sem qualquer deferência por um governador tucano ou um prefeito petista.

O que teremos em 2020? Algo mais, espero, do que um confronto de torcidas.

Vejo, em todo caso, o surgimento de um antibolsonarismo que ganha contornos de classe.

Aqui, não se trata apenas de “preservar as instituições democráticas”, ameaçadas pela direita. Está em jogo uma transformação democrática das instituições —para que a polícia deixe de assassinar
negros, por exemplo. Tanto aqui como nos Estados Unidos.

Ah, mas os protestos americanos estão tendo bastante violência e quebra-quebra... Você condenaria o que está acontecendo por lá?

Emocionalmente, não consigo. Vibro ao ver a população subindo na capota dos carros de uma polícia branca, racista e assassina.

Racionalmente, acharia melhor se esse tipo de coisa tivesse sido evitado a tempo.

Seja como for, um protesto nacional dessa amplitude, contra a polícia, é bem diferente da cena de dois grupos de mil pessoas, um de esquerda, outro de direita, se engalfinhando na paulada. Conseguiremos evitar isso também?

Marcelo Coelho

Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.

Epidemias fazem parte da história da humanidade, FSP

Durante cerco por Esparta, Atenas pode ter sido debilitada pela salmonela

A Covid-19 é a primeira pandemia das nossas vidas e tomara que seja a última. Isso dá, aos nossos olhos, dimensões de evento sem precedentes. Mas os agentes infecciosos (vírus, bactérias etc.) sempre estiveram conosco. Muitos já infectavam as espécies que nos precederam e agora partilhamos em herança com nossos primos primatas. Outros ficaram alheios à nossa existência por milênios, até que as circunstâncias —a ação humana, por vezes— colocaram nossas vidas em contato.

O prestígio por sua ação na guerra contra a Pérsia e o poder de sua marinha granjearam a Atenas hegemonia na Grécia clássica. Mas à medida que aumentavam o poder e a arrogância dos atenienses, também crescia o antagonismo das outras cidades. Em 431 a.C., a paciência de Esparta e seus aliados acabou: começou a fatídica Guerra do Peloponeso.

No ano seguinte, o poderoso exército espartano cercou Atenas. Espremida dentro das muralhas, em condições precárias de higiene, a população ateniense foi acometida por uma doença misteriosa que causava diarreia, dores, lesões e a morte. Um terço da população da cidade foi dizimado, incluindo o líder Péricles. Atenas ainda resistiria até 404 a. C., mas acabaria se submetendo.

Casal sentado próximo a ruínas
Durante cerco, Atenas pode ter sofrido com epidemia de salmonela da febre tifoide - Marios Lolos/Xinhua

Durante séculos, historiadores e cientistas se questionaram sobre a natureza dessa doença que debilitou as forças de Atenas num momento crucial. Escavações realizadas nos anos 1990 revelaram valas comuns da época do cerco. A exumação dos corpos identificou DNA da bactéria salmonela da febre tifoide, fazendo dela a principal suspeita pela epidemia.

Embora a bactéria da salmonela só tenha sido identificada na segunda metade do século 19, a genética indica que ela surgiu dezenas de milhares atrás. Provavelmente já estava conosco no período nômade, mas foi com o desenvolvimento da agricultura e do sedentarismo que encontrou condições ideais para proliferar, numa população humana que não parava de crescer. Suspeita-se que tenha sido responsável por diversos surtos graves com diarreia relatados ao longo da história.

O contágio da salmonela ocorre facilmente por meio de água ou alimentos contaminados. Mas no início do século 20, os médicos de Londres foram confrontados com surtos que não podiam ser explicados desse modo, e que apresentavam picos nos meses de verão.

Após muita pesquisa, descobriram que a salmonela desenvolvera um novo método de proliferação, com a mosca como vetor de transmissão. Numa cidade que se movia a cavalo, era uma estratégia vencedora. A reputação da mosca, que até então se acreditava ser benéfica para a saúde pública, nunca mais foi a mesma.

Nossa associação involuntária com agentes infecciosos também tem um lado positivo: permite usar métodos da genética para compreender fatos importantes da nossa história. Voltarei ao tema.

Marcelo Viana

Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.