quarta-feira, 3 de junho de 2020

Ruy Castro Governar a cavalo, FSP

O problema é que um dia o animal tem de voltar para a estrebaria

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Os estertores da ditadura militar produziram uma figura de pé de página na história do Brasil: o general Newton Cruz. Enquanto chefe do SNI sob o presidente Figueiredo, só as trevas o conheciam. Mas, em 1983, quando Figueiredo o promoveu a comandante militar do Planalto, seu estilo saiu à luz do dia.

Newton Cruz foi pioneiro em mandar repórteres calar a boca, partiu para estrangular um deles numa coletiva e, de rebenque e capacete, comandava a cavalo as operações antiprotesto em Brasília, chicoteando os carros e jogando o pobre animal contra as pessoas na calçada.

É um perigo quando autoridades se prestam a tais fanfarronices. O povo tende a identificá-los com sua montaria, vendo neles um único quadrúpede. Newton Cruz nunca se livrou dessa imagem, nem mesmo quando foi acusado de envolvimento em episódios turvos da ditadura, um deles a bomba no Riocentro, em 1981. Passou à posteridade aos relinchos.

Jair Bolsonaro saiu a cavalo pela Esplanada dos Ministérios neste domingo, saudando seus cada vez mais reduzidos apoiadores. Fez isso em mangas de camisa e com as fraldas para fora, como sói —afinal, é apenas um ex-tenente que foi promovido a capitão ao ser mandado embora do Exército. Nunca um suboficial lhe prestou continência. O homem a cavalo imagina-se uma potência, por ver os outros de cima para baixo. Bolsonaro, desmontado, ao rés do chão e acuado pela Justiça, já não está com essa potência toda.

E começa a tornar possível o que até há pouco parecia impensável: unir contra si as forças democráticas do Brasil, de várias cores políticas. Na ditadura foi assim —custou, mas chegou-se a um ponto em que ela já não interessava a ninguém, nem aos militares. A Bolsonaro só restará uma minoria falangista. Até o centrão, que ele pensou ter comprado, lhe dará uma banana.

O problema de governar a cavalo é que um dia ele tem de voltar para a estrebaria.

Lula alimenta uma divisão que pode facilitar a vida de Bolsonaro, FSP

Petista rejeita aliança por acreditar que pode se contrapor sozinho a uma recessão econômica

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A quatro dias do segundo turno de 2018, Lula cobrou a união de “todos e todas que defendem a democracia”. Numa carta escrita da prisão, o ex-presidente anotou que o país caminhava em direção a uma “aventura fascista” e afirmou: “É o momento de unir o povo, os democratas, todos e todas em torno da candidatura de Fernando Haddad”.

O petista agora indica que aquela era uma peça de marketing de baixa qualidade. Nos últimos dias, ele criticou esforços pela criação de uma frente contra tendências autoritárias de Jair Bolsonaro.

Classificou manifestos em defesa da democracia como projetos da elite e desestimulou o PT a aderir aos movimentos.

Sinceramente, eu não tenho mais idade para ser maria vai com as outras”, afirmou o ex-presidente num evento do partido, na segunda (1º).

A rejeição ao governo se alargou, mas Lula só parece preocupado em preservar hegemonia em seu próprio campo político. O ex-presidente se recusa a compartilhar a liderança de um pacto de oposição e resiste a abrir mão de itens de sua agenda em nome de princípios mais abrangentes.

Para o petista, os movimentos pela democracia são parte de um plano da elite para “voltar a governar o país sem o PT”, ignorando a agenda de redistribuição de renda que se tornou marca da sigla. Sem perceber que o eixo de contestação a Bolsonaro se desloca rapidamente para o centro e para a direita, no entanto, ele corre o risco de ser atropelado também dentro da esquerda.

Alguns aliados de Lula dizem que o ex-presidente se comporta de maneira pretensiosa e autocentrada. Eles entendem que é preciso unir forças políticas com programas distintos e admitem que a esquerda pode não ser capaz de disputar o comando dessa frente neste momento.

Lula rejeita essa aliança por acreditar que o PT pode se contrapor sozinho a uma possível recessão econômica sob o atual governo. Em nome desse projeto, ele se mostra disposto a alimentar uma divisão que pode facilitar o caminho para as investidas autoritárias de Bolsonaro.

Bruno Boghossian

Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).