domingo, 3 de maio de 2020

Brasileiro cria ventilador pulmonar usando pneu e limpador de parabrisa, FSP


SÃO PAULO
“A gente percebeu que era necessário fazer um fusquinha, não um carro com freio ABS”. Com essa frase Marcos Méndez, 29, explica o conceito que guiou a equipe no desenvolvimento de um ventilador pulmonar emergencial de baixo custo e que se propõe a atender regiões com pouco acesso à tecnologia.
O OpenVentilator, como foi batizado o equipamento da cooperativa PopSolutions, já passou por simuladores e agora tenta conseguir marcar um teste com animais. O foco, claro, é auxiliar pacientes com quadro grave de infecção por coronavírus.
Os respiradores pulmonares são equipamentos que, em situações de emergência e terapia intensiva, podem manter os pacientes vivos. Insuficiência respiratória é a principal causa de morte por Covid-19 e também indicador de subnotificação de casos.
Com objetivo de ser um respirador “de guerra”, o projeto foi desenvolvido de maneira open source, ou seja, completamente aberta, todos os seus detalhes estão disponíveis para consulta online. Sua equipe envolve cerca de 250 pessoas de 17 nacionalidades diferentes.
O brasileiro trabalha em uma oficina de mecânica hospitalar, com o pai. Foi observando a dinâmica dos aparelhos que chegavam para conserto na sua casa que percebeu que o problema da medicina nacional é, muitas vezes, a falta de peças, já que estas são, em sua maioria, importadas.
“A gente se limitou a fazer ele 100% com materiais encontrados em [lojas como] Leroy Merlin, lojas de ferragem, mecânicas, e o mínimo possível de partes em impressora 3D”, explica.
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Nenhuma peça do projeto foi importada; todas foram desenvolvidas pela equipe. A válvula pneumática foi criada por colaboradores na Argentina; o sistema de exaustão e válvula transdutora foi parceria entre um americano e um holandês; um indiano auxiliou na estrutura do chassi.
Veio do uruguai a solução para usar peças de automóvel, por exemplo o motor do limpador de parabrisa, para o controle inspiratório e respiratório. A fonte de alimentação é a de um computador comum e a estrutura também usa canos de PVC e peças de acrílico.
Após consultar 12 fornecedores no estado de São Paulo, Méndez descobriu que não havia pronta entrega de ambu —o equipamento que expande e contrai com o ar que vai ao pulmão do paciente, como os usados em ambulâncias para auxiliar na respiração.
“Vimos que seria um gargalo”. Tampouco poderiam pressupor a disponibilidade de ar comprimido. Resolveu o problema fabricando um fole e usando uma câmara de pneu de carro.
O objetivo, portanto, nunca foi criar um equipamento com telas touchscreem, como os vistos nas UTIs de hospitais de alto padrão do país.
E se você está numa cidade pequena, no interior de um estado, bem isolado, e precisa reproduzir isso, sem a estrutura de uma cidade grande, sem empresas de eletrônica? A filosofia [do projeto] é para reproduzir na África, não só aqui no Brasil”, diz.
Atualmente, segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, apenas uma em cada dez cidades do Brasil tem vagas de UTI (unidade de terapia intensiva, para onde vão os casos mais graves da Covid-19).
Uma quantidade ainda menor —apenas 8,6% dos 5.570 municípios do país— tem UTIs do SUS (Sistema Único de Saúde). No estado de São Paulo, um paciente com coronavírus pode precisar viajar 82 km para conseguir um leito.
No Brasil, a Folha revelou a falta de respiradores e de equipamentos de proteção e para combate da Covid-19 dentro de hospitais, em laboratórios e até em obras da construção civil.
“Como fazer uma produção em escala se não temos peças para produzir em escala? O problema não é de engenharia é de escala”, explica o brasileiro sobre a importância de ter um equipamento 100% produzido pela equipe, sem a compra de peças prontas.
Um ponto de atenção do projeto, claro, foi criar um aparelho que fosse seguro ao paciente.
Única grande fornecedora de filtro N95, o necessário para impedir a disseminação do novo vírus, a 3M tem sede nos Estados Unidos. O presidente Donald Trump quer impedir que a empresa exporte máscaras e filtros, como os usados em ventiladores, para outros países.
Para evitar que o ar infectado expirado pelo paciente seja liberado na atmosfera, a equipe desenvolveu um sistema com água sanitária na qual o vírus fica retido no líquido.
O projeto também dispões de válvulas para ajuste da frequência respiratória e de limitação da pressão (como a Peep), que não só controlam quanto ar é inspirado e expirado pelo paciente, mas também impedem lesões mais graves no pulmão.
As partes foram desenhadas inteiramente pela equipe (os projetos estão disponíveis na internet), usando látex ou silicone de artesanato, itens encontrados a partir de R$ 30 por quilo em lojas especializadas —quantidade suficiente para produzir cerca de dez válvulas, segundo Méndez.
Uma das inspirações do projeto foram os ventiladores pulmonares da década de 1950, quando não havia tecnologia avançada de computação para sensores precisos e telas de controle complexas.
A analogia que o desenvolvedor faz para o uso primordial do equipamento é com um médico de guerra que precisa operar um paciente em um campo de batalha. Não à toa a versão final do equipamento chama-se Spartan (uma alusão a Esparta, cidade grega conhecida pelo podeíro militar na Grécia Antiga).
É possível, no entanto, acoplar sistemas eletrônicos mais complexos, como um Arduíno (empresa de desenvolvimento de software aberto que apoia o projeto), caso haja disponibilidade.
Méndez afirma que, se produzido com base em acrílico (como o protótipo atual), um equipamento custa em torno de R$ 500, mais a mão de obra. O preço seria quatro vezes maior, segundo ele, para acrescentar itens de eletrônica como sensores e monitores.
“A água teve que bater na bunca para a gente perceber que pobre nao tem acesso a esses equipamentos caros. Não tinha eletrônica [no século passado], por que a gente quer resolver com eletrônica? É mais fácil para quem é rico, mas não para quem é pobre”, diz.
Ele defende que a pandemia de coronavírus aponta para uma mudança de paradigma no sistema econômico capitalista.
Por ser criado de forma aberta, com todos os seus detalhes liberados na internet, Méndez pede que qualquer profissional ou pesquisador da área entre em contato com a equipe, analise o projeto e aponte erros ou falhas.
No futuro, sonha construir uma estrutura inteira de UTI de maneira colaborativa.
“A única forma de dar oportunidade para o um cara isolado de uma cidade do interior fabricar isso e salvar uma vida é se o projeto for open source, sem lucro por trás”, declara.