domingo, 3 de maio de 2020

Um vírus derruba os gigantes, editorial OESP

Estimada em US$ 87 trilhões em 2019, a economia global está sendo derrubada por seres microscópicos, num desastre pior do que a crise de 2008-2009

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
03 de maio de 2020 | 03h00
Um gigante de tamanho difícil de imaginar, a economia global, estimada em US$ 87 trilhões no ano passado, está sendo derrubado por seres microscópicos, os coronavírus, num desastre muito pior e mais doloroso que a crise financeira de 2008-2009. A extensão dos danos começa a aparecer nos maiores mercados, o americano, o chinês e o europeu, com os primeiros dados trimestrais de consumo, produção, investimento e emprego. O drama dessas potências afeta o Brasil pela redução do comércio internacional, já enfraquecido em 2019. Na melhor hipótese, as vendas de alimentos, componente mais importante das exportações brasileiras, serão menos prejudicadas que as de outros produtos.
Nos Estados Unidos, maior potência econômica, o Produto Interno Bruto (PIB) encolheu à taxa anual de 4,8% no primeiro trimestre, segundo a primeira estimativa. Fechadas em casa, famílias cortaram os gastos de consumo, empresas diminuíram investimentos e as exportações caíram. Diante da emergência, governo central e governos locais aumentaram suas despesas, mas em proporção insuficiente para equilibrar o conjunto.
Em seis semanas 30,3 milhões de pessoas pediram auxílio-desemprego nos Estados Unidos. Antes da nova crise, a desocupação abrangia cerca de 3,4% da força de trabalho, como efeito de 113 meses consecutivos de criação de empregos. Ainda é difícil determinar a nova taxa de desemprego, porque pessoas desocupadas apenas temporariamente foram autorizadas a buscar o auxílio, mas a piora do quadro é inegável. No quarto trimestre do ano passado o PIB americano cresceu ao ritmo anual de 3,5%, na última etapa de um longo período de prosperidade, iniciado no primeiro mandato do presidente Barack Obama.
A segunda maior economia, a chinesa, sofreu no primeiro trimestre de 2020 a primeira contração em quase 30 anos, desde o início da publicação dos dados trimestrais do PIB, em 1992. Mesmo abalada, a economia da China ainda pode ter um desempenho invejável depois do impacto da covid-19. O Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta para a China 1,2% de expansão econômica neste ano, enquanto estima contração de 3% para o produto global e de 6,1% para as economias avançadas. Mas, por enquanto, o balanço inicial da crise mostra grandes estragos.
No primeiro trimestre o PIB chinês foi 6,8% menor que o do período janeiro-março de 2019, segundo a Agência Nacional de Estatísticas. Em relação aos três meses finais do ano passado a queda foi de 9,8%. De acordo com o governo, o desempenho deve ser muito melhor a partir do segundo trimestre, mas economistas apontam muita insegurança quanto à reação do consumo familiar.
Com a reorganização estratégica iniciada há alguns anos, o consumo ganhou importância relativa no papel de motor da economia, tomando parte do espaço tradicionalmente ocupado pelo investimento em capacidade produtiva.
Maior parceira comercial do Brasil, a China é o destino principal das exportações do agronegócio brasileiro. A demanda chinesa tem grande importância para o superávit comercial e para a segurança das contas externas do Brasil. Os Estados Unidos, segundo maior importador de mercadorias brasileiras, têm relevância especial para as vendas de manufaturados. O terceiro maior parceiro individual, a Argentina, já estava em crise em 2019 e assim deve continuar neste ano.
Na zona do euro, também muito relevante para o comércio brasileiro, o PIB do primeiro trimestre foi 3,3% menor que o de um ano antes. Em relação aos três meses finais de 2019 a queda foi de 3,8%, a maior, nesse tipo de comparação, na série iniciada em 1995.
Segundo o FMI, o produto da zona do euro deve diminuir 7,5% neste ano. Para os Estados Unidos está projetada retração de 5,9%. Para o Brasil os cálculos indicam um PIB 5,3% menor que o de 2019. Mas o repique esperado para a economia brasileira, de 2,9% em 2021, é bem menor que o previsto para os países avançados (4,5%) e emergentes (6,6%). Falta resolver, no Brasil, um problema bem anterior à covid-19, o baixo potencial de crescimento.

sábado, 2 de maio de 2020

Se não fosse por Ruy Fausto, teríamos sido todos mais autoritários, FSP


Celso Rocha de Barros
Ruy Fausto era um sujeito que entendia de Karl Marx (1818-1883), entendia mesmo, de verdade; passou décadas lendo a obra de Marx, colocando-a em atrito produtivo com a de outros bons autores, procurando libertá-la da carga ideológica do autoritarismo soviético, procurando descobrir saídas para os impasses da esquerda.
Levou a sério a crise do marxismo, a denúncia do totalitarismo, e soube aprender com teóricos da democracia como Hannah Arendt (1906-1975) e Claude Lefort (1924-2010). Entendia de Marx o suficiente para saber quando era necessário sair de Marx e quando era necessário voltar.
Sua tolerância com o autoritarismo de esquerda era muito baixa. Foi crítico do chavismo e do castrismo e brigou com muita gente na esquerda brasileira por isso. Se tivesse deixado esses temas de lado, talvez sua influência política tivesse sido maior. Mas não era esse o tipo de influência que buscava.
Ruy Fausto, autor do livro 'Caminhos da Esquerda', em debate no teatro da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em SP
Ruy Fausto, autor do livro 'Caminhos da Esquerda', em debate no teatro da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em SP - Zé Carlos Barretta/Folhapress
Lançava suas ideias no espaço público e buscava adensar redes de intelectuais em torno das revistas que fundava. Uma delas tinha o melhor nome de revista política que eu já vi: Fevereiro. Há uma revista marxista chamada Outubro, referência à data em que os bolcheviques tomaram o poder na Rússia. Fevereiro de 1917 foi a revolução russa anterior, de caráter democrático, conduzida por uma imensa variedade de grupos socialistas e não socialistas.
Ruy foi eleitor do PT por muitos anos, mas denunciou com indignação os escândalos de corrupção da era petista. Se fosse só moralismo, seria legítimo, mas era mais: seu projeto socialista exigia a defesa do público, do democraticamente constituído e o combate à sua captura por interesses particulares.
No lançamento de seu livro “Caminhos da Esquerda”, em 2017, debatemos, em São Paulo, Ruy, Samuel Pessôa, Marcelo Coelho e eu. Em um dado momento, comentávamos que o PT tomou diversas medidas contra a corrupção, mas também se envolveu em escândalos terríveis; mais ou menos o que Moro disse outro dia. Ruy comentava: agora o PT está fazendo “a autocrítica errada”, reclamando mais dos órgãos de combate à corrupção que fortaleceu do que dos escândalos em que se meteu.
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É legítimo ter uma opinião mais favorável sobre os governos petistas, mas é difícil não lamentar que mais gente não tenha se agarrado a seus princípios como fez Ruy.
Apesar das críticas à esquerda, Ruy Fausto morreu socialista, morreu tentando conciliar o patrimônio de esperança dos socialistas com a dura lucidez diante dos fracassos do passado. Sabia da dificuldade de conciliar esse propósito com a complexidade das sociedades modernas. Não pretendeu ter solucionado o problema, mas nunca lhe ocorreu desistir. Se o projeto era difícil, se a democracia o fizesse andar ainda mais devagar, paciência.
Como meus companheiros de geração, apanhei muito com seus livros sobre Marx, porque dialética não é para qualquer um, muito menos para mim. Mas todos aprendemos muito com eles. E teríamos sido todos mais autoritários, menos comprometidos com valores, e menos dedicados ao estudo crítico da experiência bolchevique se não fosse por Ruy Fausto, filósofo brasileiro brilhante, professor da Universidade de Paris 8, ex-trotskista, gente finíssima, que morreu em Paris, enquanto tocava piano.

RAIO-X

Nascido em São Paulo, em 1935, era irmão do historiador e cientista político Boris Fausto. Professor emérito da USP, onde se graduou em direito e em filosofia, fez doutorado em filosofia na Universidade Paris 1. Vivia há mais de três décadas na capital francesa
Principais obras de Ruy Fausto
  • Dialética Marxista, Dialética Hegeliana: A Produção Capitalista como Circulação Simples 
  • (Paz e Terra, 1997)
  • Marx: Lógica e Política  (Editora 34, 2002)
  • A Esquerda Difícil  (Perspectiva, 2007)
  • Outro Dia: Intervenções, Entrevistas, Outros Tempos  (Perspectiva, 2009)
  • Caminhos da Esquerda  (Companhia das Letras, 2017)
  • O Ciclo do Totalitarismo  (Perspectiva, 2019)
Celso Rocha de Barros
Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e colunista da Folha

Vírus divide a Europa, Gilles Lapouge, O Estado de S.Paulo

Gilles Lapouge, O Estado de S.Paulo
02 de maio de 2020 | 09h53

É uma ideia reconfortante: diante das grandes tormentas das guerras ou crises sanitárias, o fosso que separa os ricos dos pobres, as “cigarras” das “formigas”, os desmiolados dos prudentes, desaparece. “A união sagrada” tem efeitos milagrosos. Cada um ama cada um, as lebres esperam as tartarugas, e os lobos acompanham os cordeiros.
Sim. É uma ideia incrível. Seu defeito é que a ideia é falsa, a ponto de poder ser substituída por seu contrário: no caso de uma catástrofe transnacional, os musculosos se tornam cada vez mais fortes e os magros emagrecem um pouco mais depressa. A União Europeia é testemunha disso. Já é possível distinguir duas Europas, a do “Clube Med” (Itália, Grécia, Espanha, Portugal) e a dos países sérios. À frente, a Alemanha. Os ataques da covid-19, longe de reduzir as diferenças entre estas duas Europas, as aprofunda. Se é razoável dizer que o vírus é um desastre para a França ou para a Alemanha, que termo desconhecido poderíamos aplicar aos países do norte?
A economia europeia baseia-se em grande parte no turismo, cuja torneira foi fechada. O endividamento é abissal, em uma época em que estes países estão condenados a tomar emprestado para sobreviver. A Espanha toma empréstimos a um juro quatro vezes maior desde o início da crise sanitária. Portugal deverá multiplicá-lo por três e a Itália por dois. O Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) de Paris fez o cálculo: se a Itália tomar emprestados ¤ 250 bilhões ao ano, um aumento de um ponto do seu juro representará um custo de ¤ 2,5 bilhões a mais, ou seja, um terço dos gastos anuais com a saúde. 
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Zona do Euro - União Europeia
Zona do Euro Foto: Yann Schreiber/AFP
Evidentemente, qualquer cidadão é capaz de constatar isso: menos somos ricos, mais pagamos. Os pobres conhecem esta lei de ferro. O Banco Mundial e a União Europeia também a conhecem.
A Itália, que mal saiu de uma crise política e sangrou quase até a morte por causa do vírus, enfrenta tempos muito difíceis. A Grécia, depois de dez anos de uma austeridade terrível, mal pôs a cabeça fora da água, e o coronavírus já a prolonga. Portugal se encontra na mesma situação: há dez anos o país havia chegado ao fundo do abismo. Conseguiu reerguer-se graças ao turismo e aos aposentados ingleses. E agora está em situação difícil novamente.
A Espanha acumula as desgraças: 24.824 mortes, afirmam dados oficiais. “Muito mais, os senhores mentem, a sua gestão tem sido catastrófica”, disse a oposição. Máscaras com defeito, a falta de milhares de testes, escamoteação na questão do confinamento (em suma, igual à França, só que pior).
O governo de Pedro Sánchez está sendo rejeitado por 66% dos espanhóis. Mas ele se mantém: ninguém da oposição tem estatura suficiente. Diante do bloco dos europeus do sul, está o bloco dos países do norte, “dos sovinas”. A Alemanha em primeiro lugar, que está se segurando, e cuja gestão da crise sanitária, exemplar, é aplaudida até pela oposição. E os outros países do norte, acostumados à prosperidade, às economias e à disciplina, países modelos. “O estranho”, ou “não lógico”, é que a maior parte destes países ricos e rigorosos apresenta números de infectados e de óbitos muito menores do que os países do sul. A senhora Angela Merkel, que há um ano estava cercada de ciumeiras até mesmo no interior do seu partido, a CDU, de bocas escancaradas e dentes afiados, de repente volta ao centro do jogo: em épocas difíceis, há momentos em que vale mais jogar para defender o “rei” com uma “torre” calma e sólida, e não uns “peões”.
E a União Europeia? Emmanuel Macron continua a desejar uma Europa unida, e segue no mesmo passo, mas até agora é o único a acariciar esta ideia. E o que se pode fazer com um exército de um soldado só? Várias personalidades pediram um “Plano Marshall” em favor dos países do sul. Vale lembrar que o que foi o plano americano Marshall. A Europa, após a guerra de 1939-45, estava reduzida a um monte de escombros. Ela foi salva por este plano e pôde reconstruir suas casas e suas máquinas, ingressando em um período de rápido crescimento, denominado “os 30 anos gloriosos”.
O primeiro-ministro da Espanha pediu a criação de uma espécie de Plano Marshall. O comissário das Finanças europeu, o excelente Thierry Breton, um francês, teve a mesma ideia. Por enquanto, reina o silêncio. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA