Ah, meu caro amigo, tanta coisa mudou em um ano!
No sábado (2) completou um ano que você nos deixou. Fazendo com que nossos aplausos, por um instante, silenciassem. Com que seu grande navio, o histórico Teatro Sesc Anchieta, pedisse por um minuto de silêncio, recobrasse o fôlego e partisse para mares insabidos, sem seu condutor oficial à frente. Assim, ao partir, fez com que nossas mentes indagassem: e agora?
Agora, o mundo está como nunca esteve. Recluso. Silencioso. Temeroso. Teme a sua saúde e a de seus habitantes. Teme mais partidas, como as de milhares de pessoas que, com falta de ar, padeceram por essa enfermidade que assola nosso mundo.
Fomos acometidos por um novo vírus e, por isso, estamos em isolamento social. Ah, meu caro amigo, em um ano, tanta coisa mudou! Tantos pares também nos deixaram. Rubem Fonseca foi um deles. Naomi Munakata, a brilhante regente de vozes, partiu em função dessa nova doença.
Hoje, estamos impossibilitados de irmos ao teatro, privados de nos emocionar lado a lado com alguém que jamais vimos, mas partilhamos daquele instante, daquele momento capaz de confirmar que somos apenas um.
No momento, a cultura é feita nas casas, nas salas de estar ou nos quintais. Oferecida e mediada pelos aparatos tecnológicos. Que permitem trocarmos, nos olharmos, continuarmos, de alguma forma, a grande aventura da vida. No entanto, é preciso confessar: é maravilhoso, mas ainda não é suficiente! A presença é vital!
Não há como não reconhecer que a cultura é brava ao se reinventar. A cultura, justo ela que muitas vezes se viu relegada a um papel menor dentro de algumas noções equivocadas. Você e eu sabemos, não podemos viver sem ela. Nem devemos! No entanto, nesse momento, precisamos todos fortalecê-la. Assim como fortalecer aqueles que a criam, que a produzem, que fazem o cenário se manter em pé, o som sair no volume exato, as luzes acenderem e apagarem no instante ensaiado, que fazem os espectadores se sentirem bem recebidos, acolhidos e convidados a vivenciarem grandes acontecimentos.
São esses que fazem a cultura do espetáculo, das artes cênicas, da música, do circo, do cinema, da literatura serem possíveis. São esses, que em um momento tão delicado como o que nós passamos, precisam de um olhar sério por parte das instituições democráticas, das iniciativas privadas, da sociedade.
De tudo o que essa pandemia destrói, precisamos saber reconstruir, seja nosso aparato civilizatório, político ou poético! Devemos, mais do que nunca, saber dar o devido valor. Buscar saídas, criarmos novas formas de incentivos, engendrarmos novas mídias, novos meios.
Nesse exato momento, enquanto buscamos sobreviver, buscamos, também, reaprender a olhar o mundo, a olhar o outro, vislumbrar o que vem pela frente.
Você, que sempre viu na arte sua força transformadora, há de concordar comigo: há mais sensível atividade humana capaz de nos oferecer uma miríade de vozes que anunciam outras realidades, distantes de nós no tempo e no espaço, do que a arte? Não há na cultura incomensurável potência que nos alumie a reinventar um mundo novo? Esse, que ainda não conhecemos, mas que queremos melhor? Não seriam as inúmeras forças expressivas que nos inspirariam a conviver em uma sociedade plural, em sua diversidade magnífica, de forma digna e amorosa?
Você, que nos legou as lições da liberdade da experimentação, da inteireza do método, da vitalidade do repertório, nos diria que é na arte que respiramos para além da previsibilidade da vida.
Você, que sempre nos disse que o teatro é ar e é respiração, estava certo. E hoje, meu caro Antunes, o que mais buscamos é poder respirar.
Evoé, meu caro amigo!
Evoé, meu caro amigo!