domingo, 15 de dezembro de 2019

Jornalismo de mentira, FSP

'The Morning Show' faz retrato sem dó de programa matinal de notícias

Desde “Newsroom” (2012), da HBO, a TV americana não era objeto de uma crítica tão contundente quanto a vista em “The Morning Show”. Lançada em novembro pela Apple TV+, a série conquistou nesta semana um lugar entre as cinco indicadas ao Globo de Ouro de melhor drama do ano.
“The Morning Show” descreve os bastidores de um programa matinal de notícias exibido por uma grande rede de TV.  O ponto de partida é a publicação de uma reportagem no New York Times expondo um dos apresentadores da atração, Mitch Kessler (Steve Carell), como assediador de funcionárias do canal.
É o principal destaque do magérrimo pacote de lançamento do serviço de streaming da Apple. Está longe do refinamento encontrado nas boas produções, mas a sua mensagem é poderosa.
O esforço maior é mostrar que Kessler agiu como predador sexual por anos porque havia uma cultura dentro da empresa, que fazia vistas grossas às suas ações.
Para além deste tema, é muito instrutivo ver como “The Morning Show” trata da derrocada do bom jornalismo em nome do suposto desejo da audiência por notícias mais leves e de caráter humano.
Também é divertida a abordagem dos bastidores da produção. Em diferentes momentos, a série expõe o artificialismo da troca de sorrisos entre os âncoras e, mais importante, da feitura das reportagens. Minha cena preferida é a que mostra um depoimento emocionado de uma mãe, aparentemente de improviso, sendo lido por ela sem que o público saiba.
“The Morning Show” apresenta um perfil impiedoso de sua principal âncora, Alex Levy (Jennifer Aniston). Ela é uma diva intratável, cercada de assessores de relações públicas e advogados, sem qualquer contato com o mundo real. Momentos antes de receber um prêmio importante, ela é avisada pelo principal executivo da emissora: “Nós compramos esse prêmio para você”.
A antítese de Alex, igualmente caricata, é a incontrolável Bradley Jackson (Reese Witherspoon). Contratada para substituir Kessler, ela representa o “jornalismo de raiz”, em busca da verdade, que não aceita ordens de ninguém e, por isso, já foi demitida de meia dúzia de empregos.
Ainda que por linhas tortas, “The Morning Show” acerta várias vezes seus alvos. Recomendo.
Cultura do cancelamento
“A Primeira Tentação de Cristo” não difere muito de outras provocações iconoclastas, com um pé no humor nonsense, que o Porta dos Fundos vem exibindo anualmente, às vésperas do Natal, desde 2013. A novidade neste ano é o tom da reação. Entre reclamações e críticas (normais), prospera o pedido para que a Netflix cancele a exibição do programa. Isso assusta.
APCA
É visível a alegria dos contemplados com prêmios da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). É sinal do prestígio da premiação. 
Mas os escolhidos provavelmente ignoram, no caso dos prêmios aos melhores da televisão, que entre os jurados existe um profissional do SBT, o que compromete totalmente a lisura do julgamento. 
Há também, misturados entre os vários jurados com reconhecida competência, um profissional que o mercado desconhece e um empresário que gerencia sites de entretenimento. Já escrevi uma vez sobre isso, mas a direção da APCA não entende que seja um problema.
Mauricio Stycer
Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

A morte do lateral, Ruy Castro, FSP

Folha deu (6/12): "Morre Coronel, lateral ídolo do Vasco e último 'João' de Garrincha". "João", no sentido de como-é-mesmo-o-nome-dele?, era o modo com que, segundo os jornalistas da época, Garrincha se referia aos laterais esquerdos que tentavam marcá-lo. Na verdade, a história do "João" fora uma invenção do repórter Sandro Moreyra na Copa do Mundo de 1958 e adotada gostosamente por seus colegas.
Garrincha não usava e não gostava dessa expressão, que desmerecia o adversário. Sabia que, chamado de "João", seu marcador viria com tudo para cima dele --tudo para não ser mais um "João".
Coronel, lateral esquerdo do Vasco em fins dos anos 50, foi o mais folclórico dos supostos "Joões" de Garrincha. Jordan, do Flamengo (pronunciava-se Jordã, não Djórdan), era um lateral clássico, que jogava na bola, e Altair, do Fluminense, apesar de mirrado, abusava dos carrinhos. Coronel era duro, mas leal, e, como não existiam cartões amarelos, corria atrás de Garrincha puxando-o pela camisa. Eles o enfrentavam no Maracanã pelo menos três vezes por ano cada um, e, em seu apogeu, de 1957 a 62, Garrincha os destroçava um a um.
Às vésperas de todo Vasco x Botafogo, Coronel ouvia na rua: "E aí, vai levar mais um baile do Garrincha?". E respondia, rindo: "Vou. Mas quem vai ganhar o bicho sou eu". Queria dizer que, com ou sem baile, o Vasco derrotaria o Botafogo --o que acontecia. É que, depois de deixar Coronel para trás, Garrincha ainda tinha pela frente Bellini e Orlando, dois zagueiros de seleção brasileira e, como ele, também campeões do mundo. 
Coronel morreu na semana passada, aos 84 anos, na pequena Porto Real (RJ). Como ele, todos os dias morre um jogador que, no passado, levou anos encantando (ou irritando) multidões nos estádios. Mas são raros os que merecem obituários nos jornais. 



É como se, disputada sua última partida, eles entrassem no vestiário para morrer.