domingo, 17 de novembro de 2019

Em busca do sonho perdido, FSP Sidarta Ribeiro

Voltemos a narrar as consequências de nossos atos

Jamais foi tão grande o descompasso entre a nossa potencialidade de melhorar o mundo e o nosso fracasso em fazê-lo. Sociedade cada vez mais rica, porém mais excludente do que nunca. Amazônia, corais e manguezais ameaçados. Índios com cabeças a prêmio, trabalhadores perdendo direitos. Sinuca de bico evolutiva. Para evadir o apocalipse descontrolado do capitalismo desvairado do macaco endinheirado, convém relembrar como foi que chegamos até aqui...
No início era o sonho. Início dos mamíferos, claro, pois aves e répteis não têm a intensa e extensa experiência cinematográfica que perpassa o sono dos bichos afetuosos que começaram a evoluir há 225 milhões de anos, a partir de um tataravô com aspecto de camundongo. 
O neurocientista Sidarta Ribeiro, autor de ‘O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho’ (Companhia das Letras) - Eduardo Anizelli - 13.jul.19/Folhapress
A ativação elétrica de circuitos neuronais desconectados do mundo exterior fez emergir nos mamíferos uma capacidade nova: a simulação de estratégias comportamentais adaptativas, construídas à noite para uso no dia seguinte. Com base em ontem, como será amanhã? Um oráculo probabilístico que aumentou a flexibilidade comportamental de nossos ancestrais.
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Fósseis no Marrocos demonstram a existência de humanos anatomicamente modernos há 315 mil anos. O espantoso percurso que nos tirou das cavernas e levou à era da internet teve como alicerce cognitivo uma segunda revolução: a possibilidade de narrar os sonhos. Ao simular futuros possíveis com base nas memórias do passado, os sonhos compartilhados adquiriram inestimável valor, tornando-se a cada manhã uma fonte renovada de coesão grupal, criatividade e aconselhamento diante do mundo hostil, sob a égide da escassez. 
Durante quase todo esse tempo, os imperativos da sobrevivência humana foram iguais aos de qualquer animal no ambiente natural: matar, não morrer e procriar.
Entretanto, na transição entre pré-história e história, nos afastamos da natureza pela cultura em direção ao mundo bem mais complexo dos pequenos desejos e das divindades que os governam.
Os primeiros textos da Mesopotâmia e do Egito, há 4.500 anos, revelam uma sofisticada mente primata que considerava o sonho o principal portal de encontro com parentes já falecidos, anjos e deuses. O contato frequente com tais entidades imaginárias instalou um vigoroso processo de acúmulo cultural que nos catapultou rumo ao futuro.
Portanto, se o nosso “hardware” biológico já estava pronto há 315 mil anos, o mesmo não pode ser dito de nosso “software” cultural, que mudou lentamente durante quase toda a jornada. A maioria da população mundial continua a crer em deuses, muitas vezes ancestrais identificados com o próprio Universo (“Ó Pai!”). Os deuses do cristianismo, do islamismo ou do hinduísmo têm a sua origem na Idade do Bronze. 
No Brasil, 86% se dizem cristãos, mas muitos aderem a leis bíblicas mais arcaicas, anteriores aos mandamentos de Moisés (“Não matarás”). Idolatram bezerros de ouro e mitificam mitômanos...
O que está errado conosco? Talvez nossa dificuldade de imaginar o futuro se deva ao abandono do costume de sonhá-lo. Foi o contato introspectivo com o mundo onírico que nos trouxe até esse momento tão perigoso e maravilhoso da aventura humana. É urgente voltarmos a sonhar e narrar as consequências de nossos atos. Ainda há tempo para reaprendermos com os sonhadores ameríndios que alertam sobre a iminente “queda do céu”.
Mas retornar ao sonho não basta, é urgente uma atualização cultural. Se quisermos sobreviver a nós mesmos, precisamos abandonar os hábitos paleolíticos de competir em vez de colaborar, acumular em vez de distribuir. Já passou da hora de um upgrade em nosso “software” que inclua a ciência produzida nos últimos 500 anos, responsável, entre outras coisas, pela redescoberta de que a Terra é redonda —meros 1.700 anos depois de Eratóstenes calcular a sua circunferência!
Se uma atualização abrupta para o século 21 for expectativa demais, torçamos ao menos para a instalação sem “bugs” de certas ideias desenvolvidas há 2.000 anos, quando um homem pobre e periférico teria proclamado que é preciso amar aos outros como a si mesmo.
Sidarta Ribeiro
Professor titular e vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN, doutor pela Universidade Rockefeller (EUA), pós-doutor pela Universidade Duke (EUA) e autor, entre outros, de 'O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho' (Companhia das Letras)
TENDÊNCIAS / DEBATES
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Ala do STF quer usar caso Coaf para impor limites a procuradores, FSP

Ordem de Toffoli instiga ministros que cobram relação mais rigorosa com investigadores

Flávio Bolsonaro se tornou coadjuvante. O julgamento do STF sobre o uso de relatórios do Coaf em investigações, na próxima quarta (20), serviria principalmente para testar a blindagem de que o filho do presidente dispõe no tribunal. Agora, o caso deve se tornar um novo capítulo da guerra cada vez mais tensa entre a corte e o Ministério Público.
As críticas feitas por procuradores à notícia de que Dias Toffoli havia requisitado dados bancários de quase 600 mil pessoas causaram mal-estar no tribunal. Magistrados passaram a defender que o caso seja explorado para estabelecer novos limites e inaugurar uma relação mais rigorosa com o Ministério Público.
O presidente do Supremo lançou um ataque desproporcional ao ordenar o envio do material a seu gabinete. Queria identificar abusos no compartilhamento de informações sigilosas entre o Coaf e a procuradoria, mas acabou deixando transparecer os excessos do próprio STF.
O estresse provocado pelo episódio levou as desavenças entre procuradores e ministros a um novo patamar, como apontou a coluna Painel. Alguns integrantes do Supremo afirmam, agora, que o tribunal deve aproveitar o julgamento do caso para antecipar recados que vêm sendo gestados há meses na corte.
Uma resposta seria o estabelecimento de uma linha severa para disciplinar o compartilhamento de informações com o Ministério Público. Procuradores dizem que essa medida prejudicaria as investigações, mas parte dos ministros do STF está convencida de que os relatórios do Coaf eram feitos sob encomenda, para burlar o sigilo bancário.
A irritação no tribunal também pode turbinar os anseios de uma ala da corte que pretende reprimir eventuais abusos praticados por órgãos de investigação. O STF, segundo um ministro, “só vai sossegar” quando todos os excessos forem punidos.
Nessa disputa, os limites aos poderes de cada instituição vão ficando para trás. Os próximos capítulos podem marcar a entrada dos dois lados num terreno de destruição mútua.
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).