Voltemos a narrar as consequências de nossos atos
Jamais foi tão grande o descompasso entre a nossa potencialidade de melhorar o mundo e o nosso fracasso em fazê-lo. Sociedade cada vez mais rica, porém mais excludente do que nunca. Amazônia, corais e manguezais ameaçados. Índios com cabeças a prêmio, trabalhadores perdendo direitos. Sinuca de bico evolutiva. Para evadir o apocalipse descontrolado do capitalismo desvairado do macaco endinheirado, convém relembrar como foi que chegamos até aqui...
No início era o sonho. Início dos mamíferos, claro, pois aves e répteis não têm a intensa e extensa experiência cinematográfica que perpassa o sono dos bichos afetuosos que começaram a evoluir há 225 milhões de anos, a partir de um tataravô com aspecto de camundongo.
A ativação elétrica de circuitos neuronais desconectados do mundo exterior fez emergir nos mamíferos uma capacidade nova: a simulação de estratégias comportamentais adaptativas, construídas à noite para uso no dia seguinte. Com base em ontem, como será amanhã? Um oráculo probabilístico que aumentou a flexibilidade comportamental de nossos ancestrais.
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Fósseis no Marrocos demonstram a existência de humanos anatomicamente modernos há 315 mil anos. O espantoso percurso que nos tirou das cavernas e levou à era da internet teve como alicerce cognitivo uma segunda revolução: a possibilidade de narrar os sonhos. Ao simular futuros possíveis com base nas memórias do passado, os sonhos compartilhados adquiriram inestimável valor, tornando-se a cada manhã uma fonte renovada de coesão grupal, criatividade e aconselhamento diante do mundo hostil, sob a égide da escassez.
Durante quase todo esse tempo, os imperativos da sobrevivência humana foram iguais aos de qualquer animal no ambiente natural: matar, não morrer e procriar.
Entretanto, na transição entre pré-história e história, nos afastamos da natureza pela cultura em direção ao mundo bem mais complexo dos pequenos desejos e das divindades que os governam.
Os primeiros textos da Mesopotâmia e do Egito, há 4.500 anos, revelam uma sofisticada mente primata que considerava o sonho o principal portal de encontro com parentes já falecidos, anjos e deuses. O contato frequente com tais entidades imaginárias instalou um vigoroso processo de acúmulo cultural que nos catapultou rumo ao futuro.
Portanto, se o nosso “hardware” biológico já estava pronto há 315 mil anos, o mesmo não pode ser dito de nosso “software” cultural, que mudou lentamente durante quase toda a jornada. A maioria da população mundial continua a crer em deuses, muitas vezes ancestrais identificados com o próprio Universo (“Ó Pai!”). Os deuses do cristianismo, do islamismo ou do hinduísmo têm a sua origem na Idade do Bronze.
No Brasil, 86% se dizem cristãos, mas muitos aderem a leis bíblicas mais arcaicas, anteriores aos mandamentos de Moisés (“Não matarás”). Idolatram bezerros de ouro e mitificam mitômanos...
No Brasil, 86% se dizem cristãos, mas muitos aderem a leis bíblicas mais arcaicas, anteriores aos mandamentos de Moisés (“Não matarás”). Idolatram bezerros de ouro e mitificam mitômanos...
O que está errado conosco? Talvez nossa dificuldade de imaginar o futuro se deva ao abandono do costume de sonhá-lo. Foi o contato introspectivo com o mundo onírico que nos trouxe até esse momento tão perigoso e maravilhoso da aventura humana. É urgente voltarmos a sonhar e narrar as consequências de nossos atos. Ainda há tempo para reaprendermos com os sonhadores ameríndios que alertam sobre a iminente “queda do céu”.
Mas retornar ao sonho não basta, é urgente uma atualização cultural. Se quisermos sobreviver a nós mesmos, precisamos abandonar os hábitos paleolíticos de competir em vez de colaborar, acumular em vez de distribuir. Já passou da hora de um upgrade em nosso “software” que inclua a ciência produzida nos últimos 500 anos, responsável, entre outras coisas, pela redescoberta de que a Terra é redonda —meros 1.700 anos depois de Eratóstenes calcular a sua circunferência!
Se uma atualização abrupta para o século 21 for expectativa demais, torçamos ao menos para a instalação sem “bugs” de certas ideias desenvolvidas há 2.000 anos, quando um homem pobre e periférico teria proclamado que é preciso amar aos outros como a si mesmo.
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