segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Clássicos como 'Reinações de Narizinho' estão livremente acessíveis, FSP

Dia 1º de janeiro não é apenas dia de celebrar a virada de ano. É também o dia em que as criações artísticas e intelectuais são promovidas ao domínio público.
Esse é um momento importante, porque as obras deixam de ser exclusivas dos seus titulares e passam a ser de livre acesso e uso por qualquer pessoa. No Brasil, a proteção pelo direito autoral dura 70 anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano seguinte à morte do autor.
Em 2019, o time de obras que entraram em domínio público é peso-pesado. No Brasil, ninguém mais, ninguém menos do que Monteiro Lobato —morto em 1948— teve sua obra inteira promovida ao domínio público. 
 
Clássicos da literatura brasileira como "Reinações de Narizinho", "Caçadas de Pedrinho", "A Chave do Tamanho" e "Urupês" estão agora livremente acessíveis.
Quando uma obra cai em domínio público, isso significa que ela pode ter livre uso por qualquer pessoa, sem a necessidade de solicitar autorização. A obra pode ser editada, publicada na internet, adaptada para o cinema ou televisão, traduzida, transformada em peça teatral e assim por diante. 
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O escritor brasileiro José Bento Monteiro Lobato, morto em 1948 - Arquivo Pessoal
Faz sentido que seja assim. O próprio Monteiro Lobato bebeu sofregamente na fonte do domínio público para realizar sua obra. "Os Doze Trabalhos e Hércules" e "O Minotauro" são alguns grandes exemplos. 
Nada mais justo que, agora, outros escritores e criadores possam beber na fonte do seu trabalho. Vale torcer para que haja uma renascença da sua obra, que agora pode ser não só reeditada mas também reinventada.
Mais do que isso, 2019 é importante porque marca o fim da "moratória" do domínio público que aconteceu nos Estados Unidos. Explico. Em 1998, os EUA tomaram uma decisão bizarra de aumentar o prazo de proteção do direito autoral em 20 anos, expandindo a proteção para 95 anos. 
Essa controversa decisão foi tomada para proteger Mickey Mouse, cuja versão mais antiga aparece no desenho animado "Steamboat Willie", que cairia em domínio público em 2004. Em razão disso, um forte lobby fez com que o Congresso dos EUA ampliasse a proteção por mais 20 anos.
Só que, ao impedir que Mickey fosse promovido ao domínio público, essa mudança preveniu também que um amplo conjunto de obras seguisse o mesmo caminho. Em outras palavras, a humanidade teve de esperar por 20 anos para que os poemas de Robert Frost ou obras de F. Scott Fitzgerald finalmente voltassem a se aproximar do domínio público.
Pois bem, o momento chegou, e a partir de 2019 começam a entrar em domínio público criações essenciais. Na safra deste ano, temos "Os Dez Mandamentos", de Cecil B. DeMille, os livros "Assassinato no Campo de Golfe", de Agatha Christie, e "Mrs Dalloway", de Virginia Woolf. Ou ainda as "Sonatas para Violino 1 e 2", de Béla Bartók.
Em 1º de janeiro de 2020, entra em domínio público "Rhapsody in Blue", de George Gershwin, música que se tornou um hino universal da cidade de Nova York.
Em outras palavras, todo início de ano é tempo de dizer não só "feliz ano novo" mas também "feliz domínio público". É esse instituto que permite que o legado de uma geração seja transmitido para outra.
Reader
Já era Achar que o Mickey nunca mais cairia em domínio público
Já é Mickey entrando em domínio público em 2024
Já vem 1984", de George Orwell, no domínio público em 2021


Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

OPINIÃO HENRY BUGALHO O avesso da verdade, FSP

Henry Bugalho
"Até agora, todos os ditadores tiveram de trabalhar duro para suprimir a verdade. Nós, por meio de nossas ações, estamos dizendo que isto não é mais necessário (...) decidimos livremente que queremos viver num mundo pós-verdade". Steve Tesich, dramaturgo sérvio, 1992.

A verdade está perdendo importância na compreensão do mundo. Esse é um fenômeno de forte conteúdo político que busca impor uma narrativa que prescinde ou distorce os fatos.

Hoje, muitos youtubers direitistas veiculam uma mensagem padronizada: nas últimas décadas, estava em curso a implantação do comunismo no Brasil. Nessa teoria conspiratória, o filósofo Antonio Gramsci seria o pilar de um movimento global para destruir o capitalismo a partir das instituições educativas, políticas e culturais. Uma revolução secreta para desintegrar nossos valores tradicionais.

Nessa guerra psicológica, a agressividade de vários influenciadores não é apenas questão de estilo. É funcional, mesmo que muitos deles a adotem por imitação ou intuitivamente. Deve-se confundir o oponente, desacreditá-lo, abalar o seu moral.

A estratégia é a construção de uma narrativa pós-verdade, alheia ao conhecimento consolidado. Afinal, todos navegamos pelo mundo por meio de nossas histórias. Para aceitarmos dada interpretação da realidade, antes de tudo ela precisa fazer sentido. Uma história mentirosa coerente convence mais que uma verdade incoerente.

Esse esforço de reinvenção da interpretação da realidade está em curso. Todos os dias somos bombardeados por afirmações de ideólogos apresentando uma versão revisitada do passado e uma nova visão para o presente.

Em grande medida, as falas revisionistas de Bolsonaro, negando fatos sobre a ditadura militar ou alardeando uma "ameaça comunista", têm origem em Olavo de Carvalho, um dos responsáveis por importar e reembalar teorias conspiratórias norte-americanas.

Originalmente vinculado a seitas esotéricas e tariqas islâmicas, ele foi consolidando, em círculos marginais sem nenhum reconhecimento acadêmico, uma reputação de filósofo conservador, negando o legado do Iluminismo, da ciência moderna e dos valores democráticos decorrentes da Revolução Francesa.

Pouco importou que seu autodidatismo e falta de critério o levassem, por exemplo, a incitar o temor de um movimento global pela legalização da pedofilia. Esse mundo obscuro foi relevante na eleição de um presidente.

Neste instante, uma guerra ocorre no ambiente virtual. De um lado, arautos da pós-verdade, alguns ocuparão cargos políticos ou ministérios. De outro, cientistas, pesquisadores, professores, historiadores e filósofos esforçando-se para preservar uma compreensão mais criteriosa da realidade.

Confrontamos agora o avesso da verdade. Este é o instante no qual profissionais que trabalham com o saber devem estar dispostos a defender o conhecimento contra as investidas do obscurantismo, e no qual agentes políticos terão de evitar a corrosão das estruturas democráticas por figuras autoritárias que habitam um mundo de ilusões conspiratórias, onde comunistas espreitam a cada esquina.
Henry Bugalho
Formado em filosofia, autor de "O Rei dos Judeus" e "O Personagem"; youtuber de temas filosóficos e contemporâneos

    Janela de oportunidade , Tasso Jereissati FSP


    O eleitor brasileiro deu um claro recado de que não suporta mais viver sob o jugo de um Estado dirigista, provedor de privilégios para uns e de privações para outros. Clama por uma política de simplificação tributária, de controle dos gastos públicos e combate permanente à hipertrofia do Estado que levou à bola de neve da estagnação econômica.

    No seu dia a dia, o cidadão pode até não saber formular com clareza sua demanda, mas, ao votar na proposta mais distante do establishment político, deixou patente que não suporta mais conviver com a falta de atendimento à saúde, à educação, com o transporte público ineficiente, sem segurança e, principalmente, com os escândalos de corrupção que tomaram conta da cena política.

    Para fazer frente a tantos e urgentes desafios, o mundo político não pode fazer de conta que essa mensagem foi dirigida apenas ao Executivo. Trata-se de um recado também ao Legislativo e ao Judiciário.

    O mesmo eleitor que votou para presidente votou também, com o mesmo sentimento, para os seus representantes no Congresso, de quem se esperam demonstrações de distanciamento do jogo de toma lá dá cá, que se tornou quase um padrão nas relações com o Executivo.

    As grandes reformas estruturantes, da Previdência, fiscal, e trabalhista, assim como tantas outras de não menor importância, são pautas que exigem atitude republicana de deputados e senadores.

    Combater o patrimonialismo e o corporativismo, enfrentar a ferida absurda da desigualdade social, ao mesmo tempo criando um ambiente democrático favorável à livre iniciativa e aos negócios, com segurança jurídica, são exigências morais que não podem estar condicionados a jogos de interesses paroquiais. Sem as reformas, ninguém conseguirá governar, seja o presidente, sejam os governadores ou os prefeitos.

    Para conseguir obter consenso na reforma da Previdência, a mãe de todas as reformas, o governo terá que lidar com a maior fragmentação partidária da história do Parlamento. Somente no Senado, foram 15 os partidos que obtiveram assentos. Mesmo considerando fusões inevitáveis, o Parlamento brasileiro apresenta-se com uma das maiores fragmentações partidárias do planeta, perdendo apenas para Papua-Nova Guiné.

    E não se espere que tamanha fragmentação seja o reflexo do contraste do nosso quebra-cabeça coletivo. Agremiações parecem não ter um autêntico lastro social que resulte no acesso dessa miríade de partidos às cadeiras do Parlamento. A governabilidade já é comprometida na origem pela ausência de uma maioria estável, exigindo tratativas e negociações com uma base tão heterogênea que se traduz em alto custo político do processo decisório.

    Em democracias consolidadas e maduras, o partido mais votado alcança em torno de 40% do total dos votos. No Senado, o mais votado, o MDB, alcançou só 14,8%. Vale lembrar que para aprovar uma PEC (proposta de emenda constitucional) são necessários 60% dos votos. Isso indica as dificuldades enormes de articulação política que terá o novo governo. Sem contar o fato de que, das 54 vagas em disputa neste ano, 46 serão ocupadas por novos nomes.

    Mas devemos ter presente que o momento que vivemos não é um soluço no tempo. É fruto de camadas de ressentimentos populares contra o que se tornou a imagem da política e dos políticos. A população, pelo voto, não apenas elegeu seus novos representantes, mas definiu uma carta de navegação para a ética política, à qual estamos todos sujeitos, independente do espectro político que ocupemos. Sendo o Legislativo o poder originário, o único em que todos os seus membros se submetem à vontade coletiva, devemos ser também os primeiros a auscultar o ânimo que brota do voto democrático e soberano da cidadania.

    Esse quadro torna ainda mais importante a eleição de um presidente do Senado capaz de se constituir de fato como o representante máximo do Parlamento frente à sociedade. Cabe a ele a interlocução com os meios de comunicação, autoridades, sindicatos, empresas e representantes diplomáticos. Estamos numa rara janela de oportunidade para desenhar um novo pacto constitucional entre os Poderes e, para tal, é necessário que o Parlamento, independente e altivo, compreenda o resultado das urnas.
    Tasso Jereissati
    Senador (PSDB-CE) desde 2015 e de 2003 a 2011; ex-governador do Ceará (1987-1991 e 1995-2002)