sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Área da Renca, entre Amapá e Pará, tem trauma de projetos grandiosos, FSP



Há quatro meses, cerca de 500 funcionários indiretos foram dispensados da Jari Celulose, a maior empresa da região. Concluída em 2014, a usina hidrelétrica Santo Antonio do Jari, chegou a empregar 2.600 trabalhadores, mas hoje funciona com 30 pessoas e é acusada de ter deixado ribeirinhos sem água e luz.
Em agosto, o governo Temer anunciou a extinção da Renca (Reserva Nacional do Cobre Associados) –o presidente adiou por 120 dias a medida, que também é contestada na Justiça, com o intuito de abrir a região para investimentos privados de mineração. A notícia pegou de surpresa Laranjal do Jari, maior cidade de uma região traumatizada por grandes empreendimentos.
"Laranjal do Jari foi construída sobre palafitas com a criação da Jari Celulose", diz à Folha o prefeito Márcio Serrão (PRB). "Com esse problema que a empresa está passando, existe um desemprego muito grande que vem afetando todo o município: o taxista, o catraieiro [barqueiro], o dono de loja."
PARA ENTENDER A RENCA
Emancipada há 30 anos, Laranjal do Jari (AP) existe por causa do Projeto Jari, um dos mais mirabolantes da Amazônia, comparável apenas à Fordlândia (PA) –fracassada tentativa de produzir borracha para a fábrica de automóveis na primeira metade do século 20.
O Projeto Jari começou em 1967, quando o americano Daniel Ludwig adquiriu 1,4 milhão de hectares para implantar um empreendimento de celulose. Essa área havia sido grilada por um "coronel" do Ceará, segundo pesquisa da geógrafa Maria Luíza de Camargo, que estudou o tema em seu mestrado, na USP.
Em abril de 1978, a fábrica de celulose e uma usina termelétrica chegaram à região após terem sido rebocadas desde o Japão, numa epopeia de quase três meses.
Mesmo com generosos incentivos públicos, o projeto não deu o retorno esperado, e Ludwig se desfez dele em 1982. Desde 2000, a empresa está sob o controle do paulista Sergio Amoroso, que assumiu a dívida de US$ 415 milhões.
De 2013 a 2014, a fábrica foi paralisada para passar por um processo de modernização de US$ 300 milhões. Desde então, segundo moradores, a empresa nunca retomou sua plena capacidade.
Para piorar, em 2015, a Jari Florestal, braço da empresa que explora madeira, foi alvo da Operação Tabebuia, que investigou um esquema para fraudar créditos florestais e esquentar madeira.
"Este é o pior momento. Já foi boa essa Jari", diz o desempregado Raimundo da Silva, 54. Demitido há cinco meses, hoje vive da venda de geladinho pelas ruas.
Metade dos 46 mil moradores de Laranjal, terceira cidade mais populosa do Estado, vive em precárias palafitas. O saneamento básico é zero, em contraste com o distrito de Monte Dourado (PA), do outro lado do rio Jari.
Construído pelo Projeto Jari, Monte Dourado tem casas amplas (muitas vazias e todas conectadas à rede de esgoto) e que às vezes lembram um subúrbio norte-americano. É ali que vive a elite da região.
"O momento é difícil, mas já estamos com 90% de normalidade", disse Amoroso, maior acionista da Jari Celulose.
Sobre as demissões, afirmou que está arcando com custos trabalhistas e que houve um "problema de gestão" da empresa terceirizada, que levou à ruptura de contrato. Ele também afirma que foi induzido ao erro por quem vendeu madeira fraudulenta.
3 HORAS DE LUZ
Distante 12 km da hidrelétrica Santo Antonio do Jari, a comunidade Comaru só tem três horas de energia por dia, dizem os moradores, realocados por causa da inundação provocada pela obra.
Esse não é o único problema do conjunto de 48 casas construído em 2014 pela multinacional EDP (Energias de Portugal) na foz do rio Iratapuru: os ribeirinhos, que vivem da extração da castanha, têm de buscar água no rio em carriolas.
O esgoto nunca foi interligado e, quando chove, parte da rua enche de fezes. Eles reclamam dos mosquitos e da falta de vedação do forro, por onde entram morcegos e ratos.
"Está pior do que antes. Isso aqui era muito lindo, tinha praia, e agora está tudo inundado", diz Aldemir da Cunha, presidente da cooperativa Comaru, que extrai castanha na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Rio Iratapuru. Esta, por não ser uma unidade de proteção integral, pode abrigar projetos de mineração caso o governo extinga a Renca.
Extrativistas e outros habitantes da região ouvidos para esta reportagem afirmaram que não foram consultados pelo governo federal sobre o impacto da extinção da Renca para a região.
Em nota, a EDP informou que "cumpriu todos os pontos de seu plano de compensação socioambiental[...]. A empresa esclarece que a manutenção e operação dos sistemas implementados são de responsabilidade das concessionárias regionais."
Procurada, a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) informou que não tem "nenhuma responsabilidade" sobre as instalações elétricas feitas pela EDP.
A Companhia de Água e Esgoto do Amapá (Caesa) afirma que a interligação do sistema tem sido dificultada pela falta de energia, mas que elaborará um projeto em até 90 dias para começar a resolver o problema.
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Editoria de Arte/Folhapress
onde fica

PROJETO JARI

Maior empreendimento da região da Renca
1967
O empresário americano Daniel Ludwig adquire 1,4 milhão de hectares entre o PA e o AP. O obje- tivo era plantar árvores para uma fábrica de papel
1978
Construída no Japão, a fábrica de 17 andares de altura é rebocada até o rio Jari, um percurso de 27.000 km. Cerca de 100 mil hectares haviam sido desmatados pela empresa, que também construiu uma vila a seus funcionários, Monte Dourado (PA)
1982
Após vários problemas, Ludwig vende o projeto a um grupo de empresários brasileiros, com participação do Banco do Brasil
1983
Para proteger reservas minerais de empresas estrangeiras, a ditadura militar cria a Renca (Reserva Nacional do Cobre e Associados), que inclui parte das terras do Projeto Jari
1987
Com a atração populacional, é criado o município de Laranjal do Jari. Primo pobre de Monte Dourado, separados pelo rio Jari, é a terceira maior cidade do Amapá, com 47 mil habitantes
2000
O Grupo Orsa, do empresário paulista Sergio Amoroso, compra o empreendimento. Paga apenas R$ 1, mas assume dívida de US$ 415 milhões
2013 e 2014
A fábrica da Jari Celulose paralisa a produção e passa por reformas de modernização 

Sintomas de um apagão gerencial, FSP

O governo levou dez dias para perceber que o protegido político nomeado para o comando da Agência de Promoção de Exportações não tinha qualificação para a vaga. A indicação de Alex Carreiro e sua demissão atrapalhada são sintomas de um apagão gerencial.
Jair Bolsonaro e seus ministros fizeram estardalhaço para remover funcionários que consideravam incapazes de seguir o programa do novo presidente. Em vez de recorrer ao golpe de marketing da “despetização”, o governo deveria ter dedicado mais tempo a uma análise cuidadosa de suas próprias nomeações.
Ninguém deve ter lido o currículo de Carreiro antes de dar a ele a presidência da Apex. A maior qualificação do publicitário era a devoção a Bolsonaro nas redes sociais e o contato com alguns figurões de sua equipe durante a campanha.
Em poucos dias no comando da agência, ele foi fritado por colegas. Na quarta (9), o chanceler Ernesto Araújo declarou no Twitter que Carreiro havia pedido demissão. O problema é que o publicitário apareceu para dar expediente no dia seguinte.
Araújo confundiu a rede social com o Diário Oficial. Carreiro se amarrou à cadeira, disse que não havia pedido para deixar o cargo e afirmou que só sairia demitido pelo próprio Bolsonaro. O presidente deixou o chanceler na chuva por 24 horas até confirmar a troca na agência.
O improviso e o blá-blá-blá da politicagem enferrujam as engrenagens do novo governo. Nomeações de apadrinhados inexperientes e bravatas administrativas atrasam e paralisam até atividades burocráticas.
A Casa Civil chegou a ficar travada com o expurgo tolo promovido pelo ministro Onyx Lorenzoni. A situação é inusitada: servidores que pediram exoneração não conseguem ser demitidos porque não há funcionários administrativos para cuidar disso.
Assim que assumiu o poder, Bolsonaro anunciou uma revisão geral dos atos assinados nos últimos meses do governo Temer. Talvez seja mais importante fazer um pente-fino nas decisões dos últimos dez dias.
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

1968, o ano dos loucos desejos que nunca encontrou fim, Aliás OESP

Gilles Lapouge, O Estado de S.Paulo
10 Março 2018 | 16h00

Em janeiro de 1968, um ministro do General de Gaulle visitou a Faculdade de Nanterre. Ele fala. Um estudante o interrompe. “Você diz bobagens. Você não fala sobre os problemas sexuais dos jovens.” O ministro responde: “Se você está muito quente, vá se refrescar na piscina”. O aluno ri: “Se eu quiser receber uma estudante, antes preciso tirar a cama do meu quarto. É grotesco.” O aluno é um desconhecido. Não o será por muito tempo.
Godard
Godard durante os protestos de Maio de 68 no filme 'Le Redoutable', de 2017
Quatro meses depois, Paris é uma cidade louca. Uma cidade desconhecida tomou seu lugar. Barricadas, música, lutas, desfiles e a alegria dos corpos de moças e rapazes. As noites são belas como os dias. Paris é uma festa. Em todos os lugares, como um elfo, está o insolente estudante de Nanterre, Daniel Cohn-Bendit. A polícia se descabela. Como ele é meio francês, meio alemão, é expulso para a Alemanha. Mas é um demônio, não se preocupa com fronteiras. E olá, está ele de volta a Paris! Como um tiro pela culatra, um retorno de alegria.
No dia 3 de maio, estudantes tomam a venerável Sorbonne, no coração de Paris. Primeiras barricadas. Pessoas feridas. As noites são calorosas. A desordem vai às mil maravilhas. No dia 13 de maio, um milhão de manifestantes. Eles desafiam o intimidante general Charles de Gaulle: “Charlot, basta!” A Sorbonne se proclama “comuna livre”. As figuras do passado são mescladas com o caso. Em meio à fumaça do gás lacrimogêneo, Marx, Bakunin, Lenin, Mao Tsé-tung, Ho Chi Minh, Castro, Guevara e até mesmo o General de Gaulle, o de 1939, aquele mesmo que tolamente continuou na guerra após a derrota do exército francês. Qual a alquimia que fez uma pequena faísca (as garotas nos quartos dos rapazes) produzir esse fogo gigantesco? Nem Maquiavel a teria previsto.
Cinquenta anos depois, os historiadores, como Maquiavel, também “não fazem a menor ideia”. O belo mês de maio escorrega pelas suas mãos. Eles não sabem o que fazer. Como rotular? “É um mistério”, dizem eles. O melhor pensador da direita, Raymond Aron, escreveu: La Révolution Introuvable (A Revolução Esquiva). Não pretendo levantar esse mistério. Em vez disso, coloque esse mistério em uma perspectiva dupla, geográfica e histórica. No espaço e no tempo.
Maio de 68 é considerado francês. Ele havia sido precedido por sinais vindos de outros lugares. Em 1962, a pílula na França foi legalizada. As garotas conquistam uma liberdade. O baby boom do pós-guerra chega ao fim. A libertação das colônias também. Descobrimos, na Indochina, na Argélia, o lado tenebroso das aventuras coloniais e a existência das minorias. A Guerra do Vietnã humilhou os EUA, criou soldados loucos, abalou valores como família, trabalho, consumo.
A contracultura era como fogo selvagem. Em São Francisco, Los Angeles, ela assola. Defendemos um retorno à natureza. A autenticidade. O amor estava nos lábios de todos. A América se tornava um vasto laboratório de LSD, de paraísos artificiais. A pirâmide da sociedade e seus líderes torpes e tirânicos foram abalados. Escrevemos poemas por todos os cantos. Tivemos nostalgia pelos ameríndios e pela sabedoria do Oriente. Em várias partes do globo, pode-se ver implicitamente e não só na França, desde 1965, as efígies trêmulas do que virá a se tornar Paris e a França em maio de 1968. Mas os EUA não são os únicos a tê-lo precedido ou seguido. Itália, Alemanha, Checoslováquia, México. Cada um deles teve seu maio de 68.
O período é visto como uma paixão francesa, até mesmo parisiense. Isso não está correto. Maio de 1968 foi declinado em todos os idiomas. A França só captou esse frenesi em voo, um frenesi que passou e veio de outro lugar. Mas ela lhe assegurou a dramaturgia. As trinta noites iluminadas de Paris são apenas a encenação de uma convulsão sem imagens ou fronteiras. E como a França tem uma longa prática em revoluções, a Sorbonne foi também uma antologia histórica. Os cartazes e slogans que cobriam as paredes em serigrafias (muito caras hoje em dia, para colecionadores) dizem o contrário, no entanto: “Do passado, faremos uma tábula rasa” e “Nada será como antes”.
Ilusões: os exaltados do Quartier Latin sonhavam com uma sociedade sem antecedentes, de um passado abolido ou restaurado à sua virgindade. Bobagem. O passado nunca morre. Lenin herdou dos czares e de Gaulle sabia que estava continuando o romance dos Reis da França e dos revolucionários da Bastilha. O desdobramento das jornadas o atesta: inventado por acaso por estudantes burgueses e cultos, o maio de 1968 refez, em tons menores, comoventes ou sem importância, as grandes cenas da história que tinham aprendido nesta universidade que eles faziam de conta não amar. Ao acaso, as ruas foram informadas por fragmentos da Revolução Francesa de julho de 1789, a “Palma de Ouro” de todas as Revoluções, e retomadas por Moscou ou Petersburgo em 1905 e 1917. Comemoramos as barricadas parisienses de 1848 sob o sobrinho do Grande Napoleão, ou ainda a Comuna de Paris, que os trabalhadores fizeram viver e viram morrer em alguns meses, em 1871, após a derrota dos exércitos franceses diante dos prussianos. Maio de 1968 também foi uma celebração de epopeias revolucionárias estrangeiras, incluindo as que, levadas ao auge por um ou outro grupo da Sorbonne, mais tarde mostraram seus rostos hediondos, como Cuba ou a China de Mao Tsé-tung. Celebrando também os movimentos sociais ultrapassados, que inspiraram obscuramente os bons confrontos com os quais os estudantes estavam tão orgulhosos? Mistério! “Meu lindo mistério!”
É por isso que podemos dizer que o mês de maio de 1968 começa antes de maio de 1968. E continuará após 31 de maio de 1968 e o reaparecimento de Gaulle, com os vastos movimentos sociais que afetaram as grandes empresas, os grandes sindicatos, mas também artesãos, pescadores, alguns comerciantes, artistas, pintores, o cinema, a ópera, uma parte da Igreja, professores.
Podemos acrescentar que 1968 continua a viver, nas profundezas de nossas sociedades, nos conceitos que formamos da história, do Bom Deus, do ser, do nada, da liberdade, da felicidade? Dizem que o jovem presidente francês, Emmanuel Macron, sempre ansioso pela “modernidade”, acariciou a ideia de comemorar oficialmente o 50.º aniversário de maio de 1968. Então, um conselheiro mais corajoso que os outros teria dito a ele que maio de 1968 era seu exato antônimo: Macron quer uma sociedade vertical que obedece a uma única vontade, a do presidente (“Eu serei um presidente dominador”, ele disse). Ele acredita nas sociedades frias, sábias, racionais, ordenadas, hierarquizadas, financeiras, certamente não as sociedades em movimento, fluidas e constantemente reinventadas com as quais os estudantes de 1968 sonharam. Macron tem como bússola o “princípio da realidade”, os filhos de maio de 1968, a poesia. Reconheçamos de passagem que uma sociedade edificada pelos estudantes de 1968 não teria uma expectativa de vida muito grande. A sociedade tradicional, sem imaginação, modernizada por Macron, tem chances bem maiores de sobrevivência.
Não podemos evocar maio de 68 sem recordar da alegria, do riso, da malícia e do lirismo que acompanharam essas horas tórridas. Pessoas conversavam sem se conhecerem, moravam umas nas casas das outras, se amaram sem jamais se terem visto, não sabiam quem eram. Admita-se que dificilmente vemos, nos espetáculos propostos em 2018, o traço dos “desejos loucos” dos quais os jovens de 1968 consideravam possuir o segredo.
Anos depois, alguns dos slogans mais obsessivos nos muros de Paris deixaram sua marca no comportamento dos jovens. “Assuma seus desejos como se fossem realidade”, “Gozar sem limitações” e “É proibido proibir”. Que falta de sorte: a partir dos anos 1970, uma hidra obscureceu sob sua sombra todas as figuras do desejo: a Aids tornou obsoletos os slogans de maio de 1968. Os obstáculos ainda estão lá. As realidades tomaram o lugar dos desejos. / Tradução de Claudia Bozzo