quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Promessas de Doria para segurança exigem revisão de leis no Congresso, FSP (pauta)

SÃO PAULO
Presos isolados, trabalho compulsório, fim das saídas temporárias e até redução da maioridade penal. Todas essas são promessas do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), feitas em campanha ou mesmo depois de ter assumido o Palácio dos Bandeirantes, no início deste mês. Mas elas estão além da caneta do governador.
Essas propostas dependem de alteração na Lei de Execução Penal, que é uma legislação federal, e até na Constituição —ou seja, dependem do Congresso Nacional.

PRESO ISOLADO

Na semana passada, em entrevista à Globonews, Doria disse que os chefes de facções criminosas presos em SP “serão absolutamente isolados, nenhum tipo de contato”.
Ele não detalhou como isso deve acontecer. Hoje, o isolamento ocorre quando se manda o preso para cumprir pena no chamado RDD, o regime disciplinar diferenciado, em que ele fica isolado se cometer crimes na cadeia ou se representar risco para a segurança do presídio e da sociedade, entre outros casos.
O RDD está previsto na Lei de Execução Penal, de 2003, que estabelece prazo máximo de 360 dias no regime (até o limite de um sexto da pena total do condenado), e a transferência do preso para o sistema depende de autorização da Justiça, além de manifestação do Ministério Público.
Para cumprir sua promessa, Doria depende que o Congresso Nacional altere a lei. Um projeto do Senado de 2006 tentou garantir que o preso permaneça no regime diferenciado durante o “período em que causar risco à sociedade ou ao sistema prisional”, retirando o limite de tempo, mas foi arquivado em 2009.

'SAIDINHA'

O governador prometeu ainda “acabar com a saidinha”, como é chamada a saída temporária de presídios, benefício concedido a presos com bom comportamento e que tenham cumprido pelo menos um sexto da pena. “Bandido tem que cumprir pena na cadeia”, afirmou Doria.
Essa é mais uma mudança na legislação que só poderia ser feita em Brasília, já que o direito está previsto em lei federal. Também há um projeto do Senado que acaba com o benefício, que está desde dezembro na Comissão de Constituição e Justiça da Casa.

MAIORIDADE PENAL

Na campanha, o governador chegou a prometer trabalhar pela redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, algo que também está além de sua alçada. 
A idade mínima está prevista na Constituição Federal, cuja alteração é mais trabalhosa, uma vez que exige três quintos de aprovação em cada casa do Congresso, além de votação em dois turnos. 
Há ainda um debate sobre se a idade penal mínima é ou não cláusula pétrea, ou seja, se pode ou não ser alterada.
Uma Proposta de Emenda Constitucional sobre o tema, já aprovada em duas votações na Câmara em 2015, está parada desde outubro de 2017 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.
Ela prevê que jovens de 16 a 18 anos deixem de ser inimputáveis se cometerem homicídio doloso (quando há intenção de matar), lesão corporal seguida de morte e crimes hediondos (estupro, por exemplo), e que cumpram pena separados dos maiores de 18.

TRABALHO NA CADEIA

Doria prometeu também, em diferentes ocasiões, que “todos os presos vão trabalhar” em São Paulo. “Acabar com essa história de que dois quartos dos presos não fazem nada”, chegou a dizer. 
A pena de trabalho forçado é proibido pela Constituição da República, mas a Lei de Execução Penal prevê que os presos estão obrigados a realizar trabalhos internos. 
Esta é, na avaliação do defensor público e ex-diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional, Renato De Vitto, uma medida que “pode ser positiva”. 
“Os indicadores de empregabilidade no sistema prisional são baixíssimo. Trabalhando normalmente, com faxina e até como servidor administrativo, você pode trabalhar a capacitação do preso, desde que isso esteja alinhado a um projeto pedagógico.”
Hoje, 59 mil presos em São Paulo trabalham, dos mais de 225 mil que estão encarcerados no estado.
Outro projeto de lei do Senado, se aprovado, estabelece que “o preso deverá ressarcir o Estado das despesas realizadas com a sua manutenção no estabelecimento prisional” e que “se não possuir recursos próprios para realizar o ressarcimento, o preso deverá valer-se do trabalho”. O projeto está pronto para ser votado no plenário da Casa e, se aprovado, ainda precisa ir para a Câmara dos Deputados.
SP tem a maior população carcerária do país e passou incólume pela onda de rebeliões e chacinas que ocorreram em presídios do país há dois anos —embora os especialistas creditem isso mais ao fato de não haver disputa de facções nas cadeias do estado, com predominância de uma organização criminosa.

RUMO DO GOVERNO

Para De Vitto, as promessas do novo governador ainda carecem de detalhamento e estudo. Doria aposta nesses pontos, que têm alta aprovação entre a opinião pública, para angariar projeção e tentar concorrer ao cargo de presidente da República nas próximas eleições, em 2022.
A Secretaria da Administração Penitenciária da gestão Doria diz que as promessas coincidem com o que propõe o governo federal e que o secretário estadual, o coronel Nivaldo Cesar Restivo, se reuniu na segunda-feira (7) com o ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) “para tratar de proposta de alterações legislativas.”
A própria nomeação do coronel da PM paulista já é uma mostra de que Doria quer mudar o rumo da administração dos presídios no estado, uma vez que ele substituiu Lourival Gomes, que havia sido nomeado em 2009 (antes disso, era adjunto), na gestão José Serra, e sobreviveu aos mandatos de Alberto Goldman, Geraldo Alckmin e Márcio França.
A pasta diz que 35 mil presos participam de ações capacitação profissional e educação formal. O preso que trabalha recebe um auxílio e reduz um dia de pena a cada três trabalhados.
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Matias Spektor - Plataforma diplomática da ultradireita ganha força, FSP

Ganha forma pela primeira vez no ciclo democrático uma plataforma de política externa de ultradireita. 
Ela não deve ser reduzida às maluquices do chanceler nem deve ser descartada como mero plágio inconsequente das ideias de Steve Bannon Donald Trump. Tampouco é correto atribuir sua paternidade a Jair Bolsonaro. A eleição do presidente impulsiona esse programa e lhe dá força, mas a plataforma o antecede.
As origens intelectuais do projeto vêm de longa data. O furor antiglobalista é emprestado do ciclo iniciado em 1964. 
À época, temerosos pela sobrevivência do regime, os generais e sua diplomacia denunciaram as Nações Unidas e os regimes internacionais de direitos humanos, de não-proliferação nuclear e de preservação ambiental. 
O argumento era que tais instâncias seriam parte de um conluio esquerdista transnacional para enquistar o Brasil no atraso.  
Na prática, o regime fazia de tudo para evitar que suas entranhas fossem expostas ao público. Os governos da época chegaram a abrir mão de ocupar uma cadeira rotativa no Conselho de Segurança da ONU para ficar longe dos holofotes. 
Também é daquela época a ideia de que a diplomacia brasileira deve discriminar países em função de sua identidade ideológica com o ocupante do Palácio do Planalto. 
Hoje, a velha plataforma de ultradireita ganha cores novas. É nova a noção segundo a qual as denominações cristãs do país devem ser tratadas como dimensão central da atuação externa. 
É de agora o uso sistemático de notícias falsas e de teses que, mesmo sendo esdrúxulas, são defendidas ao arrepio das evidências, como é o caso do atual discurso oficial sobre mudança do clima e imigração.
Obtusa, a nova plataforma diplomática de ultradireita lembra muito sua irmã siamesa, a plataforma de política exterior da extrema esquerda. Trata-se de um mesmo mundo de fantasmas imaginários, lógica chã e descompromisso com os fatos. 
É possível que o novo projeto da extrema direita sobreviva para além do mandato de Bolsonaro. Afinal, há muitos liberais brasileiros que taparão o nariz, mas embarcarão nessa canoa. 
Eles deveriam pensar duas vezes. Essa nova plataforma diplomática inviabiliza a agenda reformista de Paulo Guedes e Sergio Moro. Em ambos os casos, os planos de governo demandam adesão a mais compromissos internacionais, abrindo o Brasil ao mundo sem medo.  
Não se trata de submissão. Ao contrário do que diz a mentira em voga, o Brasil nunca aderiu a um acordo que demandasse cessão de soberania. Trata-se de produzir políticas públicas de boa qualidade. E elas são incompatíveis com um projeto iliberal travestido de patriota.