quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Educar é criar dissidentes, Contardo Calligaris, FSP

Uma mudança ideológica não vai melhorar o ranking do Brasil em educação

Estou na Flórida, em Miami, no momento. Segunda, dia 31, precisei passar no banco, e, antes de sair de casa, verifiquei os horários. Pensei: vai que, por ser véspera de Ano-Novo, eles fechem antes da hora. 
No site, não dizia se haveria mudanças. Preferi telefonar, por segurança. Escutei a gravação do serviço automático: “de segunda a quinta, das 9 às 16, na sexta…” Aqui eu tive tempo de antecipar como lógica uma mudança para menos --na sexta, o banco, imaginei, vai fechar às 14, deve ser isso, para que os funcionários possam viajar mais cedo para o fim de semana. Mas errei: na sexta o banco fica aberto até mais tarde, até 18 horas. 
Ilustração de Mariza Dias Costa publicada nesta quinta-feira, 3 de janeiro de 2018
Ilustração de Mariza Dias Costa publicada nesta quinta-feira, 3 de janeiro de 2018 - Mariza Dias Costa/Folhapress
De qualquer forma, aliás, o fim de semana não começa na sexta, pois o mesmo serviço me informou que o banco também abre sábado de manhã.
Pensei nisso (e na “deformação” cultural brasileira que me fez prever horários especiais de véspera de feriado) ao ler, mais tarde, o tuíte do presidente Bolsonaro, em que ele escreveu: “Uma das metas para tirarmos o Brasil das piores posições nos rankings de educação do mundo é combater o lixo marxista que se instalou nas instituições de ensino”.
Quem dera fosse tão fácil. Infelizmente, uma mudança ideológica não vai melhorar o ranking do Brasil em matéria de educação. Para isso, precisaria estender o calendário escolar, aumentar a carga horária dos estudantes, esperar deles muito, mas muito mais do que é exigido hoje e, claro, melhorar significativamente a formação e os salários dos professores.
Dessa lista não faz parte a reza de nenhuma cartilha. Nosso ensino não é ruim porque haveria professores marxistas e não vai melhorar só porque os professores no futuro serão carolas.
Desse ponto de vista, aliás, daria para argumentar que, com o domínio dos carolas, o ensino piorará. Explico: em regra geral, qualquer visão do mundo ou ideia, quando ela é dominante (ainda mais quando ela é expressão do poder político instituído), torna-se lixo.
Por exemplo, se você quer entender o que foi a Revolução Cubana, o último lugar para estudar é Cuba. O mesmo vale para entender o bolivarianismo venezuelano: não vá para Caracas. E você imaginou o que era estudar história do século 20 na ex-União Soviética, antes da queda do Muro de Berlim?
O mesmo vale, por exemplo, para o estudo da história  contemporânea nos EUA na época da caça às bruxas macartista, nos anos 1950.
Em qualquer um desses lugares, o espaço para  algumas faíscas de senso crítico era mínimo ou nulo. E as chances eram (ou são) grandes de aprender só lixo.
O ponto de vista crítico, que questiona a ordem estabelecida e o conteúdo que está sendo ensinado,  é a atitude que mais leva o estudante a pensar, investigar, estudar um pouco além do que é óbvio e prescrito.
Ser cristão trocando “samizdats” proibidos era provavelmente o melhor jeito de ser estudante na União Soviética até os anos 1990. Assim como ser de esquerda às escondidas era o melhor jeito nos Estados Unidos dos anos 1950 (e ainda seja, hoje, em alguns estados americanos). 
A cultura oficial e de governo é lixo porque só é ciosa de sua reprodução igual na consciência de todos. O que se opõe a ela pode valer pouco como conhecimento, mas tem a função de fomentar o senso crítico dos estudantes. Por exemplo, eu acho o cristianismo nacionalista à la Soljenitsin uma chatice medíocre, mas, para muitos, ele foi o observatório que permitiu enxergar uma outra Rússia.
Na segunda parte do tuíte, o presidente Bolsonaro explicita seu propósito: “vamos evoluir em formar cidadãos e não mais militantes políticos”. Certo, mas o problema é: o que é um cidadão?
Os cidadãos sem senso crítico são, de fato, os militantes políticos mais perigosos: emissários e informantes da ordem estabelecida. 
Desde a aurora do mundo moderno, o exercício efetivo da cidadania se confunde com o exercício da oposição. Talvez, no nosso sistema atual, no Brasil, os argumentos da oposição  tenham uma referência (vaga) no marxismo --digamos que sejam “marxistas”. Eu preferiria que fossem hedonistas, mas tanto faz: o essencial, para mim, é que nossas crianças aprendam a olhar para o mundo e a entendê-lo criticando, opondo-se, imaginando e inventando outros mundos.
Aliás, estes são meus votos para o ano que começa: que sejamos e continuemos todos, crianças e adultos, capazes de imaginar outros mundos, possíveis e impossíveis. 
Feliz 2019.
 
Contardo Calligaris

Direito ao aborto nos EUA é constitucional mas esbarra em vetos locais, FSP

Acesso ao procedimento pode ser diferente em estado mais conservador

Daniele Brant
NOVA YORK
direito constitucional ao aborto nos Estados Unidos e o efetivo acesso ao procedimento podem ser coisas bem diferentes em estados mais conservadores, que impõem uma série de restrições para tentar demover a grávida da intenção de interromper a gestação.
Em Ohio, a mulher pode ser forçada a ouvir os batimentos cardíacos do feto pelo menos 24 horas antes de dar sequência ao procedimento. Em Iowa, decisão judicial de junho suspendeu uma regra que proíbe o aborto após seis semanas de gestação, exceto em casos de estupro, incesto ou risco à saúde materna.
Ao todo, 43 dos 50 estados estabelecem alguma proibição ao aborto a partir de determinado momento da gravidez, segundo levantamento do instituto Guttmacher. Pela quantidade e tipo de restrições, a organização calculou em 29 o número de estados hostis ou extremamente hostis à prática, enquanto apenas 12 apoiariam.
Vários estados determinam que a mulher receba aconselhamento e aguarde por um período antes de dar sequência ao procedimento. Em Iowa, a espera é de 72 horas. Além disso, 37 estados, segundo o Guttmacher, exigem algum tipo de envolvimento dos pais caso uma menor decida abortar.
“O fato é que somos divididos sobre o aborto, como muitos lugares no planeta”, avalia Kamy Akhavan, presidente da organização Procon, que compila argumentos favoráveis e contrários a temas controversos, como o aborto.
“No sul, com a maioria dos estados sob comando republicano, os cidadãos se opõem mais a direitos como o aborto, dizem que é assassinato, não deveria ser tolerado."
Nesses lugares é comum haver ativistas se manifestando contra o procedimento em frente a clínicas abortivas.
Um dos estados mais rígidos é o Mississippi, onde o aborto será automaticamente cancelado caso seja revogado o marco regulatório Roe vs Wade, de 1973, que incluiu o direito na 14ª emenda constitucional. O mesmo ocorreria na Louisiana, Dakota do Norte e Dakota do Sul.
“A realidade é que o estado pode impor restrições diferentes e o acesso ao aborto vai depender de onde a mulher mora”, afirma Megan Donovan, diretora política sênior do Guttmacher. “Alguns tentam bloquear o acesso, tentam fechar clínicas, ou obrigam qualquer pessoa que queira abortar a cumprir passos desnecessários.”
Seis estados americanos têm apenas uma clínica abortiva: Kentucky, Virgínia Ocidental, Wyoming, Dakota do Sul, Dakota do Norte e Mississippi. Em maio, Arkansas passou uma regra que, na prática, reduziria o número de locais aptos a realizar o procedimento a apenas um.
Para Donovan, essas imposições locais penalizam mulheres mais pobres, com menos recursos para viajar e tentar realizar o procedimento em outros estados.
“A realidade prática é que isso pode ser caro e demandar tempo. Esses desafios significam que só quem tem tempo, dinheiro e um trabalho que dê flexibilidade para se ausentar e abortar consegue realizar o procedimento”, diz a diretora do instituto. “Quem tem menos recursos fica ainda mais marginalizada.”
guinada conservadora nos Estados Unidos que levou à eleição de Donald Trump à Casa Branca intensificou o debate e as restrições ao aborto. Donovan contabiliza 401 limitações à prática entre janeiro de 2011 e o fim de 2017.
Na campanha presidencial, Trump prometeu revogar o marco regulatório Roe vs Wade —o que está fora de seu alcance por se tratar de uma decisão da Suprema Corte. Mas ele pode mexer na configuração da casa para torná-la mais conservadora e inclinada a aumentar as restrições à prática.
O primeiro passo para isso ele deu em julho, quando indicou o juiz Brett Kavanaugh para ocupar a vaga deixada por Anthony Kennedy na Suprema Corte. Kavanaugh esteve à frente de um caso envolvendo uma adolescente de 17 anos detida nos EUA após entrar no país pela fronteira com o México.
Durante a detenção, a jovem descobriu que estava grávida e informou aos funcionários do centro que desejava interromper a gravidez.
O escritório de reassentamento de refugiados (ORR, na sigla em inglês) se recusou a permitir que ela tivesse acesso a tratamento médico e queria que ela fosse encaminhada a um adulto para receber aconselhamento.
A decisão foi derrubada depois por uma corte de apelação que reverteu uma ordem de um painel de três juízes que tinham concordado com a medida da ORR. Kavanaugh estava entre eles.
Em sua defesa de que a adolescente não deveria ter acesso ao aborto, ele afirmou que a decisão poderia criar um novo direito para menores imigrantes ilegais sob detenção do governo americano de obter aborto imediato por demanda.
“A Suprema Corte estava sem um viés em relação ao assunto. Agora, o juiz que substituiu Kennedy poderá desempatar a questão”, diz Donovan.
Se isso acontecer, ela teme que o número de restrições aumente ainda mais, principalmente nos estados mais conservadores. “Levaria anos para reverter uma decisão mais conservadora. Quanto mais proteções forem retiradas, mais difícil será mudar as decisões.”
Akhavan, do Procon, minimiza esse risco. Para ele, o mais importante é enriquecer o debate sobre o tema. “Há um grande valor em participar da discussão, e não encerrar o assunto achando que o outro é imbecil. O debate ajuda a melhorar o argumento e a mulher a decidir com base em seus valores e no que é melhor para seu caso.”  ​