Por Peter L. Alouche
O Metrô de São Paulo é um projeto de total sucesso. Os que dele participaram desde seus primórdios, incluo-me humildemente nessa equipe de privilegiados, podem se orgulhar de ter construído um empreendimento vitorioso, absolutamente vital para a cidade de São Paulo e que tem demonstrado uma eficiência operacional e um desempenho ímpares, internacionalmente reconhecidos.
A importância do Metrô na Região Metropolitana de São Paulo se traduz na excelência do serviço que presta à cidade e pode ser medido com os dados do transporte: nas suas seis linhas em operação, transporta anualmente nos seus 89,8 quilômetros de rede e 79 estações, mais de 1,3 bilhão de passageiros. A Companhia do Metrô opera cinco das seis linhas e atende diariamente cerca de 4 milhões de usuários. A concessionária Via Quatro opera a linha 4 – Amarela, com 8,9km, totalmente automatizada, uma das mais modernas do mundo e que atende 780 mil passageiros por dia. Um sucesso.
Face a esse sucesso, pergunto: Erramos? Se sim, onde erramos?
Está na hora, no meu entender, ao comemorarmos os 50 anos de existência da companhia, de fazer, com humildade e sem medo, uma reflexão séria e profunda sobre as dificuldades que enfrentamos e, por que não dizer, sobre eventuais “erros” que cometemos nessa empreitada histórica. Num projeto dessa envergadura com a complexidade do empreendimento, nem tudo é perfeito e alguns erros provavelmente existiram, refletindo-se no nosso Metrô de hoje e que poderão ter consequências na sua evolução e no seu futuro, se não os corrigirmos a tempo. Os possíveis “erros” cometidos, no meu entender, alguns até justificáveis, todos certamente explicáveis, foram fruto das circunstâncias locais ou ambientais. Eles só podem ser percebidos por quem conhece o metrô e tem amor por ele. Na minha visão, são cinco os aspectos “negativos” que o Metrô, por razões diversas, até fora de seu alcance, não conseguiu evitar:
– A preservação dentro da companhia do monumental acervo tecnológico intelectual e de seu desenvolvimento.
– A falta de um planejamento estruturado e minucioso das múltiplas atividades, face à expansão e à implantação “acelerada” de novas linhas.
– A adoção de tecnologias inéditas no Brasil, sem um estudo de outras alternativas e sem um debate técnico exaustivo a seu respeito.
– A atitude, muitas vezes conservadora, de alguns técnicos e responsáveis pelas especificações dos equipamentos e sistemas.
A Companhia do Metrô não teve ao longo de sua história uma expansão regular e contínua. Ela não soube aproveitar, nos períodos de “baixa”, a oportunidade para perpetuar o seu acervo tecnológico, sedimentar os seus métodos vitoriosos e suas técnicas já experimentadas, preparando as novas gerações para essa tecnologia tão complexa do mundo metroviário. Muitos de seus técnicos de vanguarda, detentores do saber, saíram da empresa, seja porque foram trabalhar em outros empreendimentos de transporte Brasil afora, seja porque se aposentaram. Houve até uma política na companhia de incentivo à saída de alguns cérebros de valor com o Programa de Demissão Voluntária. Infelizmente não houve, por parte do Metrô, a preocupação sistemática de substituir, renovar e treinar novos profissionais à altura.
Não foi possível recriar, dentro ou fora da empresa, aquela equipe multidisciplinar, de altíssimo nível, que se formou no início do Metrô, à qual eu tive o privilégio e o orgulho de pertencer, formada por técnicos de visão, corajosos e competentes, que se preocupavam em olhar sempre para o futuro, para o longo prazo, como os “faróis” de Baudelaire. Pesquisavam o que havia de mais avançado no mundo, sugeriam ideias novas, provocavam os conservadores e defendiam o Metrô com entusiasmo e saber. Atuavam, oficiosamente, como “Ombudsmen tecnológicos”. A falta de recrutamento de técnicos por longos anos, e a não existência de uma política clara de salvaguarda e desenvolvimento da tecnologia, tornaram-se uma ameaça à sobrevivência do precioso acervo tecnológico acumulado por 50 anos.
Quando, nos últimos anos, a empresa foi confrontada com o desafio da implantação de novas linhas, incluindo novas tecnologias, todas com metas difíceis de serem atingidas, viu-se comprimida, em termos de prazos, e confrontada com um certo despreparo, tanto em termos de recursos humanos quanto de atualização tecnológica das suas equipes. Apesar de ter adotado tecnologia muito avançada em alguns de seus novos projetos, como na linha 4 – Amarela, é notório que houve ao longo dos anos certa falta de atualização das equipes do Metrô quanto à tecnologia e aos métodos que se operavam no mundo metroferroviário mais avançado. Isso tem se traduzido, muitas vezes, nos editais de novas linhas, em especificações de sistemas e equipamentos, pouco flexíveis e com uma tendência conservadora.
Com o acúmulo nos últimos anos de novos projetos de linhas, não houve como desenvolver um planejamento adequado, o que obrigou a empresa a contratar fora projetos, supervisões e gerenciamentos que, no passado, sempre foram da sua responsabilidade. Os técnicos começaram a se dedicar a solucionar assuntos urgentes, contratuais, em detrimento de assuntos de mais longo prazo, como a análise em profundidade dos novos projetos.
No começo da construção do Metrô, talvez porque era tudo novo, o “planejamento” na empresa comandava e controlava de maneira sistêmica todas as etapas da implantação, desde os primeiros estudos, as contratações, os projetos, a construção, a compra dos equipamentos, os testes, a colocação em serviço, o treinamento da população, a abertura das linhas até as necessidades em recursos humanos e treinamento, tanto para as áreas técnicas quanto operacionais.
Tudo dentro de um sincronismo e uma harmonia perfeitos para que nenhum evento, com data marcada, acontecesse sem que os pré-requisitos em qualidade e segurança tivessem sido perfeitamente garantidos. Isso não significa que não acontecessem imprevistos e algumas trombadas. Mas eram incidentes esporádicos.
Lembro, por exemplo, quando da abertura dos primeiros trechos da linha 1 – Azul, mais de 40 anos atrás, na época em que eu mesmo coordenava os testes de aceitação dos sistemas. Era impensável que se pudesse começar a operação de um trecho sem que testes completos dos equipamentos, dos sistemas, das interfaces e de integração tivessem sido feitos e aprovados. E posso assegurar que eram rígidos e exaustivos. Era inconcebível que um equipamento entrasse em serviço sem ter sido submetido a provas que às vezes levavam semanas ou meses. Só depois dos testes consolidados e aprovados é que a data da inauguração era fixada. Hoje o que se constata não é exatamente isso.
A atitude que noto atualmente por parte de alguns técnicos e responsáveis, todos profissionais que respeito muito, é de preocupação com o curto prazo. Envolvidos em muitas atividades e preocupados em atender os prazos exíguos estabelecidos, não se aprofundam às vezes em algumas questões técnicas complexas, nem recorrem a alguma consultoria especializada, nacional ou internacional, como se fazia no início do Metrô. Não há tempo disponível para discussões e debates. Não posso, portanto, negar que tenho certa preocupação com o que vem acontecendo na escolha tecnológica e na especificação de novos projetos urbanos, não só em São Paulo, mas também no Brasil inteiro. De alguns anos para cá, não se abrem debates sobre as escolhas tecnológicas e o direcionamento dos projetos, tanto em nível macro – das linhas – quanto micro – dos sistemas e equipamentos. Estou convencido de que faltou, por exemplo, um debate público e sincero na adoção da tecnologia de monotrilho nas linhas 15, 17 e 18.
Nestes 50 anos de vida do Metrô, São Paulo mudou, o Brasil mudou e o mundo mudou. A tecnologia metroferroviária também sofreu grandes mudanças, principalmente tecnológicas. Deu saltos exponenciais em todos os domínios, sobretudo nas telecomunicações e na Tecnologia da Informação, na automação, mas também na engenharia civil, na fabricação do material rodante etc.. A população hoje é mais consciente, mais participativa. O usuário do sistema, mais crítico. As redes sociais dividem online qualquer dúvida que surge, qual erro que se constata.
O processo de concessão da operação das linhas de Metrô, da CPTM e dos monotrilhos em São Paulo está em marcha acelerada. Começou com a Linha 4 – Amarela do Metrô, hoje nas mãos da Via Quatro. Foi o primeiro contrato de parceria público-privada assinado no País. Foi feita a concessão da Linha 6 – Laranja através de uma PPP integral. As linhas 5 – Lilás e 17 – Ouro já foram concedidas à iniciativa privada, como também o monotrilho da Linha 18 – Bronze e foi anunciada a concessão do monotrilho da Linha 15 – Prata.
Em face desse processo acelerado de concessão das linhas de metrô, noto uma falta de iniciativa por parte da empresa, para garantir a si a continuidade do planejamento e controle da expansão da rede metroviária. Só o Metrô estatal pode ditar a tecnologia e as especificações técnicas das linhas futuras, como também monitorar e controlar a qualidade do serviço das atuais linhas em concessão. Só a Companhia do Metrô tem a competência e o acervo acumulado para garantir a salvaguarda da tecnologia na mão da engenharia brasileira e, portanto, a ela cabe a responsabilidade do seu gerenciamento.
Por fim, penso que o Metrô deveria voltar a ter um relacionamento sólido e harmonioso com a cidade. Parece que a cidade tem se desenvolvido e se expandido como se o Metrô não existisse. Não se pode planejá-la sem a participação ativa do Metrô e vice-versa. Os irmãos siameses que foram separados quando o Metrô saiu da Prefeitura e passou para o Estado precisam voltar a dialogar intensamente, independentemente de quem é o dono do Metrô e de onde vêm os recursos.
Na realidade, o que está em jogo é a própria sobrevivência do metrô como transporte de qualidade na cidade de São Paulo.
Peter Ludwig Alouche é engenheiro eletricista, formado pela Universidade Mackenzie, mestre em Sistemas de Potência pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), com diversos cursos de especialização em transporte público em universidades e entidades do Brasil, Europa e Japão. Foi durante 35 anos metroviário, assessor técnico da Presidência do Metrô de São Paulo para Projetos Estratégicos, representante da companhia na Associação Internacional do Transporte Público (UITP) e na Comunidade de Metrôs (CoMET). Foi professor titular de linhas de transmissão na Escola de Engenharia da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e no Mackenzie. Hoje é consultor independente de transporte nas áreas de tecnologia. Tem inúmeros artigos publicados em revistas especializadas do Brasil e do exterior.
Fonte: SEESP
Data: 07/05/2018