domingo, 1 de outubro de 2017

Um país engessado por boas intenções - ROLF KUNTZ, OESP


ESTADÃO - 01/10

Reativação melhora receita, mas reformas são essenciais para frear deterioração das contas

Campeão da dívida pública entre os maiores emergentes, o Brasil caminha para o desastre, se o governo continuar sem meios legais e políticos para conter a degradação de suas contas. A dívida bruta do governo geral bateu em R$ 4,77 trilhões em agosto. Isso equivale a quase um quarto (73,7%) do produto interno bruto (PIB), o valor dos bens e serviços finais produzidos em um ano. Os brasileiros teriam de trabalhar quase nove meses, sem nada consumir, se fosse preciso pagar de uma vez o estoque de papagaios emitidos pelo setor público. A expressão governo geral indica as administrações da União, dos Estados e dos municípios, mas a maior parte do problema é do poder central. Na média, a dívida bruta dos governos, no mundo emergente, continua na vizinhança de 50% do PIB. No mundo rico há Tesouros muito mais endividados, mas sua classificação de risco é muito melhor que a do Brasil e a rolagem de seus compromissos é feita com juros muito baixos – até negativos, em alguns casos.

Conter o endividamento público é um dos objetivos centrais da estratégia econômica inaugurada em Brasília no ano passado. Mas o peso da dívida crescerá ainda por alguns anos, pelo menos até 2022, se o esforço de ajustes e reformas continuar mais ou menos de acordo com os planos. A recuperação da economia, iniciada neste ano, também ajudará, proporcionando maior arrecadação de impostos e contribuições. Isso já ocorre. Todos os tributos federais baseados em produção, consumo, importação e renda geraram em agosto receita maior que a de um ano antes, descontada a inflação. Reforçada também por alguns itens extraordinários, essa arrecadação superou por 17,7% a de agosto de 2016.

Mas seria imprudente depender apenas da arrecadação e do controle das chamadas despesas discricionárias para consertar as contas federais. O Orçamento é pouco flexível e tornou-se mais engessado com a expansão dos gastos obrigatórios, como a folha salarial dos servidores. A irracionalidade do Orçamento é conhecida há muito tempo e resulta em grande parte das boas intenções dos constituintes de 1988.

A essas boas intenções outras se acrescentaram nos anos seguintes, graças ao trabalho de legisladores pouco preocupados com a aritmética, com a limitação física de recursos e, afinal, com a eficácia das políticas públicas.

O excesso de vinculações é uma consequência dessa farra legislativa. Se vinculações funcionassem, educação e saúde seriam muito melhores, no Brasil, do que têm sido nos últimos anos. Mas verbas carimbadas normalmente produzem efeitos muito diferentes: dispensam os ministérios de produzir bons planos e projetos, facilitam a corrupção e resultam, com frequência, em ações improvisadas para o mero cumprimento, no fim de cada ano, da obrigação de gastar. Se é preciso fechar a conta, pintem-se muros de escola, mesmo sem necessidade, ou se comprem ambulâncias, talvez com a ajuda de um superfaturamento. Não são exemplos fictícios.

Vinculações impedem ou dificultam a revisão periódica de prioridades, desestimulam o bom planejamento e ocasionam enormes desperdícios. No limite, a boa administração dependeria de uma revisão frequente de todas as contas e de todas as linhas de ação, mas o orçamento de base zero tem sido, na prática, apenas um ideal. Sem poder alcançá-lo, as administrações deveriam pelo menos operar com flexibilidade suficiente para se adaptar a novos objetivos, enfrentar com eficiência problemas conjunturais e obter um alto retorno de cada real aplicado. Mas a rigidez orçamentária provém também de outras causas.

No Brasil, a maior parte dos gastos obrigatórios é formada por dois grandes itens, os benefícios previdenciários e a folha de salários e encargos. Neste ano, a despesa do governo central, a preços de agosto, chegou a R$ 819,20 bilhões. A soma daqueles dois itens correspondeu a R$ 536,58 bilhões, quase dois terços do total. A Previdência pagou R$ 349,71 bilhões e a folha de pessoal e encargos consumiu R$ 186,87 bilhões. Os demais gastos obrigatórios totalizaram R$ 131,86 bilhões.

Mesmo com a economia em crescimento, as despesas incontornáveis cresceram mais velozmente que a receita líquida até 2014, quando a relação entre as duas grandezas chegou a 85,4%. A situação piorou nos anos seguintes. Em 2016 aqueles gastos corresponderam a 101,3% da receita. Nos 12 meses até agosto deste ano a proporção atingiu 104%.

Mesmo com a recuperação econômica e uma expansão mais veloz dos negócios, o quadro deverá piorar nos próximos anos. O PIB deve aumentar 0,7% em 2017 e 2,6% em 2018, segundo as novas projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), pouco mais otimistas que as do mercado. As despesas obrigatórias, principalmente da Previdência, continuarão sufocando as finanças públicas e, como consequência, dificultando o avanço da produção e da criação de empregos.

Ao lado de um esforço continuado para ajustar o Orçamento, reformas serão indispensáveis para a reconstrução da economia nacional. A da Previdência é a mais urgente, como indicam as projeções de especialistas em finanças públicas – ignoradas ou menosprezadas por boa parte dos congressistas. Mas outras mudanças também serão necessárias tanto para a melhora das condições fiscais quanto para o aumento da eficiência econômica. É preciso cuidar de uma ampla revisão tributária e pensar na reestruturação do Orçamento.

Num país aberto a debates sérios e consequentes, esse conjunto de temas teria destaque na campanha eleitoral do próximo ano. Mas é difícil, neste momento, admitir essa possibilidade. Parece mais provável a predominância de candidatos prometendo gastança, protecionismo comercial, juros baixos e criação de empregos a partir do nada. Se o Brasil, em seguida, recair na crise, a culpa terá sido de quem tentou promover o ajuste. 

Encontro marcado - MARCOS LISBOA, FSP


FOLHA DE SP - 01/10

A nossa história é repleta de tentativas criativas para evitar enfrentar os problemas. Quem sabe o reconhecimento dos fracassos recentes permita que, desta vez, seja diferente.

O aumento do gasto público pode ser eficaz quando há desemprego e deflação. Por aqui, entretanto, achamos que havia outro caminho. Desde meados do segundo governo Lula, tínhamos inflação elevada e, no entanto, optamos por expandir o gasto público. Entre 2008 e 2014, passamos de um superavit de 2,7% do PIB para um deficit de 1%. Conseguimos, apenas, maior inflação.

O mesmo ocorreu com diversas medidas criativas do governo Dilma, como a redução açodada da taxa de juros em 2012, a intervenção no setor elétrico e o resgate das políticas típicas do nacional desenvolvimentismo. Pois bem, mais uma vez a realidade discordou da nossa criatividade. O resultado foi o impressionante desperdício de recursos em projetos fracassados, e não desenvolvimento.

O atual governo desistiu da criatividade e iniciou uma agenda para estabilizar a dívida pública. O resultado não deveria surpreender: queda das taxas de juros e da inflação. Como ocorreu com o ajuste de 2003, a economia começa a se recuperar, com redução do desemprego.

Entretanto, ainda estamos distantes do ajuste das contas públicas. O crescimento dos gastos obrigatórios tem sido compensado pela redução das despesas discricionárias, como o investimento público e programas em ciência e tecnologia, além das atividades comezinhas que permitem o funcionamento da máquina pública.

A boa notícia é que a regra de ouro, como é conhecido o artigo 167 da Constituição, impede a saída populista de aumentar o endividamento para pagar despesas correntes, algo como pagar o aluguel todo mês tomando dinheiro emprestado do banco. Uma hora quebra.

Em 2018, o governo precisará de R$ 184 bilhões emprestados a mais do que o permitido pela regra de ouro para continuar a funcionar. Medidas extraordinárias, como a devolução dos recursos emprestados ao BNDES, podem permitir fechar as contas no ano que vem.

Essas medidas, porém, têm vida curta. Como faremos nos anos seguintes, com o agravante de que os gastos obrigatórios, sobretudo da Previdência, vão continuar a aumentar? Reformas adicionais serão necessárias para equilibrar as contas. Caso contrário, o resultado será a paralisia do setor público.

A campanha de 2018 será um bom teste do que nos espera. Vamos continuar com as reformas necessárias para preservar a rota? Ou repetiremos o hábito de deixá-las de lado quando as coisas se acalmam, optando pela criatividade? Nesse caso, teremos uma encontro marcado com a volta da crise.

Velas para Lula e a esquerda no escuro - VINICIUS TORRES FREIRE


FOLHA DE SP - 01/10

A pichação velha diz "R$ 3,20, jamais". Está lá desde junho de 2013, no cruzamento da avenida Paulista com a rua da Consolação, centro de São Paulo. Era um mote contra o aumento de vinte centavos das passagens.

O "pixo" tem efeito hipnótico. Sempre me faz perguntar que fim levou tudo isso. Nesta semana, me lembrou dos secundaristas que ocupavam escolas em protesto contra a reforma do ensino médio, a PEC do teto de gastos etc. Quanto tempo faz isso? Dois, três anos?

Faz apenas um ano, neste outubro. A greve grande de abril, contra a mudança na Previdência, parece igualmente remota. Ajudou a plasmar a péssima imagem pública das reformas e a assustar parlamentares, que assim arrumaram um pretexto quase final para não bulir com as aposentadorias. Desde então, a esquerda entrou de vez em coma, no hospício ou fugiu para as montanhas.

O movimento dos secundaristas virou fumaça, como se esvaneceram no ar os jovens do MPL, Movimento Passe Livre, o dos vinte centavos, que riscou o fósforo na casa cheia de gás sem cheiro que era o junho de 2013.

Em outubro, os secundaristas ocupavam mil escolas pelo país, a maioria no Paraná. O movimento pipocava desde o fim de 2015, quando estudantes paulistas tomaram umas 200 escolas, derrubaram um secretário da Educação e o prestígio de Geraldo Alckmin. A história, porém, não poderia render nem rendeu mais do que autocongratulações esquerdistas iludidas sobre o renascimento do movimento estudantil e louvações do idealismo renovado da "garotada", essas cafonices.

As centrais sindicais tentaram reviver a greve de abril nos meses seguintes, o que deu em grande fiasco. A reforma trabalhista passou sem um pio das ruas. Os sindicatos ora se limitam a pedir um capilé a Michel Temer, a volta de alguma contribuição sindical. As centrais se tornaram o Centrão do que um dia foi o movimento dos trabalhadores.

Os trabalhadores se viram. Em 2016, houve mais de 2.000 greves, segundo o Dieese, inédito desde FHC 1. As paralisações haviam minguado para 400 ao ano sob Lula e voltaram a crescer em 2010.

Nos tempos idos da alegria petista, até 2013, a maioria das greves reivindicava reajuste de salário. No ano passado, a maioria cobrava salários atrasados. No entanto, mal se ouviu falar dessas greves de 2016, mesmo da boca de sindicalistas. Para espanto de gente com ideias antigas, a esquerda se divorcia do trabalho.

O PT, entre a rua do hospício e a praça da cadeia, passou os meses recentes a bajular o ditador do horror venezuelano, Nicolás Maduro, e no mais limita a Lula lá sua esperança de evitar ruína ainda maior nas eleições de 2018. Seus parlamentares negociam acordões, como a reforma política salafrária.

Amigos abnegados da militância de esquerda contam que coletivos de periferia e outros movimentos novos estão vivos, embora pequenos, mas se articulando, evoluindo nos casulos para emergirem depois do fim do período de trevas, quem sabe em meia dúzia de anos. Por ora, parecem mesmo na periferia, à margem.

Do centro à extrema-direita, articulam-se novidades ou a ressuscitação de frankensteins das trevas do inferno. A esquerda oficial acende velas para seu morto vivo, Lula. No mais, escuridão.